Miguel Sanches Neto
As feridas abertas pelo narcisismo
04.06.2005
O Idéias convidou o escritor Miguel
Sanches Neto para entrevistar seu colega Mário Sabino, que acaba de
lançar a segunda obra de ficção, a coletânea de contos O
antinarciso, depois da bem-sucedida estréia com o romance O
dia em que matei meu pai (ambos publicados pela Record). Na
conversa, Sanches Neto aborda a diversidade de ritmos e temas das
histórias, tendo como resposta a também diversificada influência de
Sabino, que vai de Dante Alighieri a Alberto Moravia, passando por
T. S. Eliot. Um ponto que chamou a atenção do entrevistador foi a
presença do sexo como elemento-chave das narrativas. Obteve como
resposta que ''toda literatura é erótica em última análise, e sua
linguagem, nesse sentido, só pode ser a da sedução''. Questionado
sobre a atual tendência ''jornalística'' de criar uma relação direta
entre biografia e ficção, Sabino, que é redator-chefe da revista
Veja, responde que o primeiro a fazer esta relação foi Freud, e que
''uma leitura biográfica de certos autores não é necessariamente
redutora no mau sentido''. Um dos autores homenageados na coletânea
é Machado de Assis, cujo conto ''Um chapéu ao espelho'' foi
retrabalhado por Sabino, não apenas na temática, mas também no
estilo. Como complemento à entrevista, Sanches Neto escreveu a
resenha de O antinarciso, em que afirma que ''diante da
redução do homem a esta lógica da exterioridade, centro de um mundo
dominado por Narcisos exacerbados, resta ao autor exercitar sua
inteligência irônica e apaixonada''.
Miguel - Estreando como romancista, você agora
lança um volume de contos. Isso não é muito comum em uma tradição em
que os escritores publicam contos primeiro. O que o levou ao conto
neste momento?
Mario – Os gêneros literários, no meu caso, têm menos importância do
que aquilo que os precede: a intenção. O que precedeu O dia em que
matei meu pai foi a intenção de escrever uma tragédia em que o
protagonista, ao contrário do modelo trágico grego, era dono de seu
destino – ou, pelo menos, cultivava essa ilusão. Evidentemente, para
atingir esse objetivo, o gênero tinha de ser o romance. Quanto aos
contos de O antinarciso, os primeiros foram escritos por encomenda.
Escrevi “Um beijo entre doish cocosh” por sugestão do livreiro e
editor Marcus Gasparian, da Argumento, que queria publicar em sua
revista a história de um amor entre um paulista e uma carioca. O
resultado agradou a editora Luciana Villas-Boas, da Record, que me
pediu mais dois contos, para constar de antologias a ser publicadas
em Portugal. Enquanto cumpria a tarefa, percebi que havia estocado
temas suficientes para um volume de contos. Histórias rápidas, como
o gênero requer em sua forma contemporânea.
Miguel - Você tinha uma idéia geral da
estrutura do livro, ou ele foi organizado em seções depois, quando
os contos já estavam prontos?
Mario – Resolvi dividir o livro em forma/estrutura/sentido (a falta
de), que remete à definição aristotélica de arte, depois de ter
escrito os contos. Escolhi fazê-lo porque, embora haja um fio
condutor entre todos os textos – as feridas abertas pelo narcisismo
–, dei mais ênfase a certos aspectos dependendo do tema escolhido.
Nos que foram agrupados sob a denominação “forma”, por exemplo, há
uma emulação de estilos. Em “Da amizade masculina”, lanço mão de
Montaigne; “Um chapéu ao espelho” é uma continuação de dois contos
de Machado de Assis; em “Eliot”, faço uma colagem de versos do poeta
anglo-americano; e, em “Miserere”, a forma é a dos diálogos de
Giacomo Leopardi.
Miguel - Qual foi seu objetivo ao retomar
Machado de Assis no conto “Um chapéu ao espelho”?
Mario – Foi, além de jogar com o estilo machadiano, no sentido mais
lúdico que se possa conceber, mostrar que, independentemente da
época, a essência narcísica das pessoas é sempre a mesma.
Miguel - O antinarciso tem uma diversidade de
ritmos e temas. Em todas as histórias, no entanto, há uma voz
narrativa muito refinada e cosmopolita. Quais as leituras formadoras
desta voz?
Mario – Todas os autores que um escritor leu durante a vida ajudam a
formar a sua voz. Mesmo aqueles que não o agradaram tanto assim. A
minha voz, se é que realmente a tenho, ecoa Dostoievski, Dante
Alighieri, Sigmund Freud, Alberto Moravia, Eugenio Montale e T.S.
