Nelly Novaes Coelho
MataCães
OU A UTOPIA INDESTRUTÍVEL
Este artigo de Nelly Novaes Coelho,
catedrática de Literatura Portuguesa da Universidade de S.Paulo, foi
publicado em 1987 no diário brasileiro «O Estado de S. Paulo» e
depois transcrito pelo semanário português «Jornal de Letras»
"... minha Ternate,
tudo bruma!
/.../ Recordo as palavras tão
iguais por fora,
e é sempre
tudo tão desigual, por dentro (p. 157)
Ponto alto, em meio à excelente safra
de romances que, nestes últimos anos, nos tem chegado de Portugal, O
MataCães de Correia da Silva está fundamente arraigado no lastro
decepcionante deixado pela revolução do 25 de Abril de 74, em
Portugal.
Escolhendo a perspectiva do humor ou
da blague irreverente, para "filtrar" a dramática falência dos
objectivos revolucionários, o romancista desenvolve, ao nível dos
fatos, uma burlesca "crónica de vencidos". E, ao mesmo tempo, deixa
entrever que, sob os fracassos, permanece viva a Esperança, a crença
de que o Sonho ou a Utopia são os verdadeiros propulsores da vida
autêntica. É essa a certeza que, da primeira à última página, escapa
pelos interstícios do fluxo narrativo, e acaba por sobrepor o Sonho
à Realização concreta dos actos ou fatos.
Tal visão de mundo (que dá maior
ênfase ao sonho utópico do que à acção concretizadora) seria
impensável, anos atrás, em um romance politicamente engajado, como é
este MataCães. Entretanto, em nosso tempo, essa ambiguidade já se
vai tornando natural e se transformando em um novo estilo de narrar,
principalmente para aqueles escritores atentos à sua "circunstância
histórica" e desejosos não só de a testemunhar, mas de actuar sobre
ela para transformá-la.
Fernando Correia da Silva é bem um desses escritores. Inquieto e
idealista "descobridor de mundos" (inclusive, viveu 20 anos no
Brasil, entre 54 e 74, depois de escapar das "malhas da Pide"), ele
confirma, neste romance, a fecundidade de uma das tendências mais
originais da literatura contemporânea - a linha que funde duas
directrizes anteriores, aparentemente inconciliáveis: a realista
(que se quer testemunho ou representação objectiva das realidades) e
a surrealista ou experimentalista (que se assume como ficção e se
empenha na transgressão ou questionamento do mundo histórico/social,
defendido pela tradição).
Como sabemos, a primeira, de natureza
visceralmente ética, e a segunda, radicalmente estética, surgiram e
se desenvolveram, ora em choque entre si, ora independentes uma da
outra. Até que nos últimos anos começaram a aparecer embaralhadas,
dando origem a uma forma romanesca labiríntica, de estrutura
descontínua, essencialmente dialógica, que exige a participação
activa do leitor, para que seja possível a descodificação final do
discurso narrativo.
Em Portugal, esse "embaralhamento" de atitudes, essa quebra de
fronteiras entre realidade e ficção, começa a aparecer nos anos
50/60, directamente impulsionado por uma consciência política que a
censura salazarista impedia de se manifestar. E, de maneira
aparentemente paradoxal, se aprofunda em ambiguidades, no pós-25 de
Abril, quando a censura já deixara de existir.
Ficção, espaço de luta
Contradição? Não. Simplesmente a
maneira de reagir a circunstâncias aparentemente distintas, mas
igualadas pela natureza das forças restritivas, que nelas actuaram
ou actuam. Se antes, devido à Censura imposta pela Ditadura, a
escrita ficcional se tornara o único espaço de resistência, após a
Revolução, com os desencontros e desacertos sobrevindos e o fracasso
da esperada Liberdade com Justiça Social, a escrita ficcional volta
a ser o único espaço que resta à luta ou que permite o verdadeiro
exercício da liberdade e da consciência histórica.
É esse o factor que liga romances tão
díspares entre si, como: O Bosque Harmonioso de Augusto Abelaira; A
Balada da Praia dos Cães de José Cardoso Pires; O Dia dos Prodígios
de Lydia Jorge; Levantado do Chão ou Memorial do Convento de José
Saramago; Lusitânia de Almeida Faria; Este Verão, O Emigrante Là-Bas
de Olga Gonçalves e alguns mais, entre os quais se insere agora este
destemperado e saboroso MataCães.
Nele, como nos demais, se confundem
diferentes tempos e espaços da História; e a realidade mais concreta
aparece como pura invenção, enquanto a ficção assume foros de
realidade... Essa fusão ou confusão de tempos, espaços, personagens
já se insinua no titulo do primeiro capitulo: "MataCães faz-se ao
Mar, Ternate à vista". Simbolicamente, a acção real (o "fazer-se ao
mar" dos antigos descobridores e do próprio personagem) é unida ao
sonho utópico (a viagem no encalço do ideal, da "Ternate"). O
personagem narrador, ao mesmo tempo em que fala de suas andanças e
falhanças, ao se lançar na "descoberta do mundo", alude também à sua
"Ternate"—, a ilha paradisíaca; a utopia; o mito que impele os
homens para a Acção. Como disse Fernando Pessoa, "O Mito é o Nada
que é Tudo". E MataCães de Correia da Silva confirma que, sem "Ternates"
(ou "Pasárgadas", como sonhava Manuel Bandeira) o homem não passa de
um "cadáver adiado" (genial definição fernandina).
