Miguel Sanches Neto
Saramago, a vaidade justificável
05.06.99
Novo volume de diários de Saramago
é uma leitura indispensável
Um diário é um
cômodo íntimo de uma casa. Nele, encontramos o autor em suas roupas
domésticas, vivendo como o comum dos mortais. O que impera é o
acontecimento miúdo, as pequenas vaidades, as alegrias cotidianas,
os prazeres de ver a vida que passa, as indignações, etc. Quando o
diário é escrito por uma grande personalidade, a estes móveis mais
inexpressivos são acrescentados outros: a sua participação em
grandes acontecimentos, sua concepção de mundo e os eventos dos
bastidores da vida pública por ele vivida. É, invariavelmente, a
parte interna da casa, as intimidades do edifício, com suas manchas
de bolor e com sua decoração, que encontramos na leitura dos textos
nascidos sob este rótulo.
O leitor de
diários está sempre atrás das grandezas e das fraquezas de quem
escreve e sempre será possível encontrá-las nesta categoria de texto
em que sobressai um eu. Acusar um autor de ser ególatra é algo que
não diz absolutamente nada, servindo apenas para depor contra a
inteligência de quem faz tal afirmação. Todo diário é, em sua
essência, um culto do eu e, portanto, todo autor de diários é um
cultor de si mesmo. O que varia é o grau de presença do eu, uns são
mais e outros menos ególatras, e natureza desta presença, algumas
são justificáveis pelas questões que suscitam.
Quem procura
tais textos deve portanto saber que o que ele encontrará é um
discurso do eu, que pode vir mais velado, como quando um viajante
mostra uma paisagem ou fala de questões sociais. Mas o eu, neste
caso, não está ausente, apenas oculto. São suas as opiniões e seu o
olhar. Até esconder o eu não é mais do que chamar a atenção para
ele.
No diário tudo
é vaidade. Quem escreve é vaidoso por levar a sua vida a sério, por
dar-lhe importância ao ponto de escancará-la ao público. E quem o lê
também é vaidoso, porque no fundo quer se ver no diário. Mesmo que
não seja conhecido do autor, ele quer se reconhecer na vida privada
deste. Depois que começou a transcrever cartas em seus diários, cujo
segundo volume da edição brasileira acaba de ser lançado (Cadernos
de Lanzarote II, Cia. das Letras, 1999), José Saramago passou a
receber um número muito maior de missivas, como fica sugerido pela
recorrência delas no volume em questão. Também deve ter aumentado a
freqüência de visitas à sua casa e de convites para participar de
eventos. Pois são estas as matérias do diário, espaço da vaidade por
excelência. O próprio artigo que escrevo não deixa de ser movido
pela vaidade de freqüentar a sua casa, de ocupar-lhe um mínimo
espaço.
Isso posto,
acabemos com as acusações ao autor. Saramago é tão vaidoso quanto
quem o lê. Ponto final. Abramos outro parágrafo.
Por baixo desta matéria mais mundana e perecível pode ou não haver
uma base sólida. É isso que deve definir a relevância de um diário.
Assim, a imprescindibilidade dos Cadernos de Lanzarote II se
localiza em duas questões axiais, pelo menos para este crítico. A
primeira é a sua proposta de um retorno ao autor. A segunda é a
história (que geralmente fica no mais completo segredo) do
nascimento da ficção, da sua fase pré-natal.
Durante as
longas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a
literatura sofreu uma aceleração do movimento de tecnicização que
tem acompanhado a modernidade. Nunca, como nesta segunda metade do
século, ser moderno significou de forma tão primária investir, em
todos os sentidos, em aparatos tecnicamente sofisticados. A
estética, na arte, acabou ocupando o mesmo espaço que os objetos
eletrônicos têm em nossa vida. O homem viu-se reduzido a um ser
perplexo em meio a coisas que roubaram o seu lugar, condenando-o ao
exílio. Que isso tenha acontecido no mundo material já é algo
assustador, mas que a mesma coisa tenha se manifestado no mundo da
cultura é que me desespera. Tanto na crítica (entregue ao estudo de
questiúnculas técnicas), quanto na filosofia (perdida em conceitos
vagos) e nas artes (que enaltecem o domínio dos instrumentos), o
homem passou a ser uma figura dispensável.
