Manoel Ricardo de Lima
A água do livro
O poeta Manoel Ricardo de Lima fala sobre primeiro livro de
poemas de Leonardo Gandolfi, No entanto d'água, lançado
recentemente. A obra diz um pouco da tentativa de escrever o
silêncio como um instante, como uma impossibilidade, como algo mais
perto de uma fragilidade
Manoel Ricardo de Lima
Especial para O POVO
10/11/2006 22:50
O poeta Edmond Jabès diz em um certo
poema seu que "Não há história da palavra mas, inalterável, uma
história do silêncio. A palavra repete-a constantemente para nós. /
Do silêncio só conhecemos o que a palavra nos pode dizer. Quer
queiras quer não, só a palavra confirmamos." Assim, uma questão
seria como propor pensar o silêncio como aquele instante que
recupera uma ação de mudança, de transformação. O silêncio-instante
como se numa escala temporal, como aquele tempinho ínfimo de posse
da história, próximo e dentro ao tempo-de-agora de Walter Benjamin,
talvez, este tempo presente em constante transição mas que também se
posta para fazer uma crítica vigorosa à representação,
principalmente se vista como progresso ou linha evolutiva.
Nisso, atravessar o silêncio-instante
como uma potência para propor uma imagem de liquefação, a que se
desmancha, se desfaz, se desvia, se água; uma imagem desviante. O
primeiro livro de poemas de Leonardo Gandolfi, No entanto d'água,
lançado recentemente (editora 7Letras, RJ), diz um pouco esta
tentativa de escrever o silêncio como um instante, como uma
impossibilidade, como algo mais perto de uma fragilidade. E este é o
ponto interessante que também resvala para fora do livro, como
postura e como política. E muito para tocar a questão nervosa das
afecções e dos sintomas do poema para além da representação e para
além do que também se estende como um procedimento democrático
cínico entre as coisas mais enfadonhas do poema, aí se tomado também
como um dado da cultura para a permanência, ou como método, ou como
gesto de fórmula habituada etc.
Desta forma, este livro do Leonardo,
se o tomasse rapidamente para a monstruosa construção de uma
generalidade, poderia lê-lo neste entretempo falseado, entre uma
coisa e outra filiação desnecessária, como o que toma força para
propor potencializar a fragilidade de uma imagem e assim dar-se a
ver num contra ou combate propositivo quase fundamental a esse sem
freio da enxurrada de livros à toa e sem projeto. Mas um pouco mais
de perto, o movimento-projeto dentro do livro estaria mais próximo a
algo que, ao desfazer a imagem, imprime sobre um desvão que se move
alguma outra filigrana de percepção. Enfim, como propusesse o rasgo
e o risco e a potência numa alteridade inviolável e apontasse o
dedo: esta imagem aqui é frágil, toque-a devagar porque ela está se
desfazendo, ela está se desmanchando. E os poemas estão ali, mas não
há nada ali senão outra-coisa-outra, um segredo.
Numa intrigante divisão em três
partes: Sete, Rostos e -Quem são estes?, a pergunta que fecha não
solicita respostas e abre os desfazimentos para onde parece estar
sendo ampliado o silêncio, numa ranhura; ampliado em direção ao
caráter inviolável do segredo. Um enigma, um mistério. Uma aventura
e todas as animalidades sem nenhuma inversão da fábula ou sem a
inversão da inversão da fábula; os animais também estão ali
firmados, são aqueles mesmos que se dobram sobre seus próprios
corpos. O que fica pois entre o segredo e os poemas, um crime?,
outra pergunta que não solicita resposta, porque toma em sua dista
propositiva o direito incondicional ao segredo da e na linguagem.
Em alguns versos se pode ver a
escavação da proposta para romper o fio, para manter o labirinto num
aberto, num sem saídas. Ao entrar o labirinto, o fio pode se romper,
pode estar rompido. Sair ou entrar o labirinto é esticar ao
não-sentido a fragilidade da potência deste não-sentido. Versos
como: "As coisas são somente por faltarem todas", "A casa está vazia
não por mera ausência / mas para o aprendizado da subtração.",
"invisível resumo desse chão", "Quem sai, sai de onde quando entra
na casa?" etc parecem ser todos mantenedores dessa também estratégia
ao segredo. Ou algo de belezura singular que aparece também na
contra capa: "Quem sabe quando a chuva parar de insistir / eu
compreenda as regras da perspectiva.", para dizer de um certo
aparecimento desta paisagem do instante, deste redemunho que aparece
para alterar rápido e perturbar mais rápido ainda este enfado
pré-fabricado da história, o poema. Um gesto, um dispositivo. Como
diz Agamben que "toda escritura é um dispositivo, e a história dos
homens não é outra coisa senão um incessante corpo a corpo com os
dispositivos que eles mesmos têm produzido: antes de tudo, a
linguagem."
Retomo o que Edmond Jabès ainda
continua dizendo: "O instante diz. A duração é dita. A duração é
ausência, e o instante, um vestígio relevado de uma ausência
revelada a si mesma." É pois como linguagem e como desafio à
linguagem, numa duração - cifra secreta de uma leitura - que este
livro azul de Leonardo Gandolfi se aparece sozinho, uma água.
Manoel Ricardo de Lima é poeta.
Professor de Literatura Portuguesa, UFSC. Autor de As Mãos, Embrulho
e Falas Inacabadas (este com Elida tessler).
SERVIÇO
No entanto d'água, de Leonardo Gandolfi. Editora 7Letras, 58
páginas. www.7letras.com.br
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