Miguel Sanches Neto
A cicatriz do desejo
22.12.97
O que em tua
face beijo não são lábios, mas a cicatriz mal curada do desejo -
escreveu um bisonho adolescente, que a vida tratou de sepultar no
monturo das horas. O poema se chamava "Desesperadamente lírico". E
se o poema não emplacou, continua válida a idéia de que é preciso
tratar a poesia, principalmente a erótica, como aventura da
imaginação. O amor reduzido a cenas de sexo explícito tornou-se um
produto da sociedade visual que embrutece as pessoas. A valorização
da imagem nua e crua matou o gozo dos jogos, das fantasias, do
subentendido. Como não podia deixar de ser, a literatura erótica
acabou também se perdendo no desfile de carnes e no pouco trabalho
com o véu. Vestir novamente o ato erótico é exigir do leitor o
salutar exercício de desvelamento. O erotismo (que exige a presença
da metáfora) é uma atividade do espírito, um convite para o uso das
faculdades intelectivas (não necessariamente racionais) do ser
humano. Acionar a mediação do intelecto não é matar a sensualidade,
mas dar-lhe um elemento diferenciador da mera pornografia.
Este conceito
de erótico pode ser visto, em graus diferentes, em alguns
lançamentos. Para Silva Alvarenga (Glaura: poemas eróticos, Cia das
Letras, 1996), poeta que floresceu em 1749 e que, portanto, viveu o
período neoclássico de nossa literatura, o erotismo era um
insistente canto de amor. O que dá aos seus rondós e madrigais o
estatuto erótico é a persistência e urgência do tema amoroso, que
torna distantes todos os demais. Não é, na verdade, um canto da
carne nem uma entrega ao delírio amoroso, sob o signo de Baco,
liberdade que só os movimentos literários entre os quais ele se
encontra (o Barroco, penso em um Gregório de Matos, e o Romantismo)
permitiriam. Embora em versos contidos metricamente, há um desespero
que percorre todo o livro em que meia dúzia de situações são
glosadas obsessivamente. Esta obsessão dá um caráter erótico para os
poemas que não chegam a veicular imagens de comunhão carnal. Muito
pelo contrário, todo o drama do poeta é a separação da amada. Por
isso, o verbo mais usado em seus poemas é vir: "Vem, ó Ninfa
suspirada".
Se não existe
uma comunhão dos corpos, é possível vislumbrar uma comunhão mítica
no recurso árcade por excelência de criar uma paisagem bucólica, em
que toda a humanidade é reduzida ao par primordial, o pastor e a
amada, em contato com a natureza. Nesta redução da vida aos
elementos essenciais dá-se a comunhão edênica dos amantes, entregues
ao domínio de Eros.
Nos momentos
mais ousados do livro, o poeta cifra não a consumação de seu desejo,
mas a sua iminência em "A serpente", reinvestindo nesta imagem
bíblica:
Este o vale, é esta a fonte:
Glaura achei aqui dormindo:
Sonha alegre e se está rindo,
E eu defronte a suspirar.
Junto dela, pavoroso,
Vi, oh Céus! monstro enrolado,
Fero, enorme, atroz, manchado,
E escamoso cintilar.
O pastor salva
Glaura da serpente e de si mesmo. Porque ambos são uma coisa só. A
serpente, símbolo fálico, é o sexo que o pastor deseja e teme.
Glaura percebe a proximidade erótica e, no colo de seu salvador,
cora, enaltecendo a força da pureza. Esta aproximação não consumada
vai crescer até se tornar separação, desencadeando todos os
sofrimentos do poeta. Separação que se efetivará com a morte de
Glaura. Todo o livro então é de um erotismo latente, de quem não
conhece o prazer, guardando dele apenas a ansiedade.
Já o sofrimento
amoroso de Glauco Flores de Sá Brito (Poesia Reunida, Curitiba:
Secretaria de Estado de Cultura, 1997) é a impossibilidade de
permanência de um encontro com a juventude. Dois são os grandes
temas deste poeta que, em boa hora, e em primorosa edição, a
Secretaria de Cultura coloca à disposição do leitor: o amor e a
infância. O Glauco de O Marinheiro (1947) é um artista sem nítidos
traços individuais, ainda muito colado ao horizonte poético da
geração do pós-guerra. A sua poesia, neste livro, pronuncia as
palavras da moda. A partir, no entanto, de Cancioneiro de amigo
(1960), os seus dois temas mais caros afloram com toda força. O amor
do poeta era o amor masculino, e isso tem uma forte significação.
