Miguel Sanches Neto
Visita a Lanzarote
07.04.97
José Saramago, o mais importante escritor vivo da
língua
portuguesa, abre as portas de sua casa aos leitores.
Venho de uma
longa visita à ilha de Lanzarote, onde vive o escritor português
José Saramago. Se não posso dizer que sou seu amigo, é plenamente
possível afirmar que ele me é agora íntimo, de uma intimidade, é
lógico, limitada ao âmbito das relações de ordem pública.
Ao chegar à
casa do romancista, encontrei o portão apenas encostado e não tive o
menor receio de forçá-lo com uma liberdade que só um leitor poderia
ter. Apenas um de seus cachorros, justamente o que atende por
Camões, acolhido por Saramago no dia em que recebeu o prêmio de
mesmo nome, veio me recepcionar, não com latidos, pois os cães da
casa não têm a detestável função defensora, mas com um abanar de
rabos que era o mesmo que estar dizendo "entre, o Zé estava mesmo
aguardando a sua chegada". Antes de seguir ao encontro do autor, fiz
algum carinho ao pêlo do Camões, que me agradeceu com uma lambida
áspera.
Ao entrar na
sala, a porta estava também apenas encostada, vi que Pilar, a
companheira do escritor, falava ao telefone. Apenas com gestos,
indicou-me o caminho do escritório, fazendo significar que Saramago
estava lá, em alguma tarefa literária. Cheguei, sem maiores
problemas, ao escritório e, sem intenção de interromper, coloquei-me
ao lado do homem, a acompanhar o que ele ia deixando inscrito na
tela do computador. O combinado era que eu poderia ficar pelos
cômodos mais públicos da casa a observar o seu trabalho sem
interferir em suas atividades.
Esta sorte de
visita invisível acontece toda vez que o leitor abre um diário,
estabelecendo um pacto de intimidade com o autor. Ao ler os Cadernos
de Lanzarote (Cia das Letras, 1996, 664 páginas), o crítico entrou
no mundo de José Saramago, para participar, não mais como leitor,
mas como uma visita, de seu cotidiano, que se tornou um espaço
aberto para um encontro parcial.
Vários são os
tipos de leitor de diário. O mais comum é o discípulo, que sofre de
uma carência de informações sobre os ídolos. Penetrar, portanto, uma
vida famosa, para ele, mais do que um ato comezinho de leitura, é
uma atividade que lhe faculta a satisfação de impulsos egocêntricos
de aproximação de uma figura cultuada. Este leitor percorre o diário
como se ele ainda fosse inédito, como se tivesse sido escrito
especialmente para ele, o privilegiado das intimidades cochichadas
sigilosamente.
Há também os
leitores hipócritas, que buscam no diário as confirmações de suas
restrições ao autor. A leitura é, para estes, uma oportunidade de
flagrar algum deslize personalista que comprove os seus pontos de
vistas negativos sobre o indivíduo em questão.
Os candidatos a artistas, esta outra ala dos consumidores de
diários, buscam desenterrar segredos e receitas do sucesso,
desfrutando do livro com o pensamento voltado sempre para si
próprios, pois querem ler na vida do autor a revelação das apostas
que deverão fazer para chegar aonde o outro chegou.
Já os
leitores-críticos, como é o caso de quem comete estas linhas, buscam
no diário uma possibilidade de entender o universo do escritor, os
seus pontos de vista diante de situações domésticas e públicas, por
crer que nelas existe uma possibilidade de entendimento do conjunto
de sua obra. Estas diferenças entre os leitores que procuram o texto
biográfico do diário são aplainadas por uma característica comum a
todos: o que se pretende, em última
instância, é uma aproximação, uma intimidade com o homem, conhecido
apenas, através de sua obra, sob a máscara de artista. O que se quer
é encontrar a versão original, a face pedestre, de ser humano comum,
obliterada pela obra que lhe dá um estatuto elevado, tornando-o
alguém excepcional.
É esta intenção
de desvelamento que o autor tem que satisfazer ou frustrar, caso não
seja dado a exibicionismos. Creio ser este último o caso de
Saramago. O seu diário é, se lido de uma forma menos religiosa, um
romance, como ele próprio propõe. Com isso, desmonta as críticas que
vêem em seu livro um mero exercício de culto à personalidade: "um
diário é um romance com uma só personagem" (p.9), afirma ele.
Ousaria dizer que este personagem não é o autor, e sim o seu idioma.
Ou seja, os Cadernos de Lanzarote devem ser lidos como uma narrativa
centrada numa língua, sendo Saramago o seu veículo.
A primeira regra para a existência de um diário, pelo menos de um
que tenha mercado, é a estatura intelectual ou artística de quem o
escreve. Depois de ter se tornado uma personalidade européia e de
ter sofrido rejeições proporcionais ao seu sucesso, o escritor acaba
se exilando numa ilha da Espanha que conta com um passado português.
De uma certa forma, ele sai de seu país sem de fato abandoná-lo,
muito pelo contrário, reconquistando, culturalmente, um pedaço de
chão que já estivera sob a égide lusa.
