Marigê Quirino Marchini
Poesia como espaço
A poesia de João Cabral de Melo
Neto, muitas vezes, é poesia espacial, de nítida delimitação
geográfica: vemos numa dimensão concreta o que o poeta vê, ou quer
nos mostrar.
A sua poesia “O Engenheiro” - um
bom exemplo disso - se desdobra em planos, em cenários diversos, que
se juntam idealmente para formar a concretização do todo poético.
São quatro tomadas de câmera,
correspondentes a cada estrofe, dando assim uma movimentação
cinematográfica às palavras; vemos, mas não por força descritiva;
por deslocamentos de imagens em blocos.
1ª tomada: “A luz, o sol, o ar
livre”. Estamos num espaço aberto, que envolve a figura e o sonho do
engenheiro.
2ª tomada: O espaço pensado e
concretizado: “O lápis, o papel, o desenho, o projeto, o número”.
Aqui, o poeta focaliza “o mundo do engenheiro”... “que nenhum véu
encobre”.
3ª tomada: O edifício, não falado
ainda, mas latente, começa a se delinear. O espaço abstrato da
estrofe anterior se realiza: “ Em certas tardes nós subíamos ao
edifício”. A tomada se amplia, focalizando a cidade: “ cidade
diária”... “ganhava um pulmão de cimento e vidro”.
Passamos também do close do
engenheiro e seu mundo, das estrofes anteriores, para a figuração
coletiva: “Nós subíamos” - e, aqui, o poeta se faz presente na
realidade - “ao edifício”. “A cidade diária” “como um jornal que
todos liam”...
Na 4ª estrofe e última tomada, se
ampliam ainda mais as coordenadas geográficas, onde se incluem
engenheiro, edifício, e a própria poesia num espaço de forças
simples e telúricas, remetendo-nos ao mesmo espaço da 1ª estrofe (“a
luz, o sol, o ar livre”) que envolvem o sonho do engenheiro, e, por
extensão, o sonho do poeta. Temos nessa 4ª estrofe: “A água, o
vento, a claridade”; “de um lado o rio”, “no alto as nuvens” que
“situavam na natureza o edifício”, “crescendo de suas forças
simples”.
Em outra poesia, “Vale do
Capibaribe”, temos os espaços anticinematográficos, onde nada
ocorre; e o poeta, presenciando a não ocorrência, faz uma poesia do
espaço de negação.
A 1ª estrofe delimita
geograficamente o “Vale do Capibaribe”: “Por Santa Cruz, Toritama”
(...)
Na 2ª estrofe, o espaço é
focalizado vazio, “paisagem em que nada / ocorreu em nenhum século”
(“nem mesmo águas ocorrem/ na língua dos rios secos”).
Na 3ª estrofe o nada se
metamorfoseia em história fingida, mas sempre num cenário: “Nada
aconteceu embora/ a pedra pareça extinta/ e os ombros de monumento/
finjam história e ruína”.
Na 5ª estrofe, nesse espaço de
solidão e nada, aparece a primeira figuração humana: “o podre
romanceiro da cruz da estrada” ou “mais raro” o sujeito passivo do
“crime não rotineiro”.
Na 6ª estrofe o vale é um espaço
de vozes, a poesia passa a ter um som coletivo - um som “de gesta ou
façanhas cangaceiras” - “que não só se perca no vazio do vale, mas
seja cantado em feira”.
Na 7ª, 8ª e 9ª estrofes aparece a
palavra, o signo, (“luta”), que redime esse vazio, embora se
concretize como esperança vã na 10ª estrofe.
7ª: “ A luta que sempre ocorre/
não é tema de canção” ( mas de vazio)
8ª: “luta contra o deserto” (...)
“luta em que sangue não corre”.
9ª: “É uma luta contra a terra”.
10ª: Nesta estrofe surge o tempo:
“de dia em dia” e os figurantes: “de homem a homem”. Os episódios de
luta, “de seca em seca”, colidem num espaço de atemporalidade, de
negação: “de morte em morte”.
Referência: João Cabral de Melo Neto, Poesia
completa
Editora Nova Aguilar - 1995.
Marigê Quirino Marchini é advogada, poeta, crítica literária e
tradutora de italiano.
Leia obra poética de João Cabral de Melo Neto
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