Miguel Sanches Neto
Aprendendo a morrer
07.09.98
Para Paulo Coelho, somente a consciência da
morte nos
permite viver plenamente quem somos
Embora não
tenha nenhuma afinidade com a literatura esotérica, o que sempre o
fez ficar afastado de qualquer livro que a sinalizasse, o crítico se
viu atraído pelo último romance de Paulo Coelho, Veronika decide
morrer (Objetiva, 1998). O pivô desta atração foi o título. Ao
contrário de outros livros do autor, este não fazia nenhuma
referência ao universo da magia. Mas não era apenas a questão da
morte que havia interessado ao rabugento leitor. Há no nome do livro
uma idéia de pacificação. Veronika não decide matar-se, ato brusco
por excelência, mas morrer. Esta mudança do verbo traz algumas
nuanças que o livro desenvolve.
Ainda jovem e
bela, no gozo de todas as suas faculdades, Veronika resolve tomar
alguns comprimidos e pôr um ponto final em sua vida. E faz isso sem
nenhum sobressalto ou nervosismo, "namorando a morte que se
aproximava, e despedindo-se - sem qualquer sentimentalismo - daquilo
que chamavam vida" (p.10). Não existe razão aparente para o
suicídio, apenas o tédio de viver e o sentimento de inutilidade
total.
Paulo Coelho
buscou uma personagem comum, sem qualquer
poder intelectual ou mágico para viver uma história com amplitude
universal. Não se trata de um romance brasileiro, embora ele também
o seja pelo fato de um dos personagens ficar marcado por uma
passagem por Brasília. O que distingue a história é este
internacionalismo que lhe dá uma aceitação fora das fronteiras
nacionais. O relato sobre a moça da Eslovênia pode interessar a
todos.
Sobrevivente
dos conflitos de separação da Iugoslávia,
Veronika vive num país que praticamente não existe. Este drama de
inexistência de sua terra lhe aparece na hora em que está ingerindo
os comprimidos. Lembra que havia lido um artigo sobre computador,
numa revista francesa, em que o articulista perguntava onde ficava a
Eslovênia. A reflexão da personagem, minutos antes de ser derrubada
pela droga que havia consumido, é esclarecedora: "Se não sabem onde
é a Eslovênia, Lubljana deve ser um mito" (p.11). Ao ver negada
a existência de seu país e de sua cidade, ela toma consciência plena
de que a sua vida é tão diáfana quanto este mito de seu país para o
resto do mundo. Assim, fica completa a sensação de inexistência que
a leva rumo à morte.
Quem estava
movida pela certeza de morrer acorda em um sanatório, rodeada por
loucos. Sem conseguir a morte com a ligeireza higiênica que não faz
sofrer, Veronika se transforma em uma doente, que deve passar pela
via crucis. Internada por loucura, ela é tratada como uma paciente
terminal, devido a um problema cardíaco provocado pela tentativa de
suicídio. Começa então a sua descoberta dos sentidos da loucura e o
seu convívio com a morte, uma vez que, segundo o Dr. Igor, ela terá
apenas alguns dias de vida.
O hospício-
que, segundo um prefácio colocado no meio do
livro, é o vínculo entre Veronika e o autor, também internado quando
jovem - tem um sentido positivo dentro do romance. É no hospício que
estão os visionários, os artistas e os idealistas em geral, que não
se conformam com os valores materialistas. Conviver com esta nova
esfera vai ser a grande prova de Veronika que, até aquele momento,
tinha se deixado moldar pelos valores imperantes. Começa então um
processo de desintoxicação - não apenas dos remédios que tomara,
mas principalmente dos valores que deixara cristalizar em sua
maneira de olhar o mundo.
A narrativa, no
início centrada em Veronika, passa a ter outros focos. Aparecem as
histórias do médico que pesquisa o vírus da loucura e principalmente
os dramas de três pacientes: Zedka, Mari e o esquizofrênico Eduard.
