| 
             
            
            Miguel Sanches Neto 
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A poesia na casa 
            dos trinta 
             
             
            
        
            21.07.97 
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Esta é uma casa 
            com muitos cômodos, dos quais apenas uns poucos sobreviverão à ação 
            corrosiva do tempo. Percorrê-la agora é sempre uma aventura 
            perigosa. Mas o crítico, recém-instalado neste território de 
            passagem, sente uma obrigação geracional de tentar compreender os 
            demais moradores desta mansão.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Nascido em 
            1960, o carioca Marco Antonio Saraiva (Entre nervuras, Sette Letras, 
            1995) encontra-se mais próximo dos poetas das gerações anteriores do 
            que da sua. O seu livro, sintomaticamente, traz um prefácio assinado 
            por Décio Pignatari que, fazendo um resumo da poesia formalista do 
            final do século passado até agora, vê em Saraiva um continuador das 
            propostas concretistas. É claro que para Pignatari, o momento axial 
            de toda a poesia universal é o concretismo. Ávidos por batizar os 
            discípulos, pois sabem que esta é a única maneira de dilatar a 
            sobrevida de suas próprias obras, eles reconhecem no autor de Entre 
            nervuras uma maturidade poética que está longe de existir. Trata-se 
            de um livro previsível, que se perde em um léxico esdrúxulo, onde 
            abundam termos como: zoomórficos, serpentário, grafemas, etologia, 
            fenótipos, pandemia, ópsis... Tudo isso usado de forma, para 
            valer-me de uma redundância, adolescente e exibicionista. Outro 
            cacoete é o uso gratuito, isto é, sem necessidade expressiva, de 
            termos com parentesco sonoro: ulhas sob as unhas, do térreo ao 
            terraço, caninos cálamos calcários, o ofídio em ofício, os silvos da 
            saliva (?) e um etcétera igualmente monótono. A poesia de Marco 
            Antônio Saraiva é obtida através de reprodução em laboratório, sem o 
            contato erótico com a realidade. Desta geração gelatinosa (perigo: 
            os cacoetes são contagiosos!) surgem textos intelectualmente 
            pretensiosos, que escondem sua insignificância sob o smoking alugado 
            da alta cultura. Quando o poeta fala da vida, da natureza, das 
            pessoas, é sempre a partir de um viés artístico. Os componentes 
            deste universo percorrem o caminho que leva da arte para a 
            realidade, como o "pardal que / voa na pintura / e sai da tela". 
            Isto pode ser visto na inflação de citações (alterofilismo praticado 
            pelos mestres paulistas), que dá uma musculatura oca aos poemas. O 
            pardal que sai de sua tela é invariavelmente empalhado.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Saraiva aceita 
            passivamente o legado dos formalistas, deleitando-se com uma 
            escravidão que faz com que a sua poesia não passe de uma nota ao pé 
            da já velha página do movimento concreto. Ele fica remoendo um 
            bagaço ressecado na esperança de conseguir algum resíduo de garapa. 
            Isso torna sua obra recomendável por seus mentores intelectuais, a 
            quem se deve creditar mais este equívoco.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Oriundo do 
            interior de Minas Gerais, Iacyr Anderson Freitas, nascido em 1963, 
            (Lázaro, Edições D'Lira, 1995) não é estreante como Saraiva. E nem 
            está tão colado à poesia formalista. Embora as ressonâncias desta 
            possam ser encontradas na disposição gráfica de seus poemas, que é 
            da mais gritante gratuidade. Reunidos em torno de uma imagem 
            bíblica, via T. S. Eliot, segundo o qual Lázaro ressuscitará para 
            dizer tudo, estes poemas comunicam uma ansiedade que lhes dá um 
            traço nervoso. Há neles um desejo de tocar nas coisas que tocam o 
            poeta, que em um ou outro poema acaba gerando boa poesia, como em 
            "Regresso", texto em que o bardo se confronta com um espaço do 
            passado e sente a fraqueza do verbo diante da realidade semovente:
             
