Nicodemos Sena
Conto: O triste fim do búfalo rosilho*
“Queres saber que fim levou o
búfalo rosilho? Preferia não contar, é muito triste. Ainda hoje
sofro quando me lembro. Insistes? Está bem, eu te conto o triste fim
do meu búfalo rosilho”. E, como se o tempo não contasse, sem
sofreguidão nem medo de perder a atenção, à maneira dos vaqueiros —
se ninguém lhe ouvisse, dava no mesmo — foi falando para si mesmo,
como se ensaiasse um monólogo que um dia ele declamaria à sua amada,
à luz das estrelas, talvez à volta duma fogueira, ou à mesa de um
bar, ou na cama, depois de amá-la como jamais amara outra mulher.
“Era novembro, quase dezembro,
quando meu pai me foi buscar em casa dos Alarico. Se eu adivinhasse
o que encontraria na ilha, não teria ido. Já em viagem, estranhei
que meu pai nada soubesse do búfalo rosilho. ‘Tá por lá, sabe onde;
vai lá alguém saber? Aquele animal tem dono?’ — desconversava quando
eu, vira-e-mexe, lhe indagava. Às vezes, fingia não ouvir minha
pergunta; por fim, quando o barco já contornava a ilha rumo ao
norte, onde ficava nossa fazenda, o meu velho, olhando-me
severamente, admoestou-me: ‘Julião, esquece o búfalo rosilho, o
bicho não se liga a ninguém’.”
“Havia algo errado, pressenti. Mas
se ele me contasse a verdade, de tão malvada e absurda, não teria
crido. Acho que ele calou não por isso, mas por medo, não de mim, um
pirralho, mas da minha reação, pois meu pai sabia da minha afeição
por aquele búfalo danado, que me era como um irmão mais velho, livre
e arredio, que não se misturava com fedelhos.”
“E havia muita coisa errada, isso
logo percebi, antes mesmo de desembarcar. Era novembro, quase
dezembro, e há dois dias beirando a ilha, eu não vira sequer uma
terroada. Em vez das pisadas do gado no terreno seco e rachado pelo
sol, o que eu via até onde os olhos alcançavam eram campos ainda
alagados, onde as manadas se atolavam no tijuco amolecido. Águas
ainda de julho? Então naquele ano não houvera o verão? Vi manadas
inteiras ainda suspensas em marombas, quando a maré alta repontava.
Mas as marés não explicavam as marombas em novembro, a invernia não
vai de abril a julho?”
“Não conto a alegria de novamente
pisar a terra encharcada do Marajó, sentir o cheiro de lodo e de
capim, a pele queimando ao sol escaldante, sem língua, porém, para
lamber tanta água. Nem conto a satisfação de encontrar de novo o meu
velho Tião, que — desde que nasci e depois já sem mãe — me fora o
verdadeiro pai, melhor que o de sangue, que não respondia a
perguntas e se afastava quando lhe pedia afeto.”
“Tião, meu velho, o que se passou
por aqui? — perguntei-lhe à noite, pois não conseguia dormir sem
saber do que já bem sabia, não com detalhes, mas sabia. Pois o Tião,
desde que cheguei — naquela tarde ele nem foi ao campo, mandou o
Lazário e os outros vaqueiros —, conversou com o pai e comigo sobre
tudo, mas não tocou no búfalo rosilho bangoleiro. E o seu silêncio
já dizia tudo, ou quase tudo, e agora eu queria conhecer esse quase.
Um longo e doloroso quase. Ainda mais contado pelo Tião, que sabia
narrar sem desperdiçar palavra, sem perder o ritmo nem o ouvinte.
Ele começou assim, como quem não vai dizer nada, por um ponto
qualquer.”
“O Nhozinho sabe a periantã? Se
sabe! Me desculpe a pergunta à toa, é que Nhozinho ficou um ano na
cidade e meio já parece dotô. Que ano, Nhozinho! O balsedo se
desgarrando das margens, a canarana arrastada louca pela correnteza
descendo os rios, sabes as ilhinhas flutuantes? Se sabe! E era
apenas maio, Nhozinho! Se fosse julho, vá lá, mas maio! Desde que
apareci no mundo não vi nada igual. Aguapé, matupá arrancados das
beiras dos lagos iam de bubuia não sei pra onde. No começo se
agarravam nos tesos, onde a malhada se entocava, amedrontada e
arredia. Eu, o Lazário, o Argemiro, o Manduca, e o resto da
vaqueirama, e até o Nhô teu pai (!), em riba dos cilheiros, já com
água pela barriga, ainda fizemos fechação durante uma semana. O Nhô
disse que era só um repiquete das águas, toró passsageiro lá pras
ribas do Amazonas, logo as águas iam baixar pra continuar subindo
devagar. A gente não desmentia, mas via o Nhô Domiciano cada vez
mais cuíra. E ficou inquieto quando os tesos sumiram e tudo virou
perau. Os cavalos nadavam que nem capivara e se afogavam, o vaqueiro
voltava a braço. Isso de um dia pro outro, sem aviso. E um sol dos
infernos, parecia que o satanás cuspia fogo pelo cu, e a água nem aí
pra ele. Crescia, crescia, crescia... E era apenas fim de maio!