Sem escamotear suas preferências, mas também sem fazer delas um
projeto político, Glauco escreve uma poesia amorosa em que as
sutilezas nunca são abandonadas.
O comércio
sexual com jovens é, para o poeta, muito mais do que um simples ato
homoerótico. Antes de tudo, o que lhe interessa é a possibilidade de
um prazer amoroso, que está muito além do encontro entre duas
epidermes. A união com jovens tem sentido filosófico para um
escritor que sempre viveu sob o signo da infância e da adolescência.
Nesta paixão pelos rapazes ele estabelecia uma ponte com sua
juventude perdida. Logo, a paixão é vista como exercício de
rejuvenescimento, de recuperação do tempo esvaído. Assim,
desempenhava um papel restaurador na vida do homem adulto, maduro,
sobrevivente da infância, que súbito se encontrava na imagem juvenil
do parceiro. Um de seus mais belos poemas, "O espelho", publicado em
Azulsol (1985) tematiza justamente a coincidência entre o eu e
outro:
Chego ao espelho e um jovem
está me olhando de frente
Surpreso olho ao redor
não há ninguém ao meu lado
e o rosto insiste no espelho
curioso do meu espanto?
Com cautela olho seus olhos
e ele me corresponde sereno
fitando-me também nos olhos
como um enamorado sempre [...] (p.92)
Ficaremos
sabendo que este ser enamorado é a imagem do próprio poeta, na
juventude. Ele, portanto, via nos seus companheiros a própria imagem
de uma juventude, sendo o amor, nesta versão, um ato narcisista de
reencontro com uma identidade corrompida pelos anos. Isso aparece em
outros poemas, como em "Ante teu corpo adormecido": "E eu me torno o
inocente / de vinte anos / atrás / - ante teu corpo adormecido /
verde e jovem". É neste tipo de amor, confluência do eu e do outro,
do passado e do presente, que se localiza a unidade de sua obra
poética, uma obra pequena (três livros apenas), mas que o faz
figurar ao lado dos melhores poetas que o Paraná produziu.
Sendo o amor
masculino uma estrada que conduz ao país da infância, é esta o
centro de sua produção. Não poucos são os poemas memorialistas,
dentre eles destaque-se "Montenegro na distância", dignos de
aparecer em qualquer antologia nacional. Podemos então dizer que ele
foi essencialmente um poeta erótico, no sentido mais abrangente
desta expressão, por ver como sinônimos poesia e amor.
Glauco Flores
de Sá Brito não deu visibilidade ao ato sexual em si. Como poeta
lírico, para ele o mais importante era o algo de espiritual (o
amante é visto como anjo, ser andrógino) que presidia o prazer.
Embora não abrisse mão do gozo carnal, este era apenas um meio e não
o fim. Dessa forma, sua poesia tem um cunho erótico e não
estritamente homossexual, despertando interesse para os que temos
outras preferências.
Escritor com
outra proposta e outra linguagem, mas dentro da mesma forma de
encarar obliquamente os prazeres da carne, Wilson Bueno (Manual de
Zoofilia, 2a edição, Editora UEPG, 1997) também experimenta no amor
um confronto consigo mesmo: "porque me amo, te amo loucamente". Na
verdade, todos os pequenos poemas em prosa estão alicerçados em uma
estrutura metafórica. O autor passa sempre dos atributos animais
para os humanos com o intuito de operar uma zoomorfização do ato
erótico. Isto faz com que o amor apareça antes representado no
animal, visto como entidade mitológica, para depois revelar-se a
partir de uma sintonia com este zodíaco particular.
Outra
característica importante do livro é a utilização dos pronomes.
Passando da segunda para a terceira pessoa do singular, Wilson Bueno
forja uma imagem do amor sem gênero, fundado numa muito bem
projetada ambigüidade. O ser amado pode ser mulher ou homem.
A chave de
leitura do livro está na epígrafe, tirada de Shakespeare: "A planta
mandrágora é afim com o reino animal porque grita quando é arrancada
e esse grito pode enlouquecer quem a escuta". É na idéia da
afinidade entre os dois reinos (masculino/feminino, animal/humano,
lírico/grotesco) que mora o sentido de um livro que concede
refinamento poético a um amor meio cafajeste.
Em todos estes
livros o ato erótico não aparece como ferida escancarada a
curiosidades entumecidas, mas como cicatriz que terá que ser aberta,
em um exercício de imaginação, pelo leitor.
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