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Miguel Sanches Neto
 

Mapa da poesia portuguesa contemporânea



28.06.1999
 

A poesia moderna de Portugal está limitada ao norte por Álvaro de Campos, ao sul por Ricardo Reis, a leste por Alberto Caeiro e a oeste por Fernando Pessoa. É este, no senso comum, o mapa da modernidade lírica da terra de Camões, que aparece para nós como uma planície humana ao longo da segunda metade deste século. A este mapa, Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno vieram dar espessura com a Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea (Lacerda Editores, 1999), obra que resgata os acidentes geográficos de uma paisagem que era vista como plana. O leitor encontra neste alentado volume os principais poetas portugueses nascidos neste século e cuja produção, em conseqüência disso, se localiza majoritariamente nas décadas posteriores aos anos 50. Então estaria nesta antologia toda a poesia portuguesa contemporânea? Mesmo não conhecendo o atual universo literário português e confiando plenamente na seriedade do trabalho dos dois poetas brasileiros responsáveis por este volume, acredito que devem haver outras tendências, outros poetas, que ou não correspondem ao gosto dos antologistas ou vivem ainda no anonimato. Portanto, a poesia portuguesa contemporânea é com certeza maior do que este recorte panorâmico, o que não diminui em nada o caráter representativo de tal seleção.

Assim, quando falarmos, neste artigo, da poesia contemporânea portuguesa, não estaremos nos referindo a um campo literário tal como ele é de fato (isso seria praticamente impossível), mas tal como ele nos está sendo apresentado por Alberto da Costa e Silva, que sempre foi muito ligado ao universo lusitano, e por Alexei Bueno, um poeta despido dos preconceitos da modernidade tropical.

A busca da modernidade no Brasil, a partir do Modernismo, criou um divórcio com Portugal, tido como um país atrasado, como periferia da Europa. As tradições do centro europeu nos interessaram mais, permitindo inclusive que nos rebelássemos contra nosso pai português. De um lado, a valorização da língua brasileira e, de outro, a eleição de afinidades com autores de outras línguas fizeram com que se cultivasse um descaso pela vida cultural de Portugal, que passou a ter, cada vez mais, uma importância menor no cânone literário brasileiro. Mesmo Fernando Pessoa demorou a ser incorporado à nossa biblioteca e só o foi depois que conseguiu renome em outras línguas e assim mesmo entrando antes como um escritor cosmopolita (por se expressar também em inglês e francês) do que como um representante da língua portuguesa. Com o declínio econômico e político de Portugal, preferimos nos aproximar de outros países, que nos garantiam uma imagem de modernidade industrial que a pátria lusitana estava e está longe de poder nos fornecer. O que foi visto como defeito, figurava como qualidade para um Murilo Mendes, que soube ver na Península Ibérica uma reserva de humanismo dentro de uma Europa maquinizada.

Portugal permaneceu definitivamente ligada a uma idéia de passado, da qual fugíamos crente em nosso destino de nação do futuro. Assim, um secular desejo de independência de nossa história de colônia, aliado a um projeto de modernização a qualquer custo (o que nos transformou em colônia de outra metrópole), fez com que nos tornássemos refratários a tudo que viesse do Portugal contemporâneo. Em um ou outro momento, um escritor de além mar burlava a alfândega e nos chegava de contrabando, sendo consumido por membros de determinados grupos, mas sem alterar o quadro geral. Esta separação não nos deu nem o idioma brasileiro tão desejado, gerando, isso sim, um empobrecimento da língua, predisposta à influência de todos os estrangeirismos e aos relaxos oriundos de uma incultura crônica, e nem nos conduziu à tão propalada modernidade. Mesmo durante o boom da literatura hispano-americana não encontramos o nosso espaço cultural no Ocidente, principalmente porque, naquele momento, o interesse era pelos produtos de uma língua (o castelhano) e não pelos de todo um continente.

Apenas agora, na era pós-Saramago, quando o mundo começou a se pensar como blocos, o que deu a Portugal o status de Europa, estamos admitindo a irmandade com a velha metrópole, uma irmandade que já não interessa muito aos portugueses. O fato é que estamos vivemos um momento de reconciliação com esta figura paterna e isso é extremamente saudável para a literatura. O que não quer dizer que é necessário seguir o modelo português de cultura e língua, mas sim que ignorá-lo, como vínhamos fazendo, é uma verdadeira estupidez. Conhecer as literaturas de língua portuguesa é fortalecer a cultura brasileira, livrando-a de uma propensão para a indigência, fortificada pelas seqüelas das subculturas de massa. Quanto maior for o volume de leitura de bons textos escritos originalmente em português, mais estaremos contribuindo para a melhoria de uma tradição brasileira, que não deve ser posta a reboque da lusitana, mas que também não pode prescindir de suas riquezas.

Dentro desta situação, a Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea funciona como um excelente antídoto contra o culto da aridez racionalista na lírica nacional. Alexei Bueno, na introdução, lembra que a poesia brasileira "sempre sofreu e continua a sofrer de uma espécie de fetichismo da objetividade, o mesmo que causou entre nós a hegemonia do Positivismo, do Parnasianismo e depois de outros ismos formalistas das chamadas vanguardas, todos muito objetivos"(p.23). É por esta tradição racional, na qual se funda boa parte de nossa modernidade, que nos separamos da moderna lírica lusitana que, como assevera Alberto da Costa e Silva e pode ser comprovado pela leitura da antologia, sofreu uma forte tendência surrealista. Não gostaria de pensar que a tradição portuguesa é melhor do que a brasileira por romper com o culto do objetivismo. No fundo, ambas caracterizam-se por uma certa rarefação que me incomoda, uma por ser objetiva de mais e outra por ser objetiva de menos ou, em outros termos, uma por ser subjetiva de menos e outra por ser subjetiva de mais. Quanto a este item, temos tanto que aprender com os poetas portugueses quanto eles têm o que aprender conosco. O resultado do jogo, portanto, é 1 a 1.

A lição mais rica da poesia portuguesa contemporânea não é a que leva ao legado surrealista, mas sim a uma aceitação menos traumática da tradição. Enquanto os poetas brasileiros gastavam energias com experimentalismos vazios, ou seja, voltados para si mesmos, os portugueses trabalhavam sobre um vasto material herdado. Ter atrás de si toda uma tradição, que não era negada de forma adolescente, permitiu o surgimento de poemas em que há um maior equilíbrio entre tradição e novidade. Os diversos poetas selecionados na antologia revelam o relacionamento mais sensato com as formas do passado.

Mais rico ainda é o afeto pelo passado como um todo, tanto pessoal quanto histórico. Isso pode ser visto em vários autores, com propostas bem diferentes. O tempo e o universo da infância, tanto pessoais como pátrios, ficam como uma baliza, um eixo, um ponto de referência permanente. Opondo infância e morte, surge uma poesia pungente, sem deslumbramentos juvenis, recortada na medida humana e fundada nas questões essenciais do homem, não em brincadeiras ou em jogos de linguagem. Pela amostragem, temos a sensação de estar diante de uma lírica mais maduramente vivida, uma lírica mais próxima da aventura humana e de seus dramas. É claro que isso pode ter sido definido pelas preferências dos antologistas, uma vez que, na sábia definição de Jorge Luís Borges, toda antologia é invariavelmente pessoal.
 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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César Leal