Pensei que fosse o fim do mundo, mas o Lazário garantiu que Deus
prometeu não afogar o mundo mais de uma vez, da próxima a destruição
seria pelo fogo. E não havia mais mondongo; até o lago Arari
desapareceu, virou mar. Igapó? Nem falar, Nhozinho! As árvores
haviam sumido, só a copa dos açaizeiros mais altos resistiam à força
das águas, cocurutos desgrenhados onde os pássaros vinham se
abrigar, mas por pouco tempo, pois os açaizeiros eram arrancados do
solo e iam de bubuia não sei pra onde. Nhô Domiciano, que nem um
louco, punha o seu cilheiro pra nadar, procurando os tesos. O
Mundico, o vadio, a puxar saco do Nhô teu pai, com o cu na mão de
tanto medo, escafedeu-se de noite, arribando da fazenda numa
montaria. Depois eu conto o que aconteceu pro filho da mãe, bem
feito! Aos poucos fomos trazendo os búfalos, primeiro os pretos,
covardões, morrendo de medo de morrer. A gente ia fazendo o costeio
n’água, eu e o Lazário nos cilheiros, Nhô Domiciano e os outros nos
cascos, pra poupar os cavalos. Os rosilhos se escafediam da gente e
iam de bubuia de uma restinga pra outra, até não terem mais onde pôr
as patas, então os brabos preferiam morrer nadando do que se dar ao
costeio.”
“O rosilho morreu, Tião? Ele
morreu?”
“Calma, Nhozinho; mal comecei a
estória. Mas te digo que ele não morreu, o danado. Primeiro enchemos
de búfalos o rancho dos vaqueiros, depois a casa-grande. Imagina que
Nhô Domiciano, misturado aos vaqueiros, numa noite dormiu no capim
que a gente cortava pros bichos! E a água subia, subia... Não era
repiquete coisa nenhuma. Enquanto Lazário e o Argemiro procuravam os
búfalos no alagado, eu e Nhô Domiciano começamos a levantar às
pressas a maromba, pois o rancho e a casa-grande já tavam lotados e
também logo o aguaceiro cobria os assoalhos. Fincar barrotes na
tabatinga, com água pela cintura, não é fácil, tendo ainda de tirar
sanguessugas das pernas. O Lazário se enganou mesmo, ou lhe contaram
a estória errada, ou Deus enganou o tal Noé, pois parecia que o fim
do mundo ia ser de novo pela água. A chuvarada caía sem parar. E o
diabo escondeu a bunda com medo da água que ia subindo, subindo...
Em vez de mandar brasa, o demo começou a peidar, com raiva de deus,
que descumpriu sua palavra. Água e ventania, coisa medonha, Nhozinho.
Aquilo não era mais reponta, pois não havia mais maré alta nem
baixa, mas só um oceano. A dúvida era se o Amazonas tinha invadido o
mar ou se o mar havia engolido o Amazonas. De qualquer jeito, a
gente tava perdido, não sabia o que fazer, se acabava a maromba, se
ia buscar o gado extraviado, ou se agarrava o capim que passava
perto levado pela correnteza. Ia fazendo de tudo um pouquinho, num
desespero de ver. Quando acabamos a maromba e passamos o gado do
rancho e da casa-grande pra ela, metade da malhada ainda tava
perdida sabe Deus onde. E tudo rosilho!”
“E o bangoleiro, Tião? Acharam
ele?”
“Calma, Nhozinho, eu conto.
Enfrentando a maresia com os cascos, o banzeiro violento do mar,
conseguimos arrastar muitos rosilhos, mas a maioria se perdeu.”
“E o bangoleiro, Tião, se perdeu?”
“Calma, Nhozinho, eu conto. O
bangoleiro deixou-se trazer até perto da maromba, mas não quis
subir.”
“E daí, Tião, ele morreu?”
“Calma, Nhozinho, eu conto. O
bangoleiro se encostou num esteio da maromba e ficou ali dez dias
sem se mexer; queria que o Nhozinho visse. Que animal inteligente e
opinioso! Nhô Domiciano mandou todos caírem n’água pra arrastar o
rosilho pra maromba, pois tinha o risco das piranhas comerem ele.
Mas ele lutou, esperneou, mergulhou, ameaçou sumir no mundão de
água, até que deixamos ele em paz e ele voltou a se encostar no
esteio e se aquietou; dormia só com o nariz de fora. E nem comer
queria. Só depois de cinco dias o animal aceitou um pouquinho de
capim que Nhô Domiciano ele mesmo ofereceu pro bicho. Nhô Domiciano
parecia gostar daquele animal, senão não tinha feito com ele o que
fez.”
“E o que meu pai fez com ele, Tião?”
“Calma, Nhozinho, eu chego lá. Se
o Nhozinho tivesse aqui, chorava. Os rosilhos passando de bubuia,
inchados que nem baiacu, já meio fedendo, com urubus sobre eles,
vinham mortos sabe lá de onde, pois a ilha não tinha mais norte, nem
sul, só água. Mas o Nhozinho também ia rir.”
