Miguel Sanches Neto
Poesia e as subculturas do gosto
10.03.97
Em debate, com uma boa dose de polêmica,
a condição grupal da poesia pós-moderna.
Em alta no
mercado literário informal, o poema homoerótico vem acrescentando
livros às prateleiras sem acrescentar muita coisa à poesia. Este,
todavia, não é um pecado exclusivamente seu, mas de toda a vasta
corrente da lírica pós-moderna, entregue a uma prática literária de
segunda mão. Inserida numa cultura de mitos, a poesia se
dispersou em guetos, fragmentando-se em fã-clubes. O que vale não é
a progressiva construção de uma obra personalizada (alega-se para
isso a falência do eu), mas o ícone do ídolo.
A poesia destes
discípulos acaba tendo uma única função; identificar os membros da
falange. A tão propalada falência do eu não é na verdade uma
falência, mas uma desistência. Os poetas preferem ser porta-vozes de
seus mitos, abandonando a busca de um caminho próprio. Em uma
sociedade onde as coisas só têm "realidade" quando legitimadas pela
mídia, há um mecanismo de ilusão agindo para convencer o sujeito de
sua inexistência (por carecer de uma espessura midiática), levando-o
à tentativa de ser o outro. Isso cria uma poesia de relíquias. Citar
um autor ou simplesmente plagiá-lo é ter como relíquia alguns fios
do cueiro de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Assim, o
monstro sagrado se manifesta metonimicamente no discípulo portador
de uma parte de seu corpo ou de algum objeto que tenha tocado em seu
cadáver. Em função disso, estão extintos os poetas autênticos (salvo
algum anacrônico dinossauro), sendo cada vez mais comum encontrar,
em inúmeros pontos do Brasil, os fâs-clubes (de Pound, de Borges, de
Pessoa, de Oswald, de Leminski, de Maikóvski, de Octávio Paz, de
Bashô e um etcétera igualmente sagradíssimo). Logicamente, estes
fã-clubes são interpenetráveis. É esta a única diferença palpável de
um livro de poema pós-moderno para outro: os ingredientes da fusão
(melhor dizendo, da confusão). Escrever poesia seria então variar
estes ingredientes, e como as possibilidades são infinitas os livros
de poemas surgem em ritmo e volume de exurrada.
Com a
proliferação dos fã-clubes, a poesia está fadada a se ver convertida
em hobby. Para Jair Ferreira dos Santos, num penetrante ensaio,
ainda inédito, que estuda a poesia pós-moderna, a prática poética
sofrerá uma intensificação, mas não enquanto forma de alta cultura e
sim enquanto "adereço nas subculturas do gosto".
Neste novo
status, vai assemelhar-se à filatelia, à numismática. Sua
espectralidade dará frutos diferentes, imprevisíveis. Circuitos de
produção e difusão de poesia já se formam na Internet e já existem
máquinas que facilitam a edição caseira de livros de qualidade.
Na pós-modernidade, o mercado em segmentação talvez guarde uma
remota analogia com o corpo despedaçado de Orfeu, ambos
representando o grande poema da cultura que se desfez. E como no
mito, Orfeu, mesmo decapitado, continuará a cantar.
Na feliz imagem
de uma poesia decapitada, sem um cânone minimamente consensual,
podemos encontrar o retrato de uma era em que a poesia, abdicando de
seu papel civilizador, virou o espaço das reivindicações de
minorias. Não estou pensando apenas nas minorias sexuais e étnicas,
mas também nas minorias estéticas. Enquanto os homossexuais e as
feministas fazem desta via de expressão um recurso de engajamento,
os membros dos fã-clubes assumem a condição de passadores de senhas
para os seus iguais.
Em última
análise, a poesia pós-moderna está fundada num
princípio de exclusão. Ela não exclui apenas por sua linguagem
rarefeita ou galvanizada, embora estes também sejam elementos
significativos do processo de fechamento da experiência
poética, mas principalmente por representar uma especialização muito
intransigente do gosto. A especialização se dá com a adjetivação,
tal como na poesia homoerótica. Na gangorra entre o substantivo e o
adjetivo, o peso maior estará sempre deste lado
porque é ele que cria o vínculo de identificação da falange. A
poesia vem, quando vem, a reboque.
Bundo e outros
poemas, de Valdo Motta (Editora da Unicamp, 1996), e Guardar, de
Cícero Dias (Record, 1996), dois lançamentos com posturas
diferentes, mas irmanados pela temática (em um escancarada e em
outro meio velada), representam os extremos do erotismo
exclusivamente masculino. Esta exclusividade está estampada no
título do livro de Valdo Motta, na masculinização do nome de uma das
zonas erógenas que não comporta flexão de gênero.
A quebra com a
regra dá a medida das intervenções altamente ideologizadas, cujo
propósito é moldar a linguagem de acordo com as suas opções
existenciais. Comportamento que não fica apenas no nível da
linguagem. Valdo Motta, em uma grande confusão de símbolos, operando
rudimentos de culturas tão díspares quanto a afro-brasileira e a
hebraica, entre outras, faz uma leitura homossexual da bíblia.
