Marigê Quirino Marchini
Abraxas
Livro difícil, este, de Maria
Lúcia Pinheiro Sampaio, em sua aparente simplicidade, de um conteúdo
místico muito forte, intrigante e perturbador.
A autora investe-se da voz de uma
divindade, Abraxas, e através de suas mutações, ora deus, ora deusa,
nos dá o alimento da poesia. Fica difícil separar o vôo da poesia do
vôo místico. Quiçás seja uma união sagrada, essa de poesia e
misticismo, uma hierogamia, como o próprio Abraxas, união de deus e
de deusa.
A autora parte de uma visão
gnóstica da divindade, isto é, a visão de uma seita cristã do século
II D.C., que atribuía a Deus atributos opostos de bem e mal, luz e
sombra.
Quantos poetas não se inspiraram em um Livro Sagrado, como a Bíblia?
Ou em outros livros religiosos,
como o Bhagavad Gita, texto sagrado do hinduísmo, como T.S. Eliot,
que em 1943 publicou os “Quatro Quartetos”, recriando neles um
trecho do Bhagavad Gita.
A autora fez o caminho inverso. A
partir dos conceitos da seita gnóstica, escreveu um livro como se
fora o texto sagrado da seita; também se inspirou em trechos da
Bíblia e do Bhagavad Gita, na falta de textos originais, para
montagem de seu poema sacro. Dessa hierofania (diversas
manifestações do sagrado no mundo, como considerava Mircea Eliade),
a poeta extrai sua luz. É uma voz individual fazendo o que vozes
anônimas, muitas vezes coletivas, fizeram pela religiosidade de uma
época ou lugar mas, na voz de Maria Lúcia, quantas vozes do
inconsciente coletivo nesse terreno arcaico da religiosidade, tão
antigo como a própria humanidade?
Assim Abraxas, que é o nome do
deus supremo da religião gnóstica de Basilides, escritor gnóstico
alexandrino do século II, inspirou Maria Lúcia Sampaio. Como um
ritual iniciático, através da aparente simplicidade invocatória e
explicativa, o livro vai se organizando e construindo - com palavras
repetitivas, hipnóticas e encantatórias, como mantras - amor, luz,
conhecimento, prazer, dor, etc. - um corpo poemático forte e
perturbador.
Além de qualquer aceitação da
visão gnóstica do livro, fica a acolhida calorosa à poeta, que com
um material difícil e sofisticado elaborou um livro de poesia
sensível, inteligente e de alto grau de interpretação poética.
Abraxas, Deus e Demônio, poesia,
Maria Lúcia Pinheiro Sampaio,
Editora Arte & Ciência, São Paulo,
1997, 270 páginas.
Marigê Quirino Marchini é poeta, crítica literária
e tradutora de italiano.
|