“De quê, Tião?”
“Do filho da puta do Mundico.”
“Mas ele não fugiu?”
“Sim, mas depois de uns dez dias
voltou, mas de bubuia, de papo pro ar, no maior sossego, tirando uma
soneca das que ele gostava, com um urubu em cima do barrigão
inchado, a cara todinha bicada, aquela cara sonsa. Nhô Domiciano
mandou o Lazário empurrar o sem-vergonha com um varijão, pois se
engatou embaixo do assoalho da casa-grande, como se pedisse pra ser
aceito de volta. A correnteza arrastou ele sabe lá pra onde; pro céu
é que não foi.”
“E o rosilho, Tião?”
“Ah! O rosilho, sim, o rosilho.
Pois é... Após dez dias a água deixou de crescer, a chuva foi
afinando, mas demorou pra começar a descer. Era já final de junho,
mas nem julho chegou! O capim ia acabando nas baias, logo o gado das
marombas ia começar a morrer. A gente ainda saía com os cascos pra
catar algum balsedo, mas desistimos, o mar levou todos os periantãs,
sabe lá pra onde; a maromba e a casa-grande pareciam duas pequeninas
marrecas solitárias na imensidão das água. O rancho dos vaqueiros se
afogou. Dava pena de ver Nhô Domiciano, mais calado que ele próprio.
Acho que vi ele um dia chorando. Dá raiva ver um homem como Nhô
Domiciano chorando. E eu pensava que Nhô Domiciano não tinha
coração. E como tem! E como também gostava do búfalo rosilho!”
“Gostava, Tião? Então o rosilho
morreu?”
“Calma, Nhozinho, eu conto.”
“Caralho, Tião! Então não enrola!”
“Essas coisas a gente pode dizer
assim num zás, Nhozinho? O Nhô teu pai mandou o Lazário, de casco,
tentar achar a casa-grande da fazenda Bonfim. Depois de doze horas
ele voltou e disse que morreu lá muito búfalo, e que os pássaros e
outros animais selvagens se amontoaram num teso que sobrou lá pro
sul da ilha. Mas não dava pra levar os búfalos pra lá, era muito
longe e o banzeiro não cessava. Nhô Querêncio, dono da fazenda
Bonfim, esperava ajuda da cidade, barcos pra pegar o gado, ou pelo
menos trazer capim. A gente já andava comendo os animais mais
baqueados, que iam morrer de qualquer jeito de fome e cansaço. Foi
então que Nhô Domiciano mandou não darem mais capim pro búfalo
bangoleiro. Parecia magoado com o animal que não confiava nele. Pois
pra Nhô Domiciano cada búfalo é como gente. Gente ruim, mas gente.
Na manhã do quarto dia o rosilho havia desaparecido. Pensamos que,
já sem forças, tinha sido tragado pela correnteza.”
“E ele morreu, Tião?”
“Não, eu conto.”
“Então desembucha, Tião”
“Bem — encurtando o caso, Nhozinho
—, em julho as águas começaram a baixar. Só em julho, Nhozinho!
Noutros anos, já estava quase tudo de fora, mas este ano só havia
água. Ainda bem que a vazante, nos primeiros quinze dias, foi
rápida. A gente começou a enxergar, aqui e ali, longe, ilhotas de
capim que apareciam de repente, vindas não se sabe de onde.A cada
dia ficava uma marca nos esteios da maromba. Um, dois, três
palmos... Então a gente ia buscar capim nessas ilhotas, eram os
cabuchos mais altos das restingas e tesos que começavam a aparecer.
Mas era pouco capim pra sustentar todos os animais, que continuavam
morrendo. Até que as aves foram aparecendo, e Lazário, alegre, falou
do urubu de Noé, que foi e não voltou, avisando o velho que tinha
achado terra. Eram garças, marrecas, patos-do-mato, jaçanãs, que
vinham, não se sabe de onde. Da parte mais alta da ilha, pro sul,
onde os animais se empoleiraram, depois a gente soube.”
“E o búfalo rosilho, Tião?. Ele
morreu mesmo?”
“Não, Nhozinho; não desta vez.”
“Então ele morreu depois? Fala
logo, Tião!”
“Calma, meu Nhozinho, eu conto. Em
agosto, a ilha ressurgiu, quer dizer, não a ilha, mas milhares de
ilhinhas. Em setembro, as ilhinhas se uniram, formando ilhas
maiores. Em outubro, os animais tinham deixado as marombas, só não
as búfalas que esperavam cria pra aqueles dias; chapinhavam que nem
bêbados pelo lodaçal, os mais fracos ainda morreram, nunca os urubus
passaram tão bem. Um belo dia, na fazenda Santa Inês, quem apareceu?
O teu búfalo rosilho, Nhozinho!”
“E cadê ele, Tião?”
“Calma, Nhozinho. Queria que o
Nhozinho visse o animal: gordo e formoso, mais arretado que antes.