Eliot, principalmente. Para alguns, pode parecer estranho que
Moravia figure entre esses portentos que citei, mas creio que ele é
um dos grandes romancistas do século 20 – estou de pleno acordo com
os críticos que consideram seu livro de estréia, o romance Os
indiferentes, o precursor do existencialismo.
Miguel - Há uma opção pelo pensamento em suas
narrativas e tal opção não trava o enredo. Como conciliar reflexão e
velocidade?
Mario – Clareza de propósitos, seja no diálogo ou no pensamento, é a
chave para a fluidez narrativa. É simples assim. A preocupação deve
ser a de deixar algo para o leitor. Hoje, existe uma preferência
pelo diálogo, como se essa fosse a única forma de imprimir
velocidade à história que se quer contar. Tendo a crer, porém, que
isso é fruto mais de uma deficiência dos autores do que de uma
exigência literária.
Miguel - Então, na literatura contemporânea,
existe uma preponderância da lógica da crônica sobre a lógica da
criação?
Mario – Sim. Boa parte da literatura contemporânea está mais
preocupada em registrar o seu tempo de uma forma quase jornalística
do que encontrar nele o que há de universal e perene – aquilo que dá
especificidade e alguma grandeza à criação literária. Balzac, para
ficar num exemplo muito evidente, transformou-se num autor universal
por ter conseguido realizar essa passagem, embora seus temas, à
primeira vista, sejam circunscritos à Paris do século 19.
Miguel - Contemporâneos em sua essência, os
seus contos guardam um encanto pelo universo da cultura atemporal. A
literatura brasileira estaria muito presa ao cordão umbilical das
experiências locais? Faltaria ao escritor brasileiro um desejo de
ser ocidental, talvez em função do projeto de ser tropical?
Mario – Bem, nunca escolhi ler um escritor por causa de sua
nacionalidade. Talvez por isso não acredite em literatura brasileira
ou finlandesa. Essas são generalizações que nasceram nas
universidades, a fim de sistematizar os estudos sobre a atividade
literária. Mas é fácil constatar que, em geral, falta aos escritores
brasileiros uma cultura mais sólida – que é sempre atemporal.
Provavelmente é por esse motivo que eles não conseguem livrar-se das
referências cristalizadas e repisadas pela universidade: o
regionalismo e o modernismo. Como essas referências são bem pobres,
a literatura produzida a partir delas também o é. Tudo muito
tropical, como diz você. E tropical, para mim, é sinônimo de
mosquito, suor e leseira. Mais nada.
Miguel - Na sua literatura, o sexo é um
elemento-chave, mesmo quando ele aparece como ausência. Mas ele não
é só um tema, é um ritmo de linguagem. Você vê o escritor de ficção
como um eroticista da linguagem?
Mario – O sexo contém pulsões vitais e também destrutivas. Quando
Madame Bovary, num frêmito, diz para si mesma: “tenho um amante,
tenho um amante...”, é esse o ponto sintetizado por Flaubert. Da
tensão entre esses dois pólos, o vital e o destrutivo, nasceu o
processo civilizatório – e no seu bojo, é claro, a literatura. Uma
arte, não esqueçamos, que tem como função precípua revelar a alma
humana no que ela tem de mais belo ou terrível. Ou seja, mostrar
justamente como essas pulsões estão sempre presentes. Toda
literatura, portanto, é erótica em última análise – e sua linguagem,
nesse sentido, só pode ser a da sedução. Para a vida e para a morte.
Miguel - A tendência jornalística hoje é criar
uma relação direta entre biografia e ficção? Você, que cifrou no
conto “Biografia” a leitura redutora que grandes nomes da cultura
sofreram, gostaria de ser lido apenas no âmbito do texto?
Mario – Não sei se é moda jornalística ou não, mas é fato que a
partir do início do século 20 tornou-se comum estabelecer relações
mais íntimas entre biografia e obra. O primeiro a fazê-lo foi Freud.
Depois, como era inevitável, o procedimento sofreu diluições. Uma
leitura biográfica, por assim dizer, de certos autores não é
necessariamente redutora no mau sentido. Às vezes é redutora no bom
sentido. É o caso do livro Intelectuais, de Paul Johnson, que me deu
alguns subsídios para o conto em questão. Johnson mostra como, não
raro, uma aparente generosidade nas idéias serve para esconder uma
tremenda mesquinhez pessoal. Quanto à maneira como gostaria de ser
lido, não creio que eu vá adquirir notoriedade suficiente para que
alguém se preocupe em debruçar-se sobre a minha vida.
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