Miguel Sanches Neto
Duas maneiras de se habitar o nada
10.11.97
Sem ver a
palavra como espaço da utopia, não acreditando no poder
transcendente da condição humana e sendo um desistente da
civilização, qual é o motivo que conduz o poeta em sua luta
expressiva? Como uma máquina que, já sem nenhuma serventia,
voltasse a funcionar por não saber fazer outra coisa, o poeta
escreve, não mais para mudar a linguagem ou mentalidades e muito
menos para chorar suas mágoas. Nem diálogo, nem monólogo. Vivendo
uma era pós-utópica, ele não se fia no mundo que o rodeia nem nas
promessas de um outro. O seu é um espaço de passagem, um intervalo,
uma dobra sem margem. O ato de escrever se torna uma tentativa de
aceitação do vazio, do silêncio, da vacância. Surge daí uma poesia
que não quer povoar de vozes o mundo, mas que aceita a falência de
toda voz, fazendo-se íntima do nada. É desta adaptação resignada ao
vazio que se faz o livro Margem de uma onda (Editora 34, 1997), de
Duda Machado, que já no primeiro poema tematiza a desintegração do
real, onde os objetos são vistos dentro de uma paisagem caótica, sem
vínculos de continuidade.
desconectados, imersos
na mais compacta exterioridade
já não se atingem
em seus próprios domínios
um mútuo desgarre
desterra as partes
que parem o mundo
- volta à superfície
ânimo
salve
definição vária
de seres, coisas, estares
alma do gesto que escolhe
olho que impele o toque
amor
me acolhe
Nesta paisagem
toda fragmentada, em que o eu não se sente
parte constituinte de um todo estraçalhado, resta-lhe apenas o amor
como forma de aglutinação, por mínima que seja.
Esta será a
atitude do poeta, desgarrado do mundo, que o percorre sem nunca se
sentir confortável nele. Como desistente de uma realidade composta
por partes desconectadas, os seus poemas vão se pautar por uma
linguagem que resiste ao encadeamento lógico, à busca do sentido. O
poeta quer habitar justamente esta palavra em estado de dispersão.
Na sua viagem pelo cotidiano, ele faz
uma espécie de reportagem lírica, tematizando fatos, da mulher de
maiô que mergulha no espelho do elevador aos meninos de rua, mas
estas estações são apresentadas apenas como isso, estações. Momentos
de parada, vínculos precários com um real cujo sentido se dissipou.
Mesmo o retorno à cidade natal não lhe traz nada que seja duradouro
- ela é vista como um ponto suspenso no vazio. O eu poético marca-se
por uma atitude filosófica de desistência, encarando o mundo como
"além de qualquer tentativa/ de fuga ou de domínio".
Assim, o herói
por ele atualizado é Santos Dumont, de cujo
diário o autor desentranha dois poemas que tratam muito mais do que
da possibilidade de voar, revelando a sensação de romper com o real
e entrar numa frincha sem margem: "por um instante,/ experimentamos
a sensação/ de estarmos (sic) suspensos no vácuo, / como se
tivéssemos perdido / nosso último grama de gravidade / e nos
achássemos prisioneiros / do nada opaco" (p.69).
Se o poeta
constata que sua pátria é o vácuo, ele faz isso sem nenhum alarde,
sem comoções nem torpores. Esta resignação estóica dá sentido ao
conjunto de Margem de uma onda, ofuscando alguns lugares comuns
poéticos dos quais Duda Machado não consegue fugir.
O poeta plasma
a sua condição de habitante do vazio sem ver
isso como catástrofe. E sua poesia, escrita num verbo sereno, guarda
um travo pacificador - a antítese desta constatação revela bem a
situação do livro que inquieta ao escolher um tema como o vazio e ao
mesmo tempo promove sua aceitação. Neste itinerário pelo presente e
pelo passado, a sensação de perda é aplacada por uma falta de
vínculo com o real, que entra na linguagem e no mundo do poeta como
uma interferência, um dado que carece de peso. O homem não
vive a realidade, mas em meio a uma realidade que o assombra -
"acordar é um sonho" - o que é o mesmo que dizer que o real carece
de espessura.
A paisagem,
portanto, é um mecanismo ilusório, que se dissolve como os ventos e
as vozes: "Vai-se abrindo um espaço, paisagem não-preenchida,/
habitada somente / por uma duração / para a qual acordamos / e, na
qual, às vezes, podemos existir"(p.47). O advérbio às vezes põe em
suspeição o real, acenando sempre com a dúvida sobre nossa
existência. É aí que está a relevância do livro cuja estatura
aumenta quando lido como uma busca filosófica de aceitação
do nada. Antiteticamente, o poeta habita o vácuo como estratégia de
existência:
Atravessar a obscuridade aclara.
Do rigor da ausência surge o sentido.(p.27)
Sentido que se
encontra em outra latitude nos poemas que
Paulo Henriques Britto reuniu em Trovar claro (Cia das Letras,
1997). A coletânea como um todo é boa, mesmo quando vemos a sombra
de João Cabral atrás de alguns textos. Já pelo título, fica evidente
que a luta travada pelo poeta é contra a obscuridade e o
incontrolável. Ele quer ordenar o real, fazendo da poesia uma
aventura do pensamento solar, retilíneo.
Não se trata,
no entanto, de um poeta cego por uma concepção. Ele sofre com a
impossibilidade de um controle total da existência, com a falência
do princípio ordenador de que nasce o seu verbo:
Nada é assim, os dias claros, noites límpidas
cada gaveta satisfeita em seu lugar,
e a consciência administrando tudo isso -
Nada é assim. Nada é tão bom. Na hora H
algum detalhe escapa, talvez uma vírgula
fatal, ou falta o risco no meio do A,
E o mundo vira um caos de músculo e metal (p.27)
Não obstante a
imperfeição de toda tentativa de equilíbrio,
permanecem as forças desestabilizadoras. O desejo de clareza para a
condição humana é transferido ao trabalho formal com as palavras,
vistas com feras rebeldes, que o poeta tem que domar. Neste trabalho
com as palavras, busca-se anular o papel do eu perturbador, numa
poesia que defende a desativação do sentimental pelo que há nele de
incontrolável e paralisador. A imagem do homem e do poeta que atrai
Paulo Henriques Britto é a do fazedor, ser que constrói o seu mundo
com certezas, com matéria transparente, com força edificadora. Daí o
poema acabar sendo pensado como uma camisa limpa, um copo de água,
uma possibilidade de sentido em meio a um real desregrado, uma luta
pela sanidade diante do vazio. "O sonho quer estrangular o mundo",
diz o poeta. Resta-lhe a resistência de tentar ser lúcido.
Todo o livro é
construído numa região limite entre o sonho destrutivo e as idéias
claras, a noite e as certezas matinais, o inconsciente inoportuno e
a linguagem límpida. A poesia de Paulo Henriques Britto se distancia
do lugar comum cabralino por representar este conflito que coloca em
risco a frágil razão da existência. Ele escreve como se a razão
vivesse à beira do desatino. Não se encontra nenhuma tranqüilidade
em sua crença no poder revitalizador do trabalho racional. Os poemas
se limitam com o desespero latente, que pulsa na sombra, pronto para
estourar o verbo claro. É apenas por um fio que a razão, sempre
vista como precária, consegue segurar o poeta, livrando-o do abismo.
Muito mais do
que dois livros de poemas, Margem de uma onda e Trovar Claro são
duas maneiras opostas, e de uma certa forma complementares, de
habitar a linguagem como tábua de salvação do nada.
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