Não se pode
mais ignorar que Saramago é realmente o responsável pela
ressurreição da literatura portuguesa. Isso se deu não só por causa
da fama conquistada pelo escritor, mas principalmente por uma obra
que se empenhou em resgatar os possíveis históricos de seu país. Sua
produção é portuguesa não na medida em que cultua provincianamente
os valores pátrios, e sim por vê-los em confronto com os problemas
universais do presente. Através de Saramago, Portugal deixou de ser
a periferia da Europa, em infrutíferas viagens circulares ao redor
do próprio umbigo, para se tornar um país que não abre mão de seu
papel na história contemporânea.
Esta
ressurreição de Portugal se intensificou depois da implantação do
bloco europeu, momento em que os países mais fracos sentiram, como
nunca, o autoritarismo econômico. Saramago,
que faz parte do exército de resistência à unificação européia nos
moldes em que ela está sendo proposta, é, antes de mais nada, o
escritor que recolocou a língua portuguesa no mapa-múndi. Nesse
sentido, ele corresponde ao desejo de Fernando Pessoa, que via na
língua a única pátria do escritor. O autor de O Ano da Morte de
Ricardo O autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis não só ressuscitou
a cultura lusitana como também está agindo no sentido de dar
relevância às demais culturas irmanadas pelo idioma português,
chegando a desempenhar um papel unificador.
Os seus
cadernos trazem já no nome uma ligação com a ilha e com o desterro.
Falando em casa o espanhol, língua do lugar e de sua companheira, o
diário é o momento em que ele conversa em português, uma vez que
sente necessidade de exercitar o idioma, como prevê que fará durante
a visita de Baptista-Bastos: "Advinho que vou falar mais do que o
necessário porque não é todos os dias que me aparecem aqui ocasiões
de praticar a língua" (p.505). A necessidade de um diário nasce com
a mudança para a ilha: "Em Janeiro, ainda a casa estava em
acabamento, meus cunhados María e Javier, com a participação
simbólica mas interessada de Luís e Juan José, trouxeram-me de
Arrecife um caderno de papel reciclado. Achavam eles que eu devia
escrever sobre os meus dias de Lanzarote, idéia, aliás, que
coincidia com o que já me andava na cabeça" (p.11). O diário,
portanto, marca uma iniciativa de ter sempre consigo a presença
quotidiana de sua língua, é uma espécie de exercício de cidadania
pelo uso do idioma.
Nos três anos
que o volume dá conta (1993-94-95), os eventos mais recorrentes são
as viagens do autor pelo mundo todo, para participar de congressos e
acontecimentos do gênero, os prêmios literários, a unificação da
Europa, a rejeição e o afeto dos leitores e a própria ilha onde
mora. É narrada também a confecção do romance Ensaio sobre a
Cegueira, num momento em que o próprio autor faz uma operação de
cataratas. Esta iminência da cegueira deve ter contribuído para que
o autor buscasse representar numa obra extremamente atual a situação
de um mundo marcado por uma
gritante incapacidade de enxergar as coisas essenciais. As cenas
apocalípticas de seu Ensaio funcionam como uma metáfora do destino
da humanidade que rapidamente perde o poder de discernimento.
Não se pode
olvidar que Saramago descobriu que o destino da cultura ibérica é
colocar-se ao lado da América Latina (isso fica transparente em
Jangada de Pedra, romance que retrata o deslocamento da Península
rumo à América do Sul), surgindo
daí as suas críticas ao enquadramento de Portugal na comunidade
européia. A afinidade com os países menos desenvolvidos se dá em
função da consciência de que todos somos excluídos do poder
econômico. Esta irmandade transcontinental faz com que Saramago,
mesmo que ele não queira, participe da produção cultural
latino-americana. Não foi, portanto, um erro grosseiro do jornalista
estadunidense entrevistá-lo como personalidade da América Latina.
A meu ver, a
era Saramago vai funcionar no sentido de fazer emergir toda uma
parte do continente que ficou submersa mesmo durante o boom da
literatura hispano-americana. Está se aproximando a vez dos falantes
de língua portuguesa e é mais do que significativo que esta
ressurreição tenha sido empreendida por um
português, o que mostra que os brasileiros só têm a perder quando
ignoram a produção cultural lusitana. É chegada a hora da língua
portuguesa conquistar o seu espaço internacional, mas só conseguirá
isso se for capaz de se manter unida. É nesse sentido que José
Saramago é o maior escritor vivo da língua portuguesa: ele conseguiu
chamar a atenção do mundo para o nosso idioma.
Cadernos de
Lanzarote é, portanto, o romance da peregrinação de uma língua,
tornada carne em Saramago, que procura conquistar sem complexo de
inferioridade o seu lugar na história contemporânea. E esse lugar é
à mão esquerda do poder. Não vejo os seus diários como uma aventura
narcisística, mas como uma continuação de sua obra eticamente
empenhada em corrigir o passado para criar possibilidades no
presente. Saramago abre as portas de sua casa para que participemos
de seu sucesso, para que assim possamos reconhecer as condições
criativas e receptivas que a língua portuguesa está hoje a nos
oferecer.
Leia a obra de José Saramago
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