Miguel Sanches Neto
Tolentino em dois tempos
18.05.98
Refundindo sua coletânea de estréia, Bruno Tolentino
acrescenta à
lírica contemporânea um grande livro
Além do grande
polemista, cada vez mais indispensável em nossa cultura sonsa, há em
Bruno Tolentino o poeta. Não que estas duas facetas estejam
separadas. Difícil é dizer onde termina o poeta e onde começa o
provocador, que tem colocado abaixo muitos de nossos ídolos de
pés-de-barro. A reedição de seu livro de estréia, Anulação & outros
reparos (Topbooks, 1998), publicado em 1963, é muito mais do que uma
reedição. Trata-se de outro livro, em que dois poetas distintos se
confrontam numa queda de braço em que, ao que tudo indica, não
existe vencedor. De um lado temos o jovem poeta, com suas crises
sentimentais e metafísicas; do outro, o poeta maduro que, embora
perceba os ridículos e exageros de seu antepassado, não consegue
deixar de se comover com ele.
Isso faz com
que o livro agora editado conte com um contraponto, um olhar
crítico, colocado nas extremidades do volume, ou seja, no poema
inicial, "Ao divino assassino", e no final, "Uma romã para 1997",
espécie de parênteses poético que envolvem os textos da juventude.
Muito mais do que uma simples reedição, portanto, estamos diante de
uma obra nova em que a problemática inicial, uma desesperada
percepção da passagem do tempo, que levava o jovem ao confronto
permanente com o cinéreo e o funéreo, detonado por uma
paixão frustrada, que subitamente transforma o presente em passado,
é acrescida por uma reflexão sobre os caminhos da poesia e da vida
para aquele jovem que se encadernava em uma obra marcada por um
discurso grandiloqüente. Vejamos primeiro o que estava em jogo nos
poemas mantidos nesta edição, segundo o poeta, definitiva.
Composto por
textos do fim da década de 50 e começo da de 60, a produção do jovem
Bruno Tolentino se reveste de uma armadura erudita. Não existem
concessões à modernidade, mas um profundo desejo de ligação com um
universo lírico estável. Isso pode ser visto no uso de um léxico
marcadamente poético e na sua preferência pela forma fixa. Assim,
linguagem e forma aspiram a uma condição permanente, revelando um
autor que não tem como meta a constituição de uma linguagem
vinculada ao tempo presente, pelo medo de ligar-se ao perecível. O
seu objetivo é vincular a linguagem à língua, rompendo os lastros
temporâneos. E isso é feito através do estabelecimento de conexões
não apenas com poetas já clássicos, mas com todo um arcabouço de
referências mitopoéticas.
Ele se coloca,
portanto, nos antípodas do ideário modernista,
que estava sendo reproposto na década de 50 pelas vanguardas
temporãs. Para o poeta modernista, a poesia devia assumir o tempo
presente, fazendo do provisório, e não mais do eterno, o seu campo
de ação. O senso do precário vai marcar uma geração que, para dar
lugar aos fatos cotidianos, abriu mão da língua universal e
atemporal, agora recortada por uma poesia coloquial, próxima da
prosa de rua.
É bom lembrar que a poética modernista, estando desde o início
ligada ao advento da sociedade da máquina, absorve desta o princípio
de obsolescência. O poeta trabalha com a matéria transitória,
falando do agora para o agora. A poesia assim concebida se assume
como falência, como morte.
Era natural,
portanto, que o jovem poeta, vivendo uma crise
sentimental e metafísica, desdenhasse esta herança imediata e
buscasse em outra filosofia de composição a sua mundividência.
