Nilto Maciel
O fadário na ficção de Natércia
Campos
6.6.2003
Ganhador do prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, 1988, o livro
Iluminuras, de Natércia Campos, é composto de 15 contos. Os dramas
vividos pelos personagens parecem originados de lendas ou do
lendário sertanejo, que, embora modificado, adaptado ao ambiente
nordestino, tem suas raízes na cultura popular européia ou, mais
precisamente, ibérica. Vejam-se as histórias de gêmeos (´Almofala´ e
´O Rio´), do menino pagão (´O Pagão´), da velha rezadeira (presente
em algumas narrativas), do pescador encantado (´Alumbramento´), da
mulher solitária (pelo menos em duas), da menina enigmática (´Uma
Velha Canção´, ´A Menina´ e ´Lua Cris´), do menino ou da menina e do
avô ou da avó (´Crisálida´ e ´Mãe Natureza´), do faroleiro e o navio
fantasma (´O Farol´), do cordeiro imolado (´Perdão´) e do leproso
(´Penitentes´).
Os ingredientes básicos destas narrativas são o ambiente, pode-se
dizer, medieval, seja rural ou marítimo; a presença constante de
personagens estranhos, como rezadeiras, loucos, visionários,
encantados, deformados; as crenças e crendices como foco principal;
o enigma embutido no conflito; e a linguagem mais para clássica
(Alexandre Herculano) do que para a dos contos populares: ´contam
que...´, dos irmãos Grimm, Charles Perrault. Nada mais semelhante a
um conto de fada do que ´Uma Velha Canção´, no qual uma menina chora
a morte da mãe, vive anos a fio com o pai e a ama num casarão, se
cerca de gatos e, depois, só, é encontrada morta. ´Muitos anos
depois´ o povo ouvia ´uma voz de mulher, que cantava com suavidade
uma velha canção´. E ´Crisálida´, no qual avó e neta saíam para o
povoado carregadas de alfenins, como Chapeuzinho Vermelho a conduzir
docinhos pela floresta.
O ambiente das dunas de Almofala, do primeiro conto, é mostrado como
num filme, com toda a sua exuberância, sem muitos adjetivos. A
igreja soterrada pela areia, o campanário ainda descoberto, os
barrancos, as correntes finas de água doce, o platô, a ventania. Nos
demais contos, situados em lugares diversos, vêem-se cemitérios,
mosteiros, ermidas, caminhos, matos, brejos, rios, praias, o mar,
onde se movimentam poucos ou solitários personagens. Em espaços
menores, casa, alpendre, jardim, quarto, sala, personagens
angustiados contam suas vidas ou têm narrados seus anos de solidão e
dor.
As descrições de Natércia não constituem meros exercícios de
linguagem. Ao contrário, servem de apoio às narrações e sem as quais
estas pareceriam longas frases cheias de verbos e substantivos.
Ocorre também a simultaneidade da narração ao longo do tempo e da
descrição do ambiente. Esta nunca se dá de forma isolada, isto é,
sempre antecede ou sucede a narração de um fato. Talvez nem seja
assim: Não antecede nem sucede a narração, se faz durante a
elaboração das frases. Como em ´O Jardim´. Enquanto descreve o
jardim, narra curtos episódios de um passado mais distante.
A linguagem de Natércia Campos é limpa, elegante e atraente. Nada de
gírias, lugares-comuns, frases feitas. Os verbos são os mais
propícios à narração e à descrição: adejar (os ventos adejavam),
farfalhar (as folhagens), aconchegar (o xale), firmar (a vista),
reter (o vulto) etc. Não se trata de linguagem pomposa, de difícil
leitura. A escritora não tem necessidade de ostentar erudição.
Também o uso freqüente de nomes de objetos em desuso e outros
substantivos, adjetivos e verbos esquecidos da maioria dos
escritores brasileiros contemporâneos faz de Natércia Campos uma
narradora singular.
As narrativas deste livro trazem enredos compostos de tons de suave
impressionismo. A pintura medieval do ambiente está mais presente em
´Iluminuras´. Medieval em sentido amplo, alegórico, do inconsciente:
O cemitério, a cruz, as ervas, o mosteiro. Ambiente povoado de
personagens antigos: O ferreiro, o fazedor de selas e arreios, o
fabricante de armadilhas e gaiolas, monges, penitentes. Nada de
sertões, romarias de Padre Cícero, devotas de todos os santos.
