Nicodemos Sena*
Ritmos da criação
Pequeno e de fácil
leitura, o livro de Vera Brant colocou-me, porém, em situação
delicada. Não conhecer a autora me deixa livre para tratar do objeto
especificamente literário; sei apenas que este é seu primeiro
trabalho como romancista (em 1980 publicou um livro de contos “A
solidão dos Outros”), o que aumenta imensamente a responsabilidade
da crítica.
Ferreira Gullar,
poeta acima das estrelas e conhecedor profundo dos diversos gêneros
literários, ao ler “A Ciclotímica”, fez quatro perguntas, para as
quais não obteve resposta: “É uma novela? Um diário? Um poema em
prosa? Ou tudo isso misturado?” Tampouco eu saberia definir.
Mas, poesia ou
prosa, parece-me que Vera Brant conseguiu executar algo muito
difícil: um texto muito espontâneo, embora arrebatado, em perfeita
verossimilhança com a narradora adolescente e em primeira pessoa. A
riqueza do texto não provém da seleção individual das palavras,
todas resgatadas da linguagem cotidiana, à exceção do título (
Ciclotímica: pessoa que altera estados de intensa alegria com
momentos de profunda melancolia). A força emerge da rica combinação
de palavras simples em frases curtas e singulares, carregadas de
efeito e de uma ironia fina: “Chegaria à conclusão de que o sono é a
imaginação cansada, se não visse tanta gente burra dormir” -, e
nisso a autora é sem dúvida especialista.
Quanto ao enredo,
pouco conta neste livro, em que os sentimentos e impressões de uma
adolescente, sobre a vida e a morte, a miséria e a fortuna,
rebelam-se contra a lógica acanhada do mundo adulto. Daí resulta um
grito, nem sempre compreendido, de liberdade.
É verdade que, para
lograr tão belo efeito, Vera Brant teve que impor limites aos
recursos de construção do texto. Talvez só assim se explique a
persistência no esquema dos contrários: morte/vida, céu/inferno,
sonho/realidade, etc. Tal recurso, usado exaustivamente e verossímil
do ponto de vista narrativo, é responsável não só pela força de
expressão das frases, mas, paradoxalmente, também pela impressão de
monotonia que tive ao final da leitura.
Contudo, pensando
bem, posso dizer que Vera Brant se parece ao bom oleiro que um dia
esculpiu do barro sua primeira peça e, tendo aí aprendido o mistério
da criação, pode executar outras peças, quiçá com maior perfeição.
(Folha de São Paulo, 22/04/1984, São Paulo)
*Nicodemos Sena é escritor
e jornalista, autor do romance “A Noite é dos Pássaros”
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