             
            inútil palavra  
            inútil  
            a letra  
            que atravessa  
            este alqueire mínimo do tempo  
            para fundar  
            outra instância,  
            lume que também  
            esgota-se de florir  
            e noutro embarcadouro  
            se arremessa. 
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O tema do livro 
            é justamente a luta vã contra o esquecimento, porque diante dele as 
            palavras tornam-se inúteis. Há, portanto, uma significação na 
            falência deste verbo que não consegue enunciar o que ficou perdido 
            nas dobras do passado. Os poemas, talvez por isso mesmo, não são 
            memoráveis, dissolvem-se no próprio ato da leitura, transmitindo ao 
            leitor uma sensação de vazio.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            O drama que 
            perpassa essas páginas é o de quem busca se encontrar no poema: "o 
            que escrevemos, nossa mácula, / como lembrança, / nos escreve". 
            Lázaro assim é a imagem de um tempo que, mesmo provisoriamente 
            ressuscitado, voltará a fenecer. Iacyr Anderson, ao contrário de 
            Saraiva, sente a passagem do tempo. Este é um sentimento típico dos 
            que cruzaram a linha de perigo dos 30. Tal disposição de espírito dá 
            relevância ao livro que só não chega a ser bom pela ansiedade. 
            Faltou enxugar mais os poemas, não apenas na quantidade de versos e 
            de imagens, mas também na sua apresentação gráfica.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Um ano mais 
            novo do que o poeta mineiro, Majela Colares (O soldador de palavras, 
            Ateliê Editorial, 1997) não tem a força expressiva de Iacyr, 
            contentando-se em fazer da poesia um simples trabalho de 
            versificação (no sentido mais amplo do termo). O seu livro é um 
            caderno de exercícios, onde o poeta recolhe os resultados de seu 
            aquecimento: temos poemas em terça rima, sonetos, dísticos, poemas 
            visuais, poema piada e poesia engajada. É um caminhar pelo museu da 
            poesia brasileira. O que talvez tenha uma explicação. Majela Colares 
            guarda de Manuel Bandeira, seu conterrâneo, o gosto de borboletear 
            pelas diversas formas de expressão. Bandeira experimentou-se em 
            quase todas as fontes poéticas, deixando sempre impressa a sua 
            inquestionável individualidade. Majela não chega a isso, embora em 
            um ou outro momento, geralmente nos poemas menos pretensiosos (ver 
            "Poema anônimo", parcialmente transcrito mais adiante), ele consiga 
            encantar.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Na verdade, 
            estamos diante de um soldador de estilos, o que comprova que o poema 
            concreto, colocado ao lado de um soneto parnasiano, já faz parte da 
            tradição - estando despido de qualquer indício de vanguardismo. Para 
            Majela, não há conflito entre o tradicional e aquilo que se 
            convencionou chamar de novo na poesia brasileira. Todos estes 
            territórios poéticos são vistos como espaços xipófagos, com 
            fronteiras livres. O poeta transita por elas como quem freqüenta um 
            museu, locomovendo-se, em poucos passos, de um quadro de Renoir a um 
            do mais revolucionário Picasso, com a mesma curiosidade histórica, 
            quase paleológica.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Faltou a Majela 
            Colares descobrir a forma poética que lhe é mais próxima. Só depois 
            de fazer esta escolha ele poderá escrever os poemas que viveu, 
            deixando de lado a escrita de poemas que apenas leu:  
             
            O poema que não fiz  
            (mas sempre canto)  
            está em mim [...]  
            é o mais inconstante  
            indefinido  
            dos poemas que vivi  
            o poema que não fiz  
            traduz meu mundo  
            está implícito...  
            único  
            em meu verso  
            já não sei quem sou  
            quem ele é  
            - fundiram-se todos os limites 
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            É este momento 
            de fusão entre o poema e o poeta e, por extensão, entre figura e 
            forma, que podemos vislumbrar em um dos mais promissores poetas 
            jovens do Brasil, nascido também em 1964: Heitor Ferraz, que estréia 
            com Resumo do Dia (Ateliê Editorial, 1996). Para este autor, as 
            conquistas modernas da poesia existem de forma natural. Ele não 
            escolhe o formato previamente, mas o próprio poema é que define o 
            seu corpo, que é discretamente moderno. O resultado é uma poesia que 
            não está deslumbrada consigo mesma, passando para o leitor a idéia 
            de serenidade. Ao contrário da tendência hegemônica do estilo aos 
            trancos e barrancos, tanto formal quanto semanticamente, o seu tem 
            uma cadência suave. O problema principal de Heitor Ferraz não é 
            metalingüístico. Ele, a todo momento, está se deparando com a 
            questão existencial na sua acepção mais ampla.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Sensível ao 
            choque que é cruzar a fronteira das três décadas de vida, Heitor 
            recupera poeticamente a infância, até no projeto gráfico do livro, 
            que reproduz a máquina de gravar em fita plástica, tão comum no 
            período de nossa ingenuidade pavorosamente perdida.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Seus poemas não 
            fazem pose na página, brotam espontaneamente do papel, dão o seu 
            recado e se recolhem com recato para que o próximo faça a sua parte. 
            Isso cria um ritmo de tranqüilidade até nos momentos mais fortes do 
            livro. Ser despretensioso hoje em dia, em época de feroz competição, 
            é algo muito perigoso. Mas Ferraz não se preocupa, porque notamos 
            que é mais importante para ele ser poeta para si do que vender uma 
            imagem nobiliária para os picaretas literários que avultam em cada 
            esquina.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A sua poesia 
            assume-se, antes de mais nada, como uma experiência temporal e 
            cumpre a nobre função de ajudar a viver. O poema "Infância" enuncia 
            o drama da perda, por paradoxo, de forma reconfortante:  
             
            Nem mesmo a árvore, um dia nave,  
            conteve os brinquedos que foram seus galhos.   
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Isso só é 
            possível graças a um ritmo sem sobressaltos, em que o lirismo 
            transmite uma idéia de tranqüilidade, fortalecendo uma aceitação 
            filosófica do incontornável. Isso faz de Heitor Ferraz, acima de 
            tudo, um poeta do significado - o que é ser franco-atirador em uma 
            tradição poética moderna essencialmente preocupada com o bagaço das 
            palavras.  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A casa dos 
            trinta é um momento axial em que a poesia passa por um processo de 
            maturação. Dos quatro poetas, é justamente o mais novo, Heitor 
            Ferraz, quem já conseguiu metabolizar o legado moderno, contribuindo 
            assim para o amadurecimento de uma lírica que insiste em ser 
            infantilóide.  
  
                                         
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
                                                    |