Nhô Domiciano, que tem coração, mas de pedra, quando soube do
bangoleiro, mandou dizer ao Nhô Dioclécio da Santa Inês que fizesse
do bicho o que bem entendesse. Já tratou o animal de bicho e disse
que o bicho era o próprio satanás.”
“E daí, Tião, o que o Sr.
Dioclécio fez com o rosilho?”
“Nada, não fez nada, Nhozinho. A
ilha se levantava do fundo do oceano, mais linda que antes. O verde
brotava da lama. Jacarés, jibóias, tartarugas passeavam entre as
pernas da gente sem medo, e a gente também nem ligava, parecia o
começo do mundo. Os búfalos, com água pela canela, se enlameavam no
campo, mais uma vez livres; comiam o capim dia e noite, babando,
como se comessem pela primeira vez. Mas o prejuízo foi enorme, a
ilha está coberta de carcaças de tudo quanto é bicho. Nhô Domiciano
perdeu quase a metade da malhada.”
“E o rosilho bangoleiro, Tião? —
eu insistia, no auge da expectativa e do desespero. Foi então que o
Tião, sabendo que eu já sabia, começou a narrar o final da
tragédia.”
“Foi no começo de outubro, quando
a tormenta da natureza havia passado, que a desgraça do rosilho
verdadeiramente começou.”
“Chegou uma gente da cidade —
continuou Tião —, num barco bonito, branquinho que dava gosto, cheio
de luzinhas no mastro, com a bandeira brasileira pendurada no
mastrinho da popa. Diz-que vieram ajudar os criadores do Marajó a
multiplicar o rebanho. Por que não vieram antes, quando Nhô
Domiciano precisava salvar o rebanho? Eu perguntei, ninguém
respondeu. No dia 5 de outubro, dia de São Benedito, quase todo
mundo da ilha foi pra fazenda de Nhô Dioclécio; ia dar uma festa de
arromba e, depois de tanta desgraça e tristeza, a alegria devia
chegar. Diz-que também um dotô, que veio da cidade no barquinho
branco, ia falar. Fomos todos pra Santa Inês bem cedinho, menos o
Argemiro, o vaqueiro mais novo e bem-mandado, que lá deve não ter
gostado de ficar, mas era o de menor regalia e tinha bezerrinhos pra
vigiar. Nhô Domiciano na frente, cossando o cilheiro, a gente atrás.
De vez em quando tinha que desviar de alguma carcaça, onde os urubus
rondavam a gente dobrava. Do outro lado do Arari — e olha que o lago
ainda estava muito largo! — a gente já enxergou a preparação que ia
ser a festa. Coisa que nunca se viu. Na frente da casa-grande tinham
feito um arco-íris de papeizinhos cortados como bandeirinhas —
verde, amarelo, azul, branco — e um jirau de tábuas, ninguém sabia
pra quê. Não fomos os primeiros, e o pessoal continuou chegando de
tudo quanto era canto. Do Bonfim, Santa Isabel, Nossa Senhora das
Mercês, Santana, São Miguel, Assunção, da fazenda Arari, e Dos
Remédios. Enquanto os patrões faziam a roda na varanda da
casa-grande, assuntando ainda na desgraça, o tal dotô lá com eles,
falante e galante, todo de branco, diz-que médico de bicho; como é
que chama, Nhozinho? Isso! Que palavra mais feia! Lembra salafrário.
Enquanto eles lá conversavam entre eles e o dotô, a vaqueirama se
divertia no terreiro esfolando quatro búfalos pra festança. E o povo
ia chegando, mas tudo homem, chega fedia. Mas diz-que Nhô Querêncio,
da fazenda Bomfim, tinha contratado umas vinte mulheres pra aliviar
a moçada, e ninguém duvidava, pois o Nhozinho mesmo perdeu o cabaço
num dos forró do Nhô Querêncio; lembra, Nhozinho? Se lembra! Hora
dessas Nhozinho me conta das fêmea da cidade? Se conta, Nhozinho
conta. Mesmo agora, se o Nhozinho tivesse lá, se metia na roda, ora
se metia. A gente ia esfolando os búfalos, estripando, desossando,
pondo no molho, preparando a lenha pra hora de assar, fazendo os
espetos, cada um querendo ajudar mais que o outro, sem assuntar em
nada; não que a cachaça que Nhô Dioclécio distribuía do seu
alambique já fizesse zonzeira, mas por que ninguém tinha mais miolo
na cabeça desde que soube das vinte raparigas que Nhô Querêncio
mandou trazer. O peão pensava com a outra cabeça, aquela sem pescoço
nem ombro, e muito menos juízo, e era um tal de nego apalpar o saco
pra ver se não havia caído. Lá pelas tanta, o sol cozinhando a
cachola, Nhô Dioclécio, com seu melhor terno, o escuro, como um
búfalo brabo ao lado de uma garça, apareceu na escada da varanda, ao
seu lado o tal dotô; como chama? Não, não é salafrário. Sim, isso
aí, Nhozinho. Que palavra! Vou chamar de dotô-garça, todo de branco,
é mais fácil. Atrás dos dois, o Nhô teu pai, o Nhô Valdevino, da
fazenda Arari, o Valdemar, das Mercês, e assim o resto. Subiram no
jirau de tábuas, debaixo das bandeirinhas coloridas, e Nhô Dioclécio,
dono da festa, chamou alto a homenzarada. No terreiro, frente ao
jirau, uns cem homens, e chegando mais. Nenhuma mulher, pois tanto
Nhô Dioclécio, como os outros patrões, tinham filhas na cidade,
moças prendadas, e as madames vinham pouco na ilha, e nos dias de
festa nunca estavam. E o vaqueiro que tinha sua mulher, se cuidava,
vinha só, pra poder variar com as raparigas do Nhô Querêncio, e
também com medo da vaqueirama no escuro confundir urubu com meu
louro e mandar ver na sua cabocla. Isso aconteceu com o Zelito das
Mercês, que hoje cria um filho que é a cara do Cirilo da Assunção.
