Miguel Sanches Neto
Literatura sem turbulência
04.08.97
Existe uma
sobrevida literária que dá ao escritor a sensação de estar ainda
finalizando um conjunto quando na verdade persiste apenas
acrescentando títulos à sua obra. Parece que não devemos esperar
nada de novo ou de arrebatador de Moacyr Scliar (O amante da Madona
& outras histórias, Mercado Aberto, 1997), que chegou a um momento
de cristalização de recursos e temas. Nenhuma das histórias deste
pequeno volume consegue se fazer destacar na memória do leitor. Fica
retida na lembrança mais imediata um conjunto monótono de situações
que não dizem muita coisa: o simulacro do agradecimento acadêmico e
do texto paradidático, alguns mistérios banais, como o do índio que
é queimado por simples capricho adolescente, a situação solitária do
órfão que não se enquadra entre os seus, uma ou outra parábola, a
solidão dos seres
urbanos, etc.
O livro como um
todo é decepcionante, guardando um parentesco com as crônicas que o
escritor publica na imprensa. Estas crônicas também chegaram a um
ponto de saturação que as torna insuportáveis. O que falta ao
contista gaúcho é uma concentração de poesia e pensamento. Os seus
textos minúsculos são, por paradoxo,
prolixos. Eles se perdem na banalidade, não havendo nada que os tire
do papel para retê-los na lembrança. Existe uma flacidez literária
gritante, que não deixa margem para arrebatamentos. Em suma, Moacyr
Scliar está conformado em ser Moacyr Scliar - não há sinais de
investimento nos contornos das histórias, no trabalho com a
linguagem e nos estranhamentos. Elas nascem de uma receita, que o
escritor dominou com maestria. É como se o autor as escrevesse por
obrigação, sem uma necessidade vital e um envolvimento emotivo
profundo e doloroso com o que está sendo narrado. Isso fica sugerido
na maneira conformada e maquinal de tratar os casos.
Poderíamos
dizer que este é mais um livro póstumo do autor, isto é, que nasceu
após a morte do grande contista que Scliar foi. Esta prole guarda o
seu sobrenome sem reter os seus traços mais importantes -
perdendo-se no meio da multidão despersonalizada de um tempo com
grande densidade demográfica. Embora também ligado a este período de
sobrevida, Objetos Turbulentos (Bertrand, 1997), de José J. Veiga é
um bom livro, que tem um parentesco com o contista de grande
envergadura que ele foi, décadas atrás, em nossa literatura. O
grande problema de José J. Veiga resume-se em ter estreado, já
maduro, com uma obra-prima (Cavalinho de Platiplanto, 1959), que lhe
deu projeção imediata. Daí para frente, lançou mais um bom livro de
contos (A Máquina Extraviada, 1967) e duas novelas que funcionam
como alegorias políticas: A hora dos ruminantes, 1966, e Sombras de
reis barbudos, de 1972 - todos menores do que o seu livro de
estréia.
Dentro desta
linha decrescente, Objetos Turbulentos figura como um movimento
ascendente. Estamos mais uma vez próximos do autor de Cavalinhos de
Platiplanto. Sintomaticamente, trata-se de um livro de contos, que
é, por excelência, a forma de expressão de Veiga.
Contrariando a tendência nacional de transformar o livro de contos
em um amontoado de histórias díspares, este volume tem um arcabouço
muito bem definido. As histórias giram em torno de objetos que
guardam um poder (simbólico ou sobrenatural) de intervenção na vida
das pessoas. Eles possuem, portanto, uma espécie de alma que pode
influenciar a vida das pessoas: "Delduque tinha lido e relido um
livro que fala de entidades invisíveis mas atuantes no mundo físico,
os devas, sempre dispostos a ajudar
as pessoas desde que as pessoas se abram a eles. Os devas 'moram' em
objetos, em lugares, em plantas que eles mesmo escolhem e que lhes
dão força" (p.37).
Em alguns dos
objetos sobrevive a essência de seus donos, que passam a influenciar
os novos possuidores. É isso que acontece com um espelho colhido num
velho casarão abandonado, freqüentado por mendigos e catadores de
lixo. O espelho, encontrado por um negociante de traste, acaba nas
mãos de um casal que estava decorando o apartamento. Súbito, a peça
toma conta da vida da casa, tornando-se não apenas o seu centro, mas
uma entidade paralisadora, que faz com que o casal não queira
contato
com o mundo externo. Eles entram numa outra dimensão. Mas o maior
problema não é isolamento que o espelho criou (eles não conseguem
sair de perto do novo objeto), e sim a sua propriedade de desvelar a
verdadeira face de quem o freqüenta.
Pertencendo a
um mundo de dores e sofrimentos, o espelho guarda um papel
denunciador: alguns amigos, em conversa com o casal, defendem
questões sociais, mas o espelho mostra para os seus donos o que eles
realmente pensam sobre os pobres - funcionando como máquina de
detectar mentira, que não deixa a aparência imperar. Ao desvelar a
mais funda opinião das pessoas, ele se torna um objeto perturbador.