Estes últimos são marcados por uma característica em comum: tiveram
seu verdadeiro eu anulado pelas exigências da sociedade planificada
e planificadora - o verdadeiro eu é
"aquilo que você é, não o que fizeram de você" (p.110). No desvelar
de suas vidas, vamos percebendo que o conceito de loucura, para
Paulo Coelho, está relacionado a um conflito entre as aspirações
individuais e as cobranças do meio. Assim, a loucura não é algo
vergonhoso, mas motivo de orgulho. O hospício, embora seja uma
instituição repressora, tem algo de academia, de local de formação,
o que fica explícito nas reuniões promovidas por um grupo de
pacientes já curados, mas que prefere a vida de interno à outra,
entre os homens livres e insensíveis. O nome desta agremiação, A
Fraternidade, já revela que seus membros se encontram identificados
aos dementes. No interior deste hospício/paraíso, acontecem
palestras sobre a natureza da loucura: "Na tradição sufi, o
principal mestre - Nasrudin - é o que todos chamam de louco. E
justamente porque a sua
cidade o considera insano, Nasrudin tem a possibilidade de dizer
tudo o que pensa, e fazer o que lhe dá vontade"(p.109). A demência,
enquanto caminho para a libertação, assume um sinal positivo por
permitir ao indivíduo a realização plena. Embora estes loucos já
curados, pois estão conscientes da loucura e de seu poder de
alargamento da mente humana, tenham resolvido psicologicamente o seu
trauma, que os torna diferentes do resto das pessoas, eles ainda não
conquistaram a coragem para enfrentar o convívio com o mundo
externo, buscando no hospício a segurança da vida entre seus pares:
"Zedka Mendel terminaria voltando ao hospital - desta vez por conta
própria, queixando-se de males inexistentes, só para estar perto das
pessoas que pareciam compreendê-la melhor que o mundo lá fora"
(p.83).
A entrada de
Veronika neste meio funciona como estopim de
uma nova vontade de viver, que toma conta destes seres acovardados.
Moça extremamente carregada de vitalidade, ela assume a tarefa de
morrer. A doença, que a consumirá em poucos dias, faz com que os
demais internos percebam a inutilidade do exílio voluntário no
hospício e sintam a urgência de aproveitar cada minuto da
existência. Este exercício da morte por um ser no auge da vitalidade
causa um choque, que acabará produzindo uma redefinição de rumos.
Ela funciona como representação da morte imediata de todos.
Não há dúvida
de que, na sociedade consumista, a consciência da morte é um
elemento desestabilizador. A fuga deste confronto leva o homem ao
consumo de bens materiais como único sentido para a aventura humana.
Em última instância, vivemos apenas para consumir e, dessa forma,
não pensar na indesejada das gentes. Num modelo social voltado
exclusivamente para o lucro, a morte foi sendo apagada, criando a
sensação de que somos eternos. Em cada novo
objeto de desejo que é lançado pela indústria encontramos a promessa
implícita de que, ao consumi-lo, estaremos garantindo uma presença
segura num agora sem fim. Vestir as roupas da moda, falar os
assuntos do momento e adquirir quinquilharias de última geração é
uma forma de conquistar, ilusoriamente, a eternidade. Pensar sobre a
morte é, portanto, algo extremamente perigoso para a sociedade
capitalista.
Veronika é a
personificação da morte, por isso seu fim iminente desencadeia uma
súbita vontade de viver em seus companheiros de internação. Mas não
apenas neles. Ela própria, que havia decidido morrer, passa por uma
mudança. Somente depois de ter aceito integralmente o fim, com todas
as suas incertezas e incômodos, Veronika se encontra consigo mesma.
Ficamos então sabendo que seu grande e silenciado desejo era ser
pianista, tendo sido este reprimido pela família, que queria para
ela uma ocupação mais rentável. Apenas no hospício, diante da
aproximação do fim, ela reassume a sua condição de artista, tocando
para Eduard e se apaixonando por ele. O retorno de sua paixão mais
íntima, a música, e a conquista de uma nova paixão, o rapaz
esquizofrênico, dá à personagem um novo alento.
A jovem só quis
realmente viver quando lhe restavam poucas horas de vida. É na
consciência da morte que se encontra, portanto, a força para
assumirmos nossa mais profunda identidade. Da aceitação pacífica de
ser quem não se é nascem os males psicológicos que tanto atormentam
o homem. Para ser aceito, renunciamos à nossa individualidade
adiada, que só pode aflorar quando percebemos que é ínfimo o tempo
que nos resta.
Eduard é também
um artista (pintor) reprimido, que acabou internado pelos pais
simplesmente por estes não terem enxergado o filho como ele era, e
sim como queriam que ele fosse. Logo, a loucura é vista por Paulo
Coelho como uma maneira de resistir à padronização. Não se trata,
portanto, de um mero acaso ou de um lance promocional o fato de a
narrativa se passar no território da antiga Iugoslávia, local que
ficou marcado pela intolerância religiosa, étnica e política, depois
de um período de equilíbrio: quando "Milosevic ainda estava no
poder, homens e mulherem viviam com suas diferenças e procuravam
harmonizar-se além dos conflitos
regionais" (p.185).
Veronika decide
morrer é uma obra valiosa por questionar a intransigência, propondo
o exercício da diferença como única forma de solucionar os dramas do
homem moderno, cuja identidade está sendo apagada por um poderoso
processo de homogeneização. Para ter a coragem de dizer não a tudo
que, contra nossa vontade, nos obrigam a ser, temos que reaprender a
pensar em nossa morte.
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