Mas o tal dotô não assuntou nesse porém, pois, depois que Nhô
Dioclécio pediu silêncio, o dotô começou o seu palavrório assim, na
ponta dos pés, com os dois braços levantados, parecia que ia voar:
‘Meus senhores e minhas senhoras’. Aqui embaixo a vaqueirama toda
engasgou o riso, pois o homem merecia respeito, veio da cidade pra
ajudar. O Nhozinho me perdoa a ignorância, mas parece quanto mais o
homem estuda mais louco fica, e besta, pois não é que o dotô-garça
chamou o rosilho de kerebau e o preto de variedade búfalis? Mas eu
lhe digo algumas palavras que fiquei repetindo a tarde inteira e não
esqueci: laticínios (um cachorro latindo?), terapêuticas (terras
pretas?), sanidade (sanitário?), gástrica (gás de tripa?),
genealógico (gênio do relógio?), afrodisíaco (flor de quê?), e
outras que esqueci. O Nhozinho depois me explica? Se explica! Mas
pelo que o Nhô teu pai me disse depois da festa, pelo que fui
coletando de um ou outro vaqueiro curioso, e pelo que aconteceu
depois, acho que posso lhe dizer do meu jeito o que o tal dotô
queria dizer.”
“Pelo que o Tião me traduziu do
discurso do doutor veterinário, representante do governo do Pará,
naquele fatídico dia, ele deve ter dito algo assim: ‘Meus senhores e
minhas senhoras. Desde 1890, quando entraram no Brasil, sediados
nesta maravilhosa ilha do Marajó, os primeiros 50 búfalos, a
população de bubalinos vem crescendo numa velocidade bem maior do
que a dos bovinos, graças a inigualável resistência que a espécie
possui e a sua grande capacidade de poder transformar alimentos
pobres, em leite, carne e trabalho. Meus senhores e minhas senhoras,
tenho que aplaudir, em nome do governador do Estado, a desmesurada
valentia e o denodado patriotismo destes verdadeiros brasileiros,
que se arrojam na faina diuturna enfrentando a natureza mais bruta,
pela honra e glória da pecuária nacional. Aos donos de fazendas,
como os Senhores Dioclécio, Domiciano, Valdevino, Querêncio... e
todos os que aqui se encontram e os que não chegaram e não puderem
vir, e a vocês, vaqueiros, valentes e destemidos, que arriscam suas
vidas pela grandeza do Brasil, a pátria agradecida rende homenagens.
O governo, porém, reconhece ter feito pouco para o incremento da
bubalinocultura, mas, feita a mea culpa, arregaça agora as mangas na
grandiosa tarefa de transformar a criação de búfalos na principal
fonte de desenvolvimento das regiões alagadas do Pará. Para isso, é
necessário que se esclareçam ao mercado consumidor a excelência da
carne e as vantagens do leite, este de ótimo sabor, levemente
adocicado, mais nutritivo e mais rentável na produção de laticínios,
além de suas propriedades terapêuticas, difundidas na Ásia, entre as
quais se inclui seu uso como afrodisíaco, assim como na cura da
úlcera gástrica. Quanto à valorização da carne, esta depende de uma
postura mais correta e patriótica dos frigoríficos e revendedores,
não discriminando os bubalinos. Em relação ao abate, todas as
pesquisas indicam o rendimento de carcaça semelhante ao dos bovinos
e, quanto ao consumo, a carne se apresenta no mercado sem
diferenciação, como sabor, cortes e modo de preparo iguais à
denominada carne de vaca. Além disso, entre as carnes dos bovídeos,
apresenta maior sanidade, devendo ser melhor qualificada com vistas
à exportação, a partir da premissa de que o búfalo é animal mais
resistente a inúmeras doenças. O couro, mais resistente, tem
múltiplos usos, desde a indústria de arreios e a indústria de
móveis, até na produção de calçados e vestuário. Mas, meus senhores
e minhas senhoras, convencer os consumidores das excelências dos
produtos de origem bubalina não será tarefa fácil’.”
“A vaqueirama, Nhozinho, teve de
gritar vivas e bater palmas ao dotô-garça, a mando do Nhô Dioclécio.