As crenças, as crendices, as lendas das histórias de Natércia foram
colhidas, certamente, do imaginário popular e da própria memória da
escritora: O guajara ´que vive encantado no pântano´; o pagão
encantado, que, morto, chorava sem parar e, após o batismo póstumo,
se desencantou; o possuído pelo Maligno; a mulher (sereia) de
´cântico dolente e fino´, ´longos cabelos´, que afogou o menino
(´Alumbramento´); a mulher solitária e suas visões de sombras, entes
invisíveis.
A presença de enigmas, em meio a superstições, é outra
característica dos contos de Natércia. A começar pelos enredos ou
pela fragmentação dos enredos. A morte da menina no primeiro conto
se dá de forma misteriosa. Apesar de todo o amor do menino por ela,
teria o ciúme (a mãe vivia ´rindo e conversando´ com a menina,
enquanto ele se sentia ´desgarrado, como que perdido´) motivado uma
vingança? Teria sido ele o causador da morte da irmã? Em outro
belíssimo conto, ´A Menina´, narrado por uma mulher, qual o
significado daquela menina assustada, sempre agarrada a seu
carneirinho, que um dia apareceu e de repente foi embora? E a morte
da menina gaza, que se ´evaporou na areia ressequida´, para depois
surgir ´uma cerca de estranha folhagem gaza, por suas manchas
esbranquiçadas´, no conto ´Lua Cris´?
A par disso, o drama psicológico está presente em todos os contos,
sempre em narrações-descrições suaves, sem assombros para o leitor.
´Almofala´ é, sem dúvida, uma obra-prima do conto brasileiro
contemporâneo, de uma profundidade nunca vista. Nesta e em outras
narrativas a descrição do ambiente se faz com cores naturais. O
ambiente em que viviam os gêmeos - as dunas, o vento, a casa - tudo
está retratado com fidelidade. E que dizer da descrição, ou da
aposição no ambiente, de objetos de uso doméstico e diário, como
chocalho de cabra, balaio, trempe, lamparina, fogão de barro, panela
de barro, rodilha de pano? Tudo por necessidade da narração, nada
como simples enfeite, adereço literário.
Natércia Campos também utiliza com freqüência o cruzamento dos
tempos e das ações. No primeiro conto, por exemplo, o conflito se
instaura lentamente, desde o nascimento do menino e da menina, vai
se engrandecendo aos poucos, nos pequenos atos, no dia-a-dia, até o
ápice - que ainda não é o ápice - quando o menino ´assistiu a irmã
despencar-se na grota da alta barreira´. O desfecho - muitos anos
depois, quando os olhos do menino se apagaram - nas últimas frases
do conto, revela todo o drama, toda a tragédia dos gêmeos.
Esses dramas psicológicos se apresentam em variadas conotações,
especialmente no medo, na solidão e no abandono dos personagens. Do
homem do mar, sempre às voltas com o insondável, o mistério, o
absoluto, a morte, como em ´Alumbramento´. Da mulher solitária em
permanente contato com os fantasmas dos parentes mortos, sombras,
seres perceptíveis somente pelos sentidos internos, e que conduzem à
loucura (´Eles´). Do leproso, o papa-figo, em suas andanças, a
tanger uma matraca, em aviso de sua condição. Das mulheres
solitárias e seus presságios, os maus agouros, as superstições. Na
dor e na morte da mulher que ensopou com querosene a lã do cordeiro
e lhe ateou fogo, o cordeiro de Deus, o agnus Dei da oração e da
inscrição no conto ´Perdão´.
Não se sabe a origem das obras literárias: como nascem, se formulam.
Fala-se em missão, destino, vocação, dom, inspiração. Talvez hajam
sido as fadas as inspiradoras de Natércia Campos. Com a ajuda de
Herculano, Grimm, Perrault, Moreira Campos. Seja como for, o
conjunto de seus contos de fadas, o seu fadário, o seu destino é ser
Natércia Campos.
Nilto Maciel
Ficcionista
Leia a obra de Natércia
Campos
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