No território
específico de Saramago - a ficção -, o centro das atenções foi
transferido para o narrador, ou seja, para um lugar técnico da
narrativa. A obra, dentro desta visão distorcida, ganha relevância
quando há a construção aprimorada de um narrador. O livro, portanto,
passa a valer pelos recursos que convoca e não pelas verdades
humanas condensadas nas trajetórias de seus personagens. Quando a
figura do narrador se sobrepõe, o autor perde espaço - o que é o
mesmo que dizer: o homem deixa de ser relevante. "O problema está,
mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de
comprometer-se com o cidadão, e que muitas das teorizações em que se
foi deixando envolver acabaram por constituir-se como escapatórias
intelectuais, modos de disfarçar, aos seus próprios olhos, a má
consciência e o mal-estar deste grupo de pessoas - os escritores –
que, depois de terem se considerado a si mesmas como farol e guia do
mundo, acrescentaram agora à escuridão intrínseca de todo o ato
criador as trevas da renúncia e da abdicação cívicas"(p.118).
Vendo neste
culto do narrador uma escapatória intelectual, Saramago propõe que a
literatura dê maior visibilidade às pessoas. Só isto já seria mais
do que suficiente para justificar os seus diários. O diário revela o
homem Saramago, não como o reverso do escritor, mas como o
homem/escritor, este ser indissociável. Ele não vê o escritor como
um personagem, como uma criação intelectual, e sim como um ser vivo
que adquire estatuto literário. Assim, o literário é um estado
decorrente e revelador do real e não um mascaramento deste.
Poderíamos até arriscar a dizer que não há diferença significativa
entre os Cadernos de Lanzarote e os demais títulos do autor. Todos
estão a serviço do homem. Este movimento de retorno ao autor é o
mesmo movimento que buscou dar espessor humano tanto para a história
(Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa) como para o
personagem de ficção criado por Fernando Pessoa (O ano da morte de
Ricardo Reis). Neste livro, Ricardo Reis sai do mundo da literatura
(onde se caracteriza por um programático abstencionismo) e penetra
no mundo dos homens, para morrer como tal. Ele, ser sem corpo, se
solidariza com a sofredora espécie humana. Alguém devia estudar as
relações entre este romance e o filme Asas do desejo, de Wim Wenders.
Seus diários
revelam ainda a precedência do humano no processo de gestação de seu
mais recente romance: Todos os nomes, uma parábola sobre a
imortalidade conquistada historicamente através da capacidade que o
homem tem (e que muitas vezes acaba obliterada) de manter vivas,
através da memória, pessoas que já se foram. Toda a busca do
personagem de Todos os nomes, o escriturário José, um ser de
essência autobiográfica, surgiu de um fato vivido por Saramago. Ele
passou a desentranhar dos arquivos informações sobre um irmão morto
no início da infância. O interesse pelo irmão deu origem a uma
parábola (de caráter histórico e não religioso - que fique bem
claro) em que ele propõe o interesse irrestrito por todos os seres
humanos. Está aí não só a gênese da literatura de Saramago como
também a razão de seu sucesso. Num período em que a maioria escreve
a partir de uma concepção literária e artificiosa, ele se vale de
suas vivências mais profundas, criando uma obra que encanta pela
autenticidade.
É preciso ler
os Cadernos de Lanzarote II perseguindo estas discussões e não atrás
de exemplos de vaidade. Comecei este artigo dizendo que um diário é
um cômodo íntimo de uma casa. A vasta produtividade do autor faz com
que ele acolha muita coisa, transformando os cadernos numa espécie
de quarto de despejo. No futuro, quando boa parte dos temas
envelhecer, será preciso organizar este quarto, deixando apenas os
móveis indispensáveis.
Leia a obra de José Saramago
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