Mas a mim ninguém enganava: se o dotô e o governo quisessem mesmo
ajudar, ajudavam, não precisavam vir dizer. Por que não mandaram
barcos salvar as malhadas que se afogavam na enchente? Mas uma coisa
eu assuntei, Nhozinho, e não entendi. Por que Nhô Dioclécio e os
outros patröes, com mais tirocínio que a vaqueirama, acostumados a
negociar na cidade, ficavam ouvindo o dotô e aplaudindo? Havia
treta, se havia! O Nhozinho, quando for dotô, não vai ser que nem o
garça, pelo amor de deus! Gente boba, fala, fala que fala, e fica
toda besta pensando que a gente entende. Acho devia haver só uma
língua, pra vaqueiro, pescador, governador, dotô, uma língua só pra
todos, a brasileira, que todos entendessem, não do jeito que é;
assim o pessoal da cidade ouvia o que a vaqueirama fala; o Nhozinho
entende? Se entende! O Nhozinho vai ser um dotô diferente. Mas o
garça continuou discursando, Nhozinho. E eu atento nele. Diz-que pro
pessoal da cidade comer mais carne e beber mas leite de búfalo e
para os donos dos búfalos receber melhor preço; tinha de fazer a
gente da cidade gostar dos búfalos, perder a idéia errada de bichos
brabos, selvagens, puladores de cerca. E aí, Nhozinho, o dotô-garça
começou a puxar saco dos pretos, bichos sim, mas mansos,
bem-mandados, por isso escaparam da enchente, e não como os
rosilhos, de chifres apontados que nem facão, selvagens, fujões,
criadores de caso, puladores de cerca, que preferiam morrer de fome
ou afogado a precisar de gente. Diz-que tinha de apurar a raça
acabando com os rosilhos. Eu pensei no teu búfalo rosilho, Nhozinho,
pois lembrei que Nhô Domiciano pensava que nem o tal dotô. Mas, cá
comigo, Nhozinho, eles tão errados, os mansos dão mais trabalho, são
frouxos e carecem de mais cuidados, e dão menos cria que os
rosilhos, arredios, entocados no tijuco de meu deus, comendo sozinho
e se multiplicando que nem diabo, sem precisar de vaqueiro, menos de
médico salafrário (!); como mesmo chama o dotô, Nhozinho? Sim, sim,
que nome mais feio, Nhozinho! Ah, agora me lembro, depois de mimar
os pretos, o dotô diz que o povo da cidade tem preconceito; o que
quer dizer esse palavrão, Nhozinho? Ah...é isso? Acho que sei, não é
como pensar que toda cobra é venenosa? Amm... entendi, Nhozinho. O
dotô-garça também disse que pra minorar a fama de mau e o azar do
búfalo ser um bicho negro, era melhor mudar o nome do búfalo para
gado São Benedito, e assim, Nhozinho, de bicho pagão, do capeta,
virava cristão, protegido pelo santo padroeiro, até meio branco,
pois o povo da cidade não gosta de negro.”
“E agora, amada minha, fecha os
olhos, porque o fim da estória é só pra se ouvir. Estória do ouvi
dizer, contada e não escrita, pois só a memória popular registra
essas estórias de búfalos rebeldes e vaqueiros nascendo da lama e na
lama sendo enterrados. Pois, se fosses comigo, no dia seguinte, à
fazenda Santa Inês, verias com os olhos aquilo que os meus ouvidos,
embora descrente, criam. Verias, ah, se verias! Pelo menos dois
punhadinhos de cruzes fincadas na tabatinga recoberta de musgos
ainda encharcados, que passavam a metade do ano debaixo d’água. Hoje
o Tião é estrume dessa lama e tem como lápide a imensidão. Fecha
teus olhos, minha amada, que essa estória é pra se ouvir.”
“Até hoje me pergunto de onde Tião
tirava suas estórias, pois nasceu e, segundo corriqueira sina,
também morreu sem nunca ter saído da ilha. Sabia da cidade por Nhô
meu pai dizer, e imaginava outras ilhas como o Marajó prá lá do
mundão de água, porque duas ou três vezes viu, lá muito longe, as
luzinhas de uma coisa se movendo sobre as águas e Nhô Domiciano
disse ser um bicho que nem cobra grande, que anda de ilha em ilha,
mas nunca quis parar no Marajó. Tião desconfiou que a sua ilha fosse
uma ilha muito da vagabunda, indigna do bicho navio. Então quem lhe
contou as estórias que eu cresci ouvindo dele? Recordo de uma: na
China (imagina na China, Tião na China?!) havia um deus Byres, Rei
de Kine ou Niu Wang, personificava o búfalo. Ele era representado
por um gigante de cinco metros de altura, a mesma atribuída a Buda.
Esse deus tinha chifres, boca e orelhas de búfalo. Como vestimenta,
trazia uma capa vermelha (Tião dizia que as baetas dos vaqueiros do
Marajó eram a veste de Deus; a gente ria), um capacete, e, como
arma, uma lança de três pontas (os vaqueiros, segundo Tião, não
precisavam mais do escudo nem da lança desde que os pretos, dóceis,
chegaram da Índia, e os rosilhos, apesar de arredios, se tornaram os
melhores amigos dos vaqueiros; estórias de vaqueiro, a gente
pensava). O deus, segundo Tião, era um guerreiro de muita força,
escudeiro especial do Rei de Chou, a quem defendia de seus inimigos.