Lutando contra sua dominação, o jovem casal livra-se do medo de
encontrar a sua mais verdadeira imagem, revelada pelo espelho
impiedoso: "No dia seguinte telefonaram para o belchior e fecharam
negócio pela primeira proposta [...]. Mas continuaram usando
espelhos, ele para fazer baba, ela para se pintar"(p. 17).
O mesmo
acontece no conto "A cadeira". Um religioso que dedicou a vida toda
ao trabalho de caridade deixa a uma pessoa rica a cadeira que o
acompanhou. O objeto passa para um artista, que começa a se sentir
responsável por todas as misérias do país, herdando a visão política
de seu primeiro dono. Ou ainda a luneta que, nas mãos de um
aspirante a fotógrafo, revela a dor humana. Até um tapete florido
guarda em seus desenhos as visões do passado e do presente que
aprisionam uma dona de casa.
Tais objetos
quebram o equilíbrio da vida, desestabilizando o espaço domesticado
e criando uma fissura que os torna perigosos.
Mas os objetos podem também ter apenas uma carga simbólica, como no
caso do cachimbo. Um negro com uma carreira ascendente na Bolsa de
Valores do Rio resolve cultivar o hábito de fumar cachimbo. Depois
de um lento aprendizado, ele domina a arte de usar este objeto que
lhe dá um complemento nobiliárquico para sua figura. Mas quando ousa
expor em praça pública o seu hábito, no bairro pobre onde mora,
acaba despertando a ira de um grupo de jovens negros, que vê nele a
subserviência aos valores dos brancos. Os jovens quebram o cachimbo
e obrigam-no a mascar o fumo. O ato de mascar é tido como bárbaro e
serve para neutralizar os comportamentos do jovem negro. Neste caso,
a perturbação criada é mais de ordem social.
Os manuscritos
perdidos de um escritor que já não consegue mais escrever também
causam distúrbios. Quando desaparecidos, eles acabam figurando como
uma obra-prima. A perda define o fim da carreira do escritor que,
durante meses, alimenta a nostalgia do conto perdido, transformado
em sua obra definitiva. Ao encontrá-la, no
entanto, sente uma grande dor, pois vê que o manuscrito não valia
nada e que ele estava morto como escritor. Joga fora o manuscrito
imprestável para ficar com a tranqüilidade de uma obra já feita e
consolidada - qualquer semelhança com a biografia de Veiga não é
mera coincidência.
Em alguns
contos aparece as trajetórias de seres que deixam suas pequenas
cidades para se instalar nos grandes centros. Eles narram suas
histórias de vida começadas no interior durante os anos 30. Isso
está relacionado com a própria biografia de José J. Veiga que, como
alguns dos personagens jovens deste livro, começou trabalhando em
pequenos empregos no comércio. O que interessa neste detalhe é o
fato de o escritor continuar fiel não apenas à visão de mundo destas
pessoas, mas principalmente à sua linguagem, ao seu ritmo de vida e
às suas características narrativas. Em determinado momento, ele
presta reverência a Érico Veríssimo, cuja linguagem "não era
empolada [...]. Era como a fala de uma pessoa contando uma história
a uma roda de amigos" (p.119). José J. Veiga continua mantendo sua
preferência por este estilo oral, sem
empolamento, resgatando assim a figura do narrador tradicional que a
pós-modernidade tem insistido em deixar de quarentena. Os contos
trazem este jeito direto e natural de narrar, sem nenhuma intenção
de fazer literatura.
Mas o próprio
ritmo é marcado por uma certa modorra típica da vida e da fala da
gente do interior. Esta sintonia com uma espécie de sonolência
estilística, como se a história fosse contada por um caboclo que
prepara lentamente o seu cigarro de palha, dá ao volume um fluxo
lerdo, nada ansioso, em que a história é mais um recurso para
matar o tempo carente de eventos do que para tentar fecundá-lo. Isso
está ligado a uma visão do mundo essencialmente interiorana. Na
metrópole de grandes correrias e de agitação, onde o homem dispõe de
pouca disponibilidade para esses rituais narrativos, o ritmo
tornou-se extremamente nervoso. José J. Veiga mostra a fidelidade
à sua condição de homem do interior não só através da temática, mas
principalmente pelas opções de ritmo e estrutura de seus contos.
Nesse sentido,
este livro não está apenas distante do tempo de grandeza do autor,
mas também fora da realidade mais imediata do país. E é isso que o
faz interessante, na medida em que leva o leitor a passar por uma
outra experiência de tempo. É compreensível que o escritor centre
suas histórias na turbulência, sentindo-a como
perigosa. Ela põe em risco o seu estilo tranqüilo. Ao tratar destes
objetos tumultuadores, cujos donos acabam se desfazendo deles, José
J. Veiga está exorcizando toda e qualquer forma de desequilíbrio que
venha comprometer a paz doméstica de sua linguagem e de sua visão de
mundo.
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