Lutando contra a anulação da matéria, encontrada em cada exemplo por
ele vivido, o jovem transferia para o matrimônio poético com uma
linguagem elevada o seu desejo de permanência. Isso fica claro até
em "Ao divino assassino", poema recente e mais sereno em que
chora a perda definitiva da mulher amada, que ele já havia perdido
para outro. O último verso revela uma fé na transcendência: "mata,
Senhor, que a morte não faz mal!"(p.21). Para o jovem Tolentino, só
se consegue reparar os estragos da anulação investindo numa forma e
numa linguagem voltadas para a permanência: "[...] linguagem / em
que um mínimo / há de // ou arder / ou salvar-se / para sempre"
(p.151). Sua Ars poetica é clara ao postular uma junção dos cacos do
tempo:
[...]
a hera seca e o muro cai por dentro,
mas certo incêndio solitário pode
a seu vitral sem face atar o tempo (p.94)
Mesmo este
poder de retenção da vida que se esvai passa por questionamentos,
como no poema "Ária para o centauro", em que o poeta duvida que a
erosão sem freios possa sem contida. Tal desconfiança, no entanto,
não impede que ele invista numa linguagem voltada para o eterno,
fugindo de tudo que esteja muito ligado ao precário presente.
Fuga esta que o
conduz ao hermetismo. Através de um verbo
enigmático, em que a realidade fica dissolvida, ou adiada, o poeta
encontra uma possibilidade de desvincular-se de suas circunstâncias,
projetando-se, via criação literária, para além delas. Logo, sua
poética oblíqua marca um desejo de neutralizar o confessional.
Este retrato do
poeta quando jovem revela-o como um centauro, o ser cindido, metade
espírito, metade matéria, que vive a condição dolorosa de quem quer
ascender e se sente preso à animalidade. A prática da poesia,
através de um verbo perene, é a forma que ele encontra para
transfigurar-se. E ele aceita esta tarefa obsessivamente.
Embora marcado
pelo excessivo, característica própria da juventude, a parte de
Anulação & outros reparos que vem da primeira edição guarda um
intenso poder de comoção. É impossível ler estas cultas produções do
mocidade sem se deixar impregnar pelo espírito exasperante de quem
se debate para conter a ação corrosiva do tempo. Há versos realmente
primorosos neste livro, como os que seguem:
E mesmo as árvores da infância são tamanhas,
Plantaste-as e não cabem em vossos braços. (p.90)
Constatar a
beleza de alguns grandes poemas e de muitos versos e a força do
conjunto não deve nos impedir de ver nele os elementos da
imaturidade. Destes, o mais gritante é o uso de linguagens
emprestadas. Há, portanto, um tom estudantil no livro, visível tanto
no número de citações (principalmente em outras línguas), que é uma
maneira escancarada de o jovem mostrar que leu as grandes obras -
isso é muito freqüente em poetas brasileiros do período romântico-,
quanto no uso de uma linguagem gratuitamente complicada.
Ciente destes
problemas, é o próprio Bruno Tolentino quem
aponta isso no último poema do livro. Em "Uma romã para 1997",
escrito num verso curto (de quadro sílabas), vizinho da prosa, o que
lhe dá um tom de crônica, o poeta se olha no livro da década de 60 e
vê que, na verdade, não está diante de um retrato, mas da caricatura
do poeta quando jovem. Este longo texto é uma sorte de "vida passada
a limpo", em que o autor revê toda a sua experiência literária, ora
tentando entender os porquês de certas idéias juvenis, ora se
deixando comover por sua sina torta, prefigurada nos verdes anos.
O poema, um
diálogo com o poeta em formação que ele foi, define a própria
natureza dialética de um livro em que duas maneiras distintas de
fazer poesia estão se confrontando. "Uma romã para 1997" marca uma
evolução rumo à linguagem sem complicações desnecessárias, que poda
o excessivo e substituiu a crença no elevado por uma valorização do
baixo, do sujo.
Não folheaste
jasmins, jacintos,
nardos, cardos
em labirintos
coisa nenhuma:
tua canção
e a flor das mãos
não tinha haste,
tinha espartilho,
era só bruma,
perfume e brilho.
Faltava o estrume. (p.223)
Desta forma, o
poeta busca a completude, apropriando-se dos elementos ausentes
naquele seu livro, num encontro com o que habita o real, o chão da
existência, a linguagem humilde.
É também um
exercício de preparação para a morte, incorporada à própria
linguagem. Este pungente diálogo não só potencializa os poemas
matinais como transforma Anulação & outros reparos em um dos grandes
livros da poesia brasileira desta segunda metade do século, fazendo
com que fique representada nele a superação da poética da fantasia e
do artifício.
|