Miguel Sanches Neto
Qual o papel que
o escritor exerce dentro da sociedade?
Num livro em
que abundam prefácios e notas biográficas (Por que escrevo?
Escrituras, 1999), quase uma centena de autores, entre escritores e
escrevinhadores, tentam explicar suas razões de escrever. Muitos
reclamam de ter que dar uma justificativa para tal atividade, o que
mostra que este tipo de pergunta é um fantasma que persegue todo
escritor - profissional tido como inútil numa sociedade que só pensa
em termos de cifras.
Qual a
relevância do trabalho do escritor? Por que um país precisa dele?
Por que temos que ler os escritores?
Estas são
perguntas que me acompanham desde a terrível tenra idade, quando
meus familiares, muitos mais prudentes do que eu, se inquietavam com
o destino do menino perdido em leituras. Casei, tive filho,
tornei-me um quase-velho e ainda continuo gastando
irresponsavelmente minhas horas - por mais escassas que hoje elas
possam ser - diante dos livros e com esta nossa raça delirante de
escritores, não porque não pudesse encontrar companheiros mais úteis
para a sociedade, cujas intrigas, digamos assim, fossem movidas por
razões maiores. Sou e espero continuar sempre sendo um membro desta
espécie desprestigiada que se interessa por literatura, o que na
adolescência me custou alguns dissabores amorosos - quem se
interessaria pelo jovenzito corrompido por um hábito tão pouco
masculino e improdutivo? Apesar destas cicatrizes, que ainda me
marcam o rosto, consigo, mais ou menos dentro da normalidade, ser
tomado como uma pessoa de bem. Não, meus senhores, não tenho a
ousadia de ser um conceituado senhor de barbas brancas, no topo da
cadeia monetária, mas consigo garantir o básico para uma pequena
família - contrariando assim prognósticos de amigos e namoradas de
um outro tempo.
Filho de gente
sem recursos e sem cultura, fiz uma espécie de trajetória
brasileira. Para tentar uma carreira, tive que contrariar a família,
tornar-me um jovem sem maiores atributos, lutar pela sobrevivência
em uma posição social bastante negativa, mostrar que podia ao menos
tirar algum lucro econômico me dedicando à faina literária.
A história
desta vocação nascida em um ambiente pobre é marcada pela
necessidade constante de ter que explicar aos outros o motivo do
fascínio pelas palavras. Enquanto meu irmão caçula era comerciante,
eu perdia o tempo lendo. Enquanto meus amigos arrumavam emprego em
oficinas, mercados ou bancos, eu freqüentava a biblioteca de minha
cidade. A recusa social é que faz com que o escritor seja
permanentemente questionado sobre o sentido de seu ofício. Daí ter
de buscar os mais variados argumentos para justificar uma vida
dedicada à drummondiana vã luta com as palavras.
É difícil um
escritor que, rico ou pobre, não tenha sido colocado contra a
parede, ou por outras pessoas ou por sua própria consciência: por
que escrevo? Não me interessa aqui comentar as respostas contidas no
livro organizado por José Domingos de Brito. O importante é destacar
que cada escritor, além do próprio trabalho exaustivo com a palavra,
na maioria das vezes feito em horário de lazer, ainda tenha que
achar uma justificativa, para se explicar diante dos seres úteis -
oh, tão úteis que me dá medo colocar diante deles e de seu poder o
meu mundinho de papel.
Assim como os
piores escritores desta pátria armada, tive que dar uma resposta a
este inquérito. Primeiro, foi num poema que nunca publiquei e que
tinha um terceto que acho ainda válido:
escrevo porque me escracho
escrevo porque me esquivo
escrevo porque me escravo
Era esta
propensão masoquista e solitária que me levava a um trabalho tão
rejeitado, que não me deixava ser feliz apenas com minha condição de
consumidor, de telespectador, de torcedor do São Paulo Futebol
Clube, de devoto das mulheres transformadas em objetos de adoração.
Tudo isto era pouco, muito pouco para o jovem que eu era (ai tempo
verbal doído com uma punhalada nas costas). Daí me tornar
prematuramente escrevinhador, sonhando com um livro.
Depois de
alguns pecadilhos, sei muito bem quanto pagarei por isso, acabei
escrevendo uma coletânea de poemas (Venho de um país obscuro.
Travessa do Editores, 2000) para justificar esta minha derivação
para as palavras. Mas só estes poemas não foram suficientes para me
livrar deste trauma de ser um diletante no vasto mundo dos grandes
macacos do servilismo. Eu tinha que encontrar uma razão mais forte
para me sentir bem ao lado de nobres amigos, que sempre me
consideravam um esforço em vão na estrada deserta das artes.
Um colega de
meu cunhado, médico como ele, um dia perguntou qual o sentido de se
dedicar uma vida inteira a uma atividade tão pouco prática. Abalado,
entrei em depressão, sofri a grande dúvida de todos os pingentes
deste mundo consumista. Foi o que me levou a escrever um romance
autobiográfico, cujas duas centenas de páginas eram uma exposição de
motivos para o sentido da escrita em minha vida.
Na opinião de
Eduardo Galeano, "a gente escreve, em realidade, para a pessoa com
cuja sorte ou má sorte nós nos sentimos identificados, os
maldormidos, os rebeldes e humilhados desta terra, e a maioria deles
não sabe ler" (p.89). No meu romance, Chove sobre minha infância,
ampliei este motivo, dizendo que escrevo para dar voz a todos os
meus ancestrais que não sabiam ler nem escrever.
Comecei minha
carreira literária tentando responder por que um filho de colonos
analfabetos se desvia para literatura, uma atividade própria de
sociedades e famílias abastadas, que podem fazer do ócio uma coisa
mais nobre. Nós, os das classes pobres, temos é que nos dedicar à
luta difícil da sobrevivência, por isso minha família, num instante
de lucidez social, ter me matriculado num colégio agrícola. Eu assim
poderia ter uma profissão que me valesse. Mas como sempre fui
teimoso, deixei o destino preparado de lado e me converti num
incansável candidato a escritor, pronto para todas as frustrações.
O primeiro
susto de minha família foi quando descobriram que para escrever
literatura em jornal eu recebia dinheiro. E depois o fato de que
alguém pudesse adquirir algum status social pelo que escrevia. Hoje,
meus pais não se espantam e até torcem para que o filho tenha mais
tempo livre para escrever.
Mas toda esta
trajetória bastante complicada é devedora das graças da Sorte, esta
deusa inconstante que vem me sendo fiel. Conheci grandes pessoas
pela literatura e tenho me esforçado para merecer a amizade delas,
mas uma vez ou outra revela-se a minha miserável condição de escória
social e humana e daí me transformo num pequeno monstro de
insolência.
Conclusão:
escrevemos porque não nos suportamos.
PS.
Recentemente respondi a uma pergunta do jornalista carioca Rodrigo
de Sousa Leão sobre o papel do escritor na sociedade. Quero
transcrever a resposta que, de uma certa forma, complementa este
artigo:
Para mim, o papel principal do escritor não está no espaço, mas
no tempo. Os escritores somos os guardiões do fogo. Nós mantemos
vivo todo um universo imaginário que periga perecer. Ao dar esta
entrevista agora, estou fazendo infinitas referências veladas a
escritores de outro tempo e de outras línguas, línguas que já
morreram. Não sei o nome da maioria deles, mas como bebi em fontes
que surgiram de outras fontes, guardo a memória desta gente extinta.
Sem o escritores, o mundo corre o risco de viver apenas o presente.
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