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Nicodemos Sena*


 

A enigmática literatura de Vicente Cecim
é consagrada em Portugal


 

"Ó Serdespanto", décimo-terceiro livro da coletânea “Viagem a Andara, o livro invisível”, do paraense Vicente Franz Cecim, foi lançado simultaneamente em Portugal e no Brasil, no ano passado, pela Íman Edições, do jornalista Antonio Cabrita. Na terra de Pessoa e Camões, em enquete realizada pelo suplemento literário do jornal “Público” junto a 14 críticos, foi apontado como o segundo melhor livro de 2001, mesmo concorrendo com obras do mundo inteiro.

Não é a primeira vez que Cecim leva além das fronteiras da Amazônia a sua literatura: “Os animais da terra”, o segundo livro de “Andara”, já havia recebido o Prêmio Revelação de Autor da APCA, em 1980. No ano seguinte, “Os jardins e a noite”, seu terceiro livro, em versão intitulada “A noite do Curau”, obteve menção especial no Prêmio Literário Internacional Plural, no México. E o próprio “Viagem a Andara”, editado pela Iluminuras, reunindo os primeiros sete livros da coleção, mereceu em 1988 o consagrador Grande Prêmio da Crítica da APCA.

O espanto que o livro de Vicente Franz Cecim provoca nos leitores e a dificuldade em classificá-lo indicam que não se trata de novidade que se expõe aos refletores da moda e em seguida se descarta, mas de algo verdadeiramente novo, com luz própria, que não nos é imposto como um objeto de mero prazer ou de conhecimento. Sua ficção se oferece ao espírito como objeto de interrogação, de pesquisa, de perplexidade.

O problema é que diante de um livro como “Ó Serdespanto” —- que se utiliza de todos os recursos literários e funde todos os gêneros produzidos pela literatura — os vetustos conceitos e classificações mostram-se inúteis, levando a crítica ao aplauso irrestrito ou ao silêncio medroso, duas maneiras diferentes de se livrarem igualmente do impasse.

Ao dizer que “toda verdadeira obra-prima violou a lei de algum gênero estabelecido, semeando assim a confusão no espírito dos críticos, que se viram na obrigação de alargar esse gênero”, Benedetto Croce parecia pensar em “Ó Serdespanto” e nos demais livros de “Andara”. Embora Vicente Franz Cecim continue sendo, depois de 23 anos de estrada, um enigma a ser revelado. Até aqui quase ninguém se atreveu a enfrentar os caminhos de mil dédalos de “Andara”, os seus veios profundos.

Carlos Drummond de Andrade certa vez escreveu: “Precisamos descobrir o Brasil / Escondido atrás das florestas, / Com a água dos rios no meio, / Brasil está dormindo, coitado”. Parido nas matas e nutrido de mitos e lendas, Cecim conhece bem esse Brasil de que fala o poeta, mas o universo estranho de linguagem e sonho que é “Andara” não está sediado na Amazônia. “Andara às vezes não é nada, não é nada./ É só literatura de viagem em busca de outras palavras não reveladas (...) é mais geografia interior, feita de ossos e sonhos, a carne a residência contendo uns fogos imensos...”.

Líquido, onírico e transbordante, o estilo de Cecim só poderia ser “amazônico”, mas ele se rebela contra o “realismo” imposto pelo colonizador; dá novo sentido ao delirante imaginário da região, funda nova tradição literária. Cecim aplica nos livros de “Andara” os preceitos que ele escreveu em 1983 em seu manifesto literário-ético-político: “Só uma coisa sonha e nos sonha: a vida. É preciso dar-se, deliberadamente, a ela. E é preciso insistir: nossa história, de seres amazônicos, só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor”.

O mundo de “Andara” nos atrai e perturba porque nos faz ver, dentro de nós, as mentiras em que fomos acostumados a crer, como as da “civilização” e do “progresso”, contra as quais André Breton, já em 1924, no Manifesto do Surrealismo, se insurgia: “A pretexto de civilização e de progresso baniu-se do espírito tudo o que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; proscreveu-se todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum”. A leitura de “Ó Serdespanto” faz-nos mergulhar na noite negra, profunda, arcaica, de “Andara”, na obscuridade que “rugerreluz”, onde folhas e musgos, pedras e ventos, bichos e homens, gente e não-gente, mortos e não-mortos, sussurram aos nossos ouvidos, sem boca nem língua, apenas com o halo diáfano dos nossos próprios pensamentos, que a morte é vida e a vida é sonho.

Apontando para um futuro de inconcebíveis e desmesuradas possibilidades do homem e da arte, do qual “Andara” é somente uma esboçada antevisão, o próprio Cecim nos diz: “No estranho mundo de ‘Andara’ não há a escrita, nem necessidade de inventá-la. O estágio primitivo das palavras foi superado. Os homens dispensaram a presença objetiva de qualquer meio intermediador — tintas, papéis, telas, bronze, mármore, argamassas, instrumentos musicais, etc — já se encantam pela Arte através do que será a Fala Futura: o Livro Telepatia, o Teatro Telepatia, a Pintura Telepatia, a Música Telepatia: a pura emissão do outro, já sem qualquer intermediação externa”.

(O Globo, 25/05/2002, Rio de Janeiro)

 

*Nicodemos Sena é jornalista e escritor, autor do romance "A espera do nunca mais“

 

Vicente Franz Cecim

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