Manoel Ricardo de Lima
No princípio era a sombra
22.9.2001
Real ou representação do real, a sombra nos persegue e nos ensina. O
professor e pesquisador italiano Roberto Casati nos revela a
história da sombra e sua importância para o desenvolvimento da
civilização
Manoel Ricardo de Lima
Articulista do Vida & Arte
Em 1997 a poeta
carioca Claúdia Roquette-Pinto lançou um livro de poemas intitulado
Zona de Sombra. Este livro demarcou, para mim, não só
sinceros bons problemas sobre o poema e a poesia brasileira, dentro
de um trabalho com a linguagem, como também, hoje sei, uma revisão
de alguns princípios de pensamento sobre a sombra e o que também a
demarca, como criação ou sentido filosófico. Há no livro, por
exemplo, algo severo com a palavra, conteúdo e forma,
principalmente, que enviesa pensar apenas o poema como poema,
tradição ou ruptura, acomodação ou proposta, mas para além dele.
Coisas como: ''evita o que dá ao silêncio/ ausência de sombra''.
Daí, assim, rapidamente, na vida, como quem guarda do outro apenas
alguma sombra, porque não pode o corpo: olhinhos apertados ou um
gesto bonito de mão, levinho, enquanto o distrair do mundo é fixado
na memória.
Em diante,
sempre tomo a sombra, não só a partir da primeira e querida
referência do Mito da Caverna de Platão, revista, em que coloca
prisioneiros que só percebem ou recebem o mundo a partir de sombras
projetadas na parede em frente a eles, como também do livro de
Cláudia, que retira da sombra a condição de inferior ou enganosa, e
resvala em poetas como Paul Celan e alguns vários outros, e num
entre, aí, de Tales, Aristarco e Platão em diante, para uma penca de
gente, como Galileu e Leonardo da Vinci ou como o genial espadachim
Cyrano de Bergerac, que amava a lua, e lutava contra sua sombra, ''É
difícil emitir um juízo sobre uma sombra.'' Isto para não dizer do
século XX e suas impertinências. Mas deste, fico com a forma com que
o poema e a literatura tratam a sombra. É melhor, sempre.
Entretanto,
assim, para imediatamente quase queimar a língua, recente, foi
lançado no Brasil, pela Companhia das Letras, um livro do professor
e pesquisador de filosofia e psicologia da percepção e da
representação espacial, o italiano Roberto Casati: A Descoberta
da Sombra - de Platão a Galileu, a história de um enigma que fascina
a humanidade. Este livro, que poderia ser apenas, o que já seria
muito, um compêndio de física ou história, ou mesmo teoria da
representação, é construído quase de uma forma romanceada, cheio de
vestígios de quem sabe um pouco da palavra, além da sombra que ela,
palavra, projeta no mundo. Além da sombra e, por exemplo, seus
relógios de sol.
Assim, no começo
de alguns capítulos, Roberto constrói um diálogo entre Platão e Skia,
nome dado a sua sombra (dele, Platão). É neste diálogo com a própria
sombra que Platão e seu Mito da Caverna passa a ser a sugestão
seguida por Roberto para mapear todo o livro, em confronto: entre
semelhança e dessemelhança, entre perspectiva de lugar e tempo numa
ou noutra cultura, entre o que pode e deve ser revisto, repensado,
reposicionado, redirecionado ou, o que mais ainda encanta, o que
ainda há de tinta para se gastar com a sombra no interior da
caverna. Diz ela, em um desses diálogos: ''não conheço a tristeza
porque não tenho recordações'' ou ''A cada instante sou diferente,
mas naquele momento sou obrigada a ser uma imagem fiel daquilo que
sou sombra''.
A partir disso,
por exemplo, entre tantos preconceitos deste mundo ruim, podemos
descobrir um sujeito chamado al Biruni, morador da bonita cidade de
Ghazna, no Afeganistão, que viveu aí pelos anos 1000/1050 e escreveu
o Tratado Completo das Sombras, que segundo Roberto é o livro
mais importante já escrito sobre elas e quase desconhecido ainda no
ocidente (como caímos a vida inteira em preconceito e petulância).
Ficamos sabendo também que é a partir da sombra que al Biruni passa
a odiar a carolice e a ignorância e declara os problemas de vagueza
que isso causa para lermos o mundo. Adiante, aconselha que os seus
procurem consultar Euclides e Ptolomeu, Arquimedes e Apolônio. Como
quando Mahmud, o conquistador do Irã oriental e do Punjab, recebe
uma delegação de embaixadores turcos do Volga que tiveram contato
com moradores de regiões polares, e contam que lá, nestas regiões,
em certos momentos do ano, as sombras alongam e o sol não desaparece
dias a fio. Mahmud, sultão, fica furioso e exclama a heresia! Chamam
o sábio da corte que explica ao sultão a curvatura da Terra e como e
porque o dia polar é tão longo assim. Com um ufa!, aliviados, os
embaixadores estão salvos e mantêm suas cabeças. Este sábio era al
Biruni. Era o mestre, o ''al-Ustadh'', como seus contemporâneos o
chamavam.
Pensar a
sombra como ''testemunha de um encontro entre o mundo das coisas
materiais e um mundo em que a matéria não parece tão importante''.
Como se o melhor da sombra fosse o lúdico esconder a sua na do
outro, de fato, assim, a sua continua existindo. Ou como penso,
depois de algumas boas e serenas conversas - em que ouvir é
preferível a dizer - e que me remeteram outra vez a Leibniz, na
Confissão do Filósofo: ''Deus ama somente os eleitos (...), nem
todos podem ser salvos: mostram isso a harmonia universal das
coisas, a pintura que vive graças às sombras, a consonância graças
às dissonâncias.'' E está lá, citado por Roberto. Ou assim, quase
por último, o epitáfio de Kepler: ''Eu media o céu, agora meço as
sombras da Terra; o espírito era celeste, e aqui jaz a sombra do
corpo.''
Do que nos mede,
o tempo, a sombra, fica mesmo aquela primeira idéia do livro de
Roberto, ou do de Cláudia, o quanto pode de fato um bom poema que
não é só frescura de querer dizer, mas que diz de fato e com
precisão da palavra, sem ornamento besta: ''(por dentro do corpo
(disfarce/ contra o silêncio) respira/ outro corpo a imanter-se)''.
Ou seja, o que descobrir da sombra ainda em nós mesmos, ou a nós
mesmos, e no outro, e ao outro. Em silêncio.
A Descoberta da Sombra - de Platão a
Galileu, a história de um enigma que fascina a humanidade - Obra
do professor e pesquisador italiano Roberto Casati. Tradução:
Eduardo Brandão. Lançamento Companhia das Letras. 319 páginas.
Preço: R$ 31,00.
Leia Cláudia Roquette-Pinto
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