A narrativa se abre com a auto-apresentação do personagem-narrador:
"Para começo de
conversa o meu nome é Chico. De alcunha o
MataCães. Há quem não goste. Comem
menos. Lá terão suas
razões. Eu tenho as minhas. Dizem
que, para meio século, estou
muito bem
conservado, vinha d'alhos ou salmoura."
Daí para a frente, o discurso
narrativo flui aos borbotões, como torrente incontrolável que rompeu
os diques que a domavam. Romance de alta qualidade literária,
MataCães distingue-se pela coerência interna da sua matéria. A sua
efabulação descontínua, caótica, corresponde, ao nível da forma, às
perplexidades e dúvidas que, ao nível da problemática, se propõem
como desafio ao leitor. Nesse sentido observe-se que, redescobrindo
o passado e a História como forças altamente actuantes no presente,
MataCães redescobre também o idioma, a língua portuguesa em cujo
espaço privilegiado a História foi nomeada e definitivamente
definida.
O Ontem e o Hoje; a Vida e a
História; a resistência; a revolução e a decepção; o real e a
ficção... vão-se amalgamando numa linguagem forte, seivosa,
pitoresca, de natureza essencialmente popular e coloquial, onde se
reconhece, de imediato, a presença do húmus lusitano, onde Aquilino
Ribeiro, entre outros, foi buscar matéria para plasmar a sua
vigorosa linguagem. Tudo, enfim, no universo criado por Correia da
Silva, em MataCães, integra-se organicamente para contar de novo a
«aventura portuguesa».
Aparentemente memorialista (como o próprio autor o sugere na
dedicatória do livro ao amigo Lobas), o MataCães extrapola, porém,
os limites individualistas do eu pessoal, para dar voz ao eu
colectivo que nele desagua. Visceralmente identificado com os
descobridores de antanho (cujos sonhos utópicos abriram novos
horizontes para o mundo e, em paga, foram "vampirizados" pelos
senhores do poder...) e com os líderes revolucionários de agora
(cujas lutas para mudar novamente os horizontes e rumos da vida,
também têm sido traídos ou "vampirizados" pelos poderosos...),
Chico, o MataCães, surge como o novo avatar do herói desbravador de
mundos novos.
Despido, porém, da aura idealizante
que fez dos antigos heróis da História e da Literatura uma figura
superior e grandiosa, o MataCães assume-se como o anti-herói:
blasonador, chocarreiro, perdedor, metido a valente, alardeando
bravatas... mas que, no fundo, esconde uma rara grandeza humana; um
amoroso, solidário e vulnerável coração...
Optando pelo riso aberto, pela
chulice às escâncaras (em lugar do humor ou da fina ironia que vem
servindo aos romancistas dessa linha, para neutralizar os efeitos
corrosivos da tragédia, nestes tempos de mudança), Correia da Silva
substitui a seriedade inerente ao fazer histórico/heróico pelo
burlesco das acções "baixas", rudes, comezinhas, presas às
contingências quotidianas. A essa substituição se alia o ritmo
desordenado de sua escritura viril e desabrida, de cepa aquiliniana
que, de imediato, nos agarra e nos obriga a segui-la.
"Dizem à boca
pequena que sou matolas ou tenho um parafuso
desapertado.
Penaserá não ter dois... A propósito contam duas
histórias que tudo
explicariam. Uma ou outra, cada cor o seu paladar.
Numa, estava eu
posto em Sta. Apolonia a dar vivas ao Delgado.
Por detrás vem um
guita e acerta-me espadeirada na carola.
/.../ Noutra,
estava eu um dia... Não, não é assim. Lá muito no
fundo do tempo quem
estava um dia à sombra de um imbondeiro
no coração de
Angola era o Norton de Matos e caluda! que a
cena merece todo o
respeitinho." (p. 9/10)
Seriedade «a brincar»
Contando suas andanças, nesse tom
picaresco e aparentemente descompromissado, o MataCães vai
ardilosamente mostrando, no "avesso" do narrado, a profunda
seriedade de tudo. Isto é, para além da fala desordenada que
descarna a pequenez, a estupidez e a mediocridade humana,
descobre-se o "nervo" existencial que dá coerência e essencialidade
ao universo ali criado.
Romance que atesta a maturidade
criadora de seu autor, MataCães revela, em suas raízes, uma densa
reflexão acerca do homem e da realidade portuguesa, de ontem e de
hoje. Uma reflexão que se anuncia já na divisão externa das partes:
Fim de Semana, Segunda, Terça, Quarta, Quinta e Sexta. A escolha dos
dias da semana para nomeação de cada parte (por sua vez,
subdivididas em dezenas de capítulos breves) liga analogicamente a
mítica criação do mundo por Deus e a criação do romance. Aquela
corresponderia ao fazer original (e segue a evolução normal do 1º.
ao 7º. dia, quando "Deus descansou"). A segunda corresponderia a uma
recriação a partir de uma reflexão sobre o mundo criado. Daí se
iniciar no fim de semana, quando o trabalho é suspenso e o tempo de
análise e reflexão se torna possível. Da visão crítica alcançada no
"fim de semana", o romancista parte para a revisão ou recriação do
tempo vivido (e então o faz na sequência normal: de 2ª.a 6ª.feira).