Atualizar algumas passagens dos textos sagrados, numa tentativa
desesperada de dar legitimidade sacra à sua preferência erótica é
pretexto para um exercício escatológico gratuito. Indignado pelo
fato de na cultura ocidental o homossexualismo ter passado como o
amor que não ousa dizer o nome, ele transforma os seus poemas numa
girândola de palavrões. A sua agressividade lexical está aliada a
uma visão esotérica-apocalíptica que nos faz corar, não pelos termos
chulos, mas pela ingenuidade do autor.
Esta tomada
estratégica dos espaços da cultura é um comportamento corriqueiro
nas atuações dos movimentos reivindicatórios. Já houve quem
afirmasse a homossexualidade de Guimarães Rosa(!) por causa do
episódio de Diadorim. O herói
andrógino, no entanto, não é uma criação do autor. Pertence ao
domínio folclórico em função da grande popularidade do folhetim
Sinclair das Ilhas (v. p. 47 de Folhetim, de Marlyze Meyer: Cia. das
Letras, 1996), que o recortou no imaginário do leitor comum
brasileiro.
No âmbito da
história, recentemente houve uma proposta, por parte de um líder do
movimento gay, para ver Zumbi como homossexual. Tais interpretações
valem-se sempre de uma analogia descontextualizada que lê os textos
de uma perspectiva muito
particular. Bundo é um livro monotonamente exibicionista em que o
autor vê tudo pelo prisma do amor masculino. É obra para circular
entre pares, simpatizantes e interessados, em que o autor confunde
projeto político de vida com poesia. Minha poesia é uma síntese de
meu projeto de vida, uma aventura em busca da Verdade (sic), intuída
como a ciência da restauração divina. A transformação se verifica no
plano da linguagem, tanto nas palavras como no estilo de dizer. Não
quero apenas escrever, mas também ser o que escrevo (p. 11).
Embora o autor consiga ser o que escreve, o que escreve não consegue
ser poesia. É ele quem conclui que "nem só de escracho se faz arte"
(p. 9). Na grande maioria dos poemas, para agravar, a transgressão
buscada por Valdo Motta não consegue passar de agressão, fruto da
pior de todas as pragas; a intransigência.
Não se trata de
uma postura preconceituosa do crítico, que é uma pessoa honesta e
deseja com sinceridade compreender, ajudar e valorizar tudo aquilo
que guarda alguma qualidade artística. Justamente por causa desta
sinceridade ele não pode deixar de
tocar nas feridas. Valdo Motta escrevendo poesia consegue ser apenas
engajado. E aí está o seu problema enquanto poeta. Um exemplo como o
de Auden pode deixar as coisas mais claras ainda. O homossexualismo
nele não era a fonte exclusiva de uma poesia que falava, antes de
mais nada, da condição humana, sem distinguir os sexos, embora não
escamoteasse sua preferência. Enquanto sua poesia opera numa clave
universalizante, a de Valdo exprime particularismos grupais. É,
nesse sentido, uma poesia de exclusão.
Antônio Cícero,
por sua vez, escolheu um quarto oposto na mesma mansão poética. Sua
poesia é leve, mas marcada por um lirismo afetado, o que a torna um
tanto enjoativa. Enquanto o autor de Bundo é poeta das perversões
consumadas, Antônio Cícero é mais o poeta que olha e cobiça. Sua
poesia é romanticamente comportada,
com rimas gastas e sentimentos estereotipados:
Conheci-o no Arpoador.
garoto versátil, gostoso,
ladrão, desencaminhador
de sonhos, ninfas e rapsodos.
Contou-me feitos e mentiras
indeslindáveis por demais:
eu todo ouvidos, tatos, vistas,
e pedras, sóis, desejos, mares.
E nos chamamos de bacanas
e prometemos-nos a vida:
Comprei-lhe um picolé de manga
e deu-me ele um beijo de língua
e mergulhei ali à flor
da onda, bêbado de amor.
Mesmo
mergulhando, ele é um poeta que permanece na superfície dos clichês
e dos episódios. Valdo Motta vai mais fundo (fisicamente falando) do
que Antônio Cícero, autor de poemas que não conseguem disfarçar uma
afetação sentimental. O fato de alguns deles terem sido musicados
por cantores da MPB explica muita coisa.
Segundo ele, "qualquer poema bom vem do amor narcíseo", revelando
assim a unilateralidade de sua poesia. O amor narcíseo é o amor pelo
mesmo, metáfora recorrente para tratar do encontro entre seres
iguais. O bom poema, segundo esta receita, é aquele que tem o que
dizer apenas para uma faixa de leitores. É, nesse sentido, muito
significativo o fato de Bundo e Guardar serem apresentados,
respectivamente, por José Celso Martinez Correia e Silvano Santiago.
Amputando de
seu horizonte de recepção parcelas importantíssimas de leitores,
parece ser realmente definitiva a marcha da poesia, vislumbrada por
Jair Ferreira dos Santos, rumo à irrelevância. E ela marchará
cantando. Desafinadamente.
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