Nicodemos Sena
Fortuna Crítica: Olga Savary*
Paraense faz boa ficção com ‘anos de chumbo’ e choques entre
culturas
03/03/2001
Livros há que penalizam árvores,
esses generosos seres da natureza que, além de tudo o que doam ao
planeta Terra (o equilíbrio ecológico, sombra e tudo o mais), dão a
celulose necessária à fabricação do papel para os livros dos
escritores. Quando vejo um mau livro, o primeiro pensamento que me
vem é este: coitadas das árvores! Este desperdício imperdoável
remete à idéia de que a escritura nasce bem antes de ser escrita.
Arte é "coisa mental", já afirmava Leonardo da Vinci. Poesia, por
exemplo: deveríamos viver em estado de poesia, o que certamente nos
faria mais felizes.
É uma alegria quando nos deparamos
com um livro como "A espera do nunca mais" (Editora Cejup, 880
páginas), esta extraordinária saga amazônica, narrada com sedução,
seriedade, poesia. Forma e estilo são impecáveis nessa estréia, que
nem estréia parece, de tão madura. Todo o livro, o primeiro do
paraense de Santarém Nicodemos Sena, em suas 880 páginas, é uma
exaltação à palavra, lavra que o autor utiliza como veículo para
contar inúmeras histórias entrecruzadas dos seres amazônidas,
habitantes genuínos dessa esplendorosa floresta, ícone nacional.
Quando pensamos em Brasil, três palavras traduzem o espírito do
nosso país: Amazônia, futebol e carnaval.
Da primeira, a Amazônia, trata "A
espera do nunca mais". Menino criado na beira do rio, habituado às
caçadas nas brenhas da mata e aventuras, Nicodemos desde cedo se
embrenhou também na viagem maior que é a literatura. Leu os bons
autores, principalmente os brasileiros, e entre eles os grandes
paraenses, de quem se confessa devedor, como Inglês de Souza,
Ferreira de Castro -- que não era da região, mas escreveu sobre ela,
assim como o poeta Raul Bopp, gaúcho de alma amazônica, com seu
magistral "Cobra Norato" - Dalcídio Jurandir e Benedicto Monteiro.
Machado de Assis e Márcio Souza
também estiveram entre suas leituras precoces, entre tantos mais.
Aos 13 anos escreveu uma aventura longa, sua primeira incursão
literária, depois destruída, a que intitulou "O inferno verde". O
menino que se deslumbrava com os mestres da literatura brasileira,
hoje, com estas alentadas páginas de "A espera", está sendo
comparado pela crítica a Graciliano Ramos e João Ubaldo Ribeiro,
dois autores de sua especial preferência. É inegável, pelo menos, o
parentesco. Para Nicodemos Sena, literatura é opção de vida e tem
função social, devendo contribuir para tornar o homem melhor e o
mundo mais suportável, com as pessoas mais tolerantes.
Nascido em 1958, o santareno
Nicodemos Sena foi em 1977 para São Paulo estudar, tendo se
bacharelado em jornalismo pela PUC e em direito pela USP. Residiu
anos em São José dos Campos, para onde deverá retornar agora em
2001, após ter cumprido em 2000 a tarefa de diretor de redação do
jornal "A Província do Pará". Após lançar "A espera do nunca mais"
em Belém, Santarém e São Paulo, e ter recebido o Prêmio Lima
Barreto-Brasil 500 Anos, da União Brasileira dos Escritores, no Rio,
Nicodemos já prepara o segundo romance.
Rigoroso com a sua própria
criação, o autor não pretendeu escrever um romance "ecológico" ou
"histórico", coisa que para ele seria mais fácil mas perigoso,
podendo cair numa vertente piegas. Preferiu o caminho mais árduo da
saga amazônica, cujo cerne situa-se na década de 50 em diante até os
derradeiros "anos de chumbo" da malfadada ditadura militar, quando o
capital internacional se instalou na Amazônia. Interessa-o flagrar o
choque cultural entre as duas culturas, a do branco e a do índio, de
como os valores de uma sociedade industrial tenta engolir, qual uma
cobra-grande engole na narrativa um pequeno sapo, a sociedade
autóctone e arcaica do caboclo desta região majestosa e
vilipendiada.
De muita pesquisa, imaginação e
criatividade resultou esta obra monumental, iniciada há cerca de dez
anos, quando Nicodemos se questionou sobre que forma usar:
naturalista? fantasiosa? realista? Decidiu-se por uma harmoniosa
dosagem de todas estas vertentes, e mais muita poesia e humanismo,
que sem estas duas últimas nada de criação vale a pena. Bebe o autor
na fonte de mistério das muitas águas amazônicas, porém escapando do
regionalismo limitador. Não esquecendo, no entanto, o que dizia Leon
Tolstoi: pinta tua aldeia e pintarás o mundo. E que o leitor não se
engane: como nas lendas indígenas, a trama é linear apenas na
aparência, uma vez que a sinuosidade dos rios e igarapés é volúpia
pura.
Um ano levou ele lendo e
pesquisando, mais quatro anos só escrevendo, e depois um ano e meio
lapidando o texto. Ou seja: quase sete anos de paixão pelo trabalho.
Um trabalho extenuante? Com certeza, porém o autor se deparou com
uma monumentalidade a que já não podia recuar, semelhante à
cobra-grande querendo engolir o seu criador, no caso, imaginador. "A
espera", na verdade, contém três romances dentro de si, até porque,
como diz o autor, os problemas da região se avolumam. O livro não
poderia senão refletir e representar a magnificência da Amazônia,
tanto na sedução de suas lendas, quanto na de seus problemas. "A
espera do nunca mais", de Nicodemos Sena, é uma lição de literatura
e de brasilidade.
*OLGA SAVARY é poeta e escritora,
autora, entre outros, de “Repertório Selvagem” (Fundação Biblioteca
Nacional)
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obra poética de Olga Savary
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