Romance dos mais logrados, entre os que têm por matéria o pós-25 de
Abril, o MataCães expressa, em nível parodístico, a mesma
ambiguidade—misto de descrença/esperança ou de desalento/euforia—que
se afirma nos demais romances congéneres, e que Lídia Jorge definiu
claramente:
"... esse tema é
muito dramático. As pessoas queixam-se por ai
do preço da batata, mas a coisa é
muito mais profunda. Nós
todos estávamos convencidos de que
havia um pensamento
filosófico e político tolhido pelo
fascismo antes da Revolução. E o
drama é que, quando se tirou o
telhado à casa, viu-se que estava
vazia./.../ Agora andamos às
aranhas... Um total desconcerto e
nós a recuarmos, recuarmos./.../
Mas não é uma história de
frustração absoluta..."
(Entrevista
a Cremilda Medina in Viagemà Literatura Portuguesa).
A falência das ideologias
Em essência, é essa a malograda
aventura vivida pelo MataCães. Como tem sido essa a grande
descoberta dos períodos pós-revolucionários: a falência das
ideologias quando postas em prática; a inevitável deterioração dos
ideais aparentemente conquistados. MataCães põe directo o dedo na
ferida. Levanta a ponta do véu e mostra a raiz do fenómeno: "O
Poleiro tem muita força..." De maneira metafórica ou directa, torna
evidente que a ânsia pelo Poder é contingência humana e iguala a
todos os homens: da direita, da esquerda ou do centro. É essa a
desalentada conclusão a que chega o MataCães:
"Se não quero
deixar-me afogar na correnteza, tenho que
morder as mãos que me arrastam
para o fundo e, ao mordê-las,
homem sou a lutar contra homens.
/.../ Assim fizeste. Assim
fizemos. Na ânsia de liquidarmos a
lei do lobo andamos a povoar
o mundo de lobisomens. /.../ Era
preciso levedar o mundo e nós
desentranhamos alquimias do
fermento, pão e paz /.../ o por
dentro e o por fora, o irmão que
desconheces, /.../ estar na rua
como em casa, comunismo, bem
comum. O que não sabíamos
ainda é que Vladimir Ilitch, já no
leito de morte, três vezes foi
alvejado pelo mesmo pesadelo: os
donos do fermento começavam
a desprezar o trigo. Afinal, nas
coordenadas apetecidas, em vez
de Ternate,
era uma ilha coberta de pelourinhos." (p.168)
Como está claro, o elemento
destruidor estava na própria semente: a voracidade pelo Poder,
aquilo que leva a todos, igualmente, a praticarem a Injustiça
Social, como meio necessário e irredutível para chegarem ao domínio
seguro das forças de mando. Como escapar a esse círculo vicioso?
Como conciliar Justiça Social e Liberdade individual? Onde a fresta?
É o que parece se perguntar, ao longo do seu dolorido/eufórico
depoimento, o personagem-narrador deste MataCães, apontando, ao
mesmo tempo, para a única saída possível, a esta altura dos Tempos:
a Utopia (a sonhada Ternate...) Pois, apesar de utópica (isto é,
irrealizável) não se pode negar que, desde o início dos tempos, é
através dela que os homens têm avançado e transformado o mundo.
É esta a «mensagem» profunda deste
realista MataCães: a crónica labiríntica de um idealista, de um
espírito sempre impulsionado por «utopias», sempre vencido, mas
sempre acreditando que, afinal, é nos caminhos utópicos que estarão
as soluções tão ansiadas por todos os homens. Como é também muito
mais na Poesia (nas «naus catrinetas») do que na História que
encontraremos a melhor verdade do homem.
Vale a pena meditarmos nas palavras
com que encerra a sua longa, descontínua e densa fala narrativa.
Aproximando os destinos falhados - da própria filha e da nação
portuguesa - diz ele:
- A Primavera no
poço, minha filha, solidão. Vampiro de
estimação traz cravado no pescoço.
Onde o céu, onde o balouço
embalado na subida? A meio curso
foi colhida...
/.../
Depois de tanta viagem e
travessia, cuidar apenas da minha
horta? Dói. Dói muito. Navalha que
me rasga mas de dentro para
fora. E vem Abril abrir-se em
olhos d'água, vou eu morrer de
sede ao pé da fonte. Mas não
morro, conho! Não morro. Morrer,
Cão, morrer não é coisa assim à
toa. /.../ Um dia destes faço-me
outra vez à vela pelo mundo e
talvez haja nova ilha de Ternate à
minha espera. Muonini moli, imolê
muó! O lado da luz. Sempre.
(pag. 209)
Leia Fernando Correia de Silva
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