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Nei Duclós




Alguns estágios do diálogo

Em torno de O Mundo como Idéia, de Bruno Tolentino


 


PRIMEIRA LEITURA - O mármore e a ferrugem

Poeta de escura geografia, coruja a sujar o verde mapa
Luz imaginada, lua de um quadro muito antigo
Grua sobre o bosque de cachorros, tira-gosto antes da matilha
Ametista no prato feito sobra, desespero de raiz longe da pedra
Leitura que aporta num abismo, o surto escarra a obra
Mas ela é ninfa, mármore e marfim de uma estrutura

A forma enlouquece aos poucos e desova de repente
o coração à beira do penhasco. O talento é fruto da impostura
Ser que inaugura o tombo e impõe a negação como batismo
Ser esse decênio posto fora e acabar-se num canto da cultura
apoderada pelos ogros da política. O poema total, pudera,
que pra lá do mar tem seu sentido, aqui se estiola diante da miséria.

Ler pela primeira vez com olhar livre é sucumbir à lábia
Soterrar-se em tempo tardio e perder tudo
Pisar sobre o trabalho de entrever o que nos é negado
A pobreza nos assaca, guardião que assoma no monturo
Escrever como se lê para entender-se, ver o lugar onde ocupamos
nessa tempestade marginal, vômito de rosa

Apesar da inépcia em derrubar o muro feito aldrava
Palavras se seguram num século nascido torto,
sucessor de um tempo que negou-se, espólio a qual
pertences, todos pertencemos. Não nos deixam partir
por isso armamos o pássaro com metais e lascas
E esperamos a carruagem nos trazer o espólio

Quando Ninguém ouve,

Ninguém vê.

Nada poderá segurar o bicho
O Mundo como Idéia, porque só os mortos compreendem e têm coragem de desvelar o Autor na outra margem.

Os vivos preferem o escárnio
Estão presos na Ordem da Tirana.

Quem dera fossem a Razão ou a Forma que procuras como tema e perdes para achá-la nos desvãos da alegoria.
Quem dera fôssemos partilhar o teu espectro peregrino

Teremos de vê-lo, mortos, teu andar pegando chuva.

Nos afastamos para furtivamente consultar o quadro que te inspira. Já fomos fortes, mas perdemos o fio dessa vontade. Sentamos na calçada que nos nutre nesse não-fazer que é lembrar da Poesia.

Estamos perto de esquecer a Sorte.
Ficamos fáceis ao pisar os vagalumes.

Tentamos perseguir o brilho
Mas puxamos o freio.

Nosso cavalo trava ao toque supremo do clarim

Por pouco tivemos lapsos dessa luz turva em espiral
que amarra o sonho de ver o vórtice do estribilho.

Volto à sacada do livro que sempre nos escapará, pois o poeta não fala mais aos vivos, que desistiram enquanto o Mundo corta lenha.

Como tudo ficou disponível, é hora de esquecer e ligar o botão de qualquer coisa.
Deixar de lado o poema sem fim que depositas à espera da ferrugem


SEGUNDA LEITURA

Um soneto e sua sobra

Esse diálogo cansa. E me faz bem
Cansa porque já li em outra vida
Quando o poeta encarnava sua dívida
De um século que ainda se mantém

E me gratifica porque soneto é tudo
o que neguei, e agora pago o sopro
dessa angústia, de perecer ante
a eternidade de uma fórmula, vendo

como ela medra em minha varanda
emprestando palavras que não uso
só para ficar perto do que esqueço

Puxo o verso para o bolso da armadura
O pote que espatifa-se é o poema
Que a vida perdeu deixando tudo

A sobra:

Também mudei e agora não atino
Porque me levas pela mão como
Um gatuno. Se a vanguarda seduziu,
Perdeu o rumo, nos refugiamos
Como pó do Prado e o Louvre
Enquanto despenca o País que nunca
amamos, a não ser no tempo
em que existíamos

 



Leia a obra de Bruno Tolentino