Por essa época, e antes, não existiam bois na terra e o homem não
tinha animais para ajudá-lo no seu cultivo. Conseqüentemente, ele
passava mal, com muito pouco para se alimentar, ficando às vezes
três dias sem comer (os vaqueiros, apesar de paupérrimos, nunca
passaram fome na ilha, pródiga em peixes e ovos de aves e répteis
como a tartaruga, daí mostrarem-se incrédulos). O imperador dos
céus, sensibilizado com os esforços do homem para sobreviver, enviou
um boi a terra para conversar com o homem e tentar resolver o
problema. Mas o boi confundiu a mensagem dizendo que o imperador dos
céus tinha decretado que o homem poderia comer três vezes por dia.
Tal engano agravou a situação, pois se antes, quando os homens
ficavam até três dias da semana sem comer, já faltavam alimentos,
imagine-se agora que poderiam comer até três vezes por dia, e todos
os dias! E Tião dizia, para riso geral: ‘Comer muito não é valentia,
comer pouco mas todo dia’. Então o boi foi mandado de volta a terra,
mas desta vez para ficar e ajudar o homem a plantar e produzir o
necessário para sua alimentação. E Tião profetizava o fim dos
búfalos rosilhos, que se insurgiram contra o imperador dos céus,
pois não se prestaram à cangalha; seriam perseguidos e sacrificados
pelos homens, que receberam o boi como mero objeto de trabalho, sem
o digno respeito, e por isso também seriam um dia punidos. Se Tião
repetisse muito essas estórias, logo o teriam por louco,
principalmente porque dizia que esse boi que veio do império celeste
era chamado na China, onde fora lançado, de ater-ox, quer dizer
búfalo do pântano ou Shui niu. Isso era ainda mais absurdo, pois no
Marajó todo vaqueiro sabia distinguir o búfalo do pântano, os
rosilhos, do búfalo de rio, os pretos.”
“Mas a estória de Tião tinha
fundamento. Meu pai, quando contou a genealogia da minha família,
começou dizendo dos 50 búfalos que chegaram da China, e que só
depois, muito depois, chegaram os pretos. O imperador dos céus,
dizia Tião, mandara os pretos para serem bestas de carga do homem,
uma vez que os rosilhos a isso se recusaram.”
“Quando Tião começou a narrar os
últimos momentos da vida do meu búfalo rosilho bangoleiro, também
suspeitei que meu amigo desvairasse, em fase adiantada de demência,
vagando entre as estórias fantásticas de vaqueiro e a realidade. Mas
ele contava com tantos detalhes — o que, aliás, entre os vaqueiros,
acostumados a homéricos devaneios, não é prova lídima da verdade,
mas de simples verossimilhança — que eu, recusando-me a crer, cria.
Cria porque já sabia, embora a dor e a revolta tenham me levado no
outro dia a Santa Inês, para ver com os olhos o que os ouvidos já
bem ouviram. Agora, para encolher o espichado, conto eu o que me
contou Tião — os últimos instantes do meu búfalo rosilho.”
“O doutor veterinário, dotô-garça,
imagino, para assombro da vaqueirama, contou, com diferenças de
somenos, a estória do deus Byres, com chifres, boca e orelhas de
búfalo, que defendia o Rei de Chou, na China. ‘Queria que Nhozinho
visse a boca aberta da vaqueirama. Diz-que o imperador dos céus,
penalizado com o sofrimento dos homens, que passavam fome, mandou o
búfalo do pântano, os rosilhos (!), os primeiros animais
domesticados pelo homem, para ajudá-lo na agricultura, mas o
imperador teve de mandar outro boi, o do rio, o preto, para ajudar
os homens, vez-que os rosilhos se rebelaram contra o imperador dos
céus e contra os homens, recusando o arado e a cangalha,
extraviando-se pelos pântanos como feras. Os rosilhos deviam ser
mortos, concluiu o dotô-garça. Imagine o Nhozinho a cara da
vaqueirama, admirada, me olhando, pois riram de mim quando dizia que
os rosilhos um dia seriam sacrificados pelos homens. Mas agora era o
dotô que falava!’. O doutor veterinário continuou, ladeado pelos
fazendeiros, inclusive meu pai, do alto do jirau de tábuas, ou
melhor, do palanque: ‘O governo brasileiro, representante do
imperador dos céus, decretou o dia 5 de outubro, que a Santa Madre
Igreja escolheu como o dia de São Benedito, para o dia do búfalo —
dos pretos, bem verdade, e não dos rosilhos, que se bandearam pro
lado do capeta e receberão por isso o seu castigo. Doravante ninguém
mais chame os búfalos de búfalos, mas de gado São Benedito; que
todos os rosilhos sejam levados ao matadouro, e morram primeiro os
touros reprodutores, para não continuarem a propagar a inimizade, a
revolta e a subversão entre os animais domésticos’.”
“E foi aí, Nhozinho, que começou o
fim do rosilho bangoleiro — falou-me Tião, com os olhos vidrados de
viva emoção, com um quê de loucura, que me ressuscitou a esperança
de que tudo fosse o cúmulo da mais desbragada fantasia de um
vaqueiro atormentado pela solidão e pela tormenta infernal que se
abatera sobre a ilha. Mas não, quase louco estava eu, não querendo
crer no que cria. Os vaqueiros perdem, com a decrepitude, a visão e
as laçadas, mas nunca a memória e a razão. Tião chegara a esse
ponto, as suas fantasias, que antes provocavam risos, agora eram
reverenciadas como depurada sabedoria. Ao prever o fim dos búfalos
rosilhos, angariou o respeito digno dos profetas. ‘Tragam o rosilho
mais famoso, o que criou mais casos, o que mais pulou cercas, o que
mais emprenhou as búfalas pretas, o que nunca se deu ao costeio, o
que não entrou num curral ou numa maromba, o rosilho mais selvagem
da ilha; tragam o bicho pro terreiro, pertença a quem pertencer, o
governo indeniza o proprietário’ — determinou o dotô-garça’. Ah,
Nhozinho, eu senti um arrepio; pensei logo no teu búfalo rosilho;
quem mais podia ser escolhido? Era o mais famoso, e fizera tudo o
que o dotô dissera, e muito mais, e até se salvou da enchente,
sozinho, sem ajuda de nenhum vaqueiro. E trouxeram o búfalo rosilho
bangoleiro arrastado pro meio do terreiro, frente ao palanque. Foi
preciso cem homens pro serviço. Menos o Tião, que se recusou a
participar da caçada, desobedecendo pela primeira vez a uma ordem do
patrão. Mas meu pai, embora contrariado, não o castigou, quem sabe
em respeito a mim, pois sabia que Tião se recusava não por ele, que
tudo previra, e aceitava os vexames da vida como fatalidades.”
“Embora peiado por cem cordas,
acochado, completamente imobilizado, o bangoleiro não se rendia. Os
dois olhos negros, arredondados, depois de tanta luta, estavam ainda
mais projetados, e injetados de ódio; reviraram-se enormes, de baixo
para cima, insultando a roda dos vaqueiros que, sem dó nem
compreensão do que se passava, divertiam-se com o sofrimento do
pobre animal. ‘Pra mim, a festa acabou ali, Nhozinho. Xinguei muitos
cabras, pela covardia que tavam fazendo; por que não soltavam o
bangoleiro e cada valentão não enfrentava o animal sozinho? Uns
frouxos, e bestas, dominados por um sujeito que nunca pisou na lama,
com mão de moça prendada, com roupinha branca e a vozinha de
periquito! Não eram valentes, brabos que nem búfalos, capazes de
matar outro homem por ciúme ou bebedeira? Trouxas é que eram, os
valentões! Pois, Nhozinho, como não viam que, des-que o vaqueiro
nasce, às vezes no mesmo lugar, da mesma maneira que os búfalos, é
com eles que se valem, e ainda mais com os rosilhos, que, se fogem,
é que não gostam de dar trabalho? Pois eu lhe digo, Nhozinho,
observando os rosilhos, descobri que o selvagens são é tímidos e
carentes. Quando o imperador do céu mandou o bicho para ajudar os
homens, eles devem ter maltratado o bicho, humilhado demais o
coitado, daí ficou assim, arredio, brabo, mas é só deixar ele livre,
solto no pântano, que ele não foge, pois quem é livre foge do quê?
Mas o bicho-homem tem a mania de dominar, né, Nhozinho? Mas depois
que o tal dotô foi embora, quem ficou com a gente? Os búfalos! E os
rosilhos sofrem junto com a gente des-que o mundo é mundo; são
nossos amigos mais antigos; invés de castigo, merecem respeito. De
noite ainda fui com uma rapariga do Nhô Querêncio, mas broxei,
Nhozinho; talvez a idade, talvez os olhos redondos da cabocla, e
tudo o que é redondo e negro lembra os olhos do rosilho’.”
“Mas o pior está por vir, amada
minha. Ainda insistes? Então vamos até o fim.”
“Só uma mente doentia, lunática,
poderia conceber tamanha maldade. Em nome do imperador dos céus e do
desenvolvimento da pátria, pregar o extermínio de uma espécie das
mais antigas, que Deus criou para conviver com o homem e ser-lhe
útil. Só um demônio depravado poderia, em nome de Deus e do
progresso, torturar um animal indefeso, e tirar prazer da sevícia.
Não bastou só matar — que a simples morte é corriqueira, e a vida
faz falta só ao morto ou a quem dele precisa. Às vezes, é mesmo
desejada, e, para alguns, nem existe. De forma que, o dotô-garça,
homem estudado, entendido nos significados, concebeu não uma morte,
mas um espetáculo. E que espetáculo! Fechaste os olhos, amada minha?
Melhor seria não ouvisses. Pois pouco do que se vê vai além da
retina, mas tudo o que se ouve fica ecoando na memória. Ainda queres
ouvir o triste fim do búfalo rosilho? Então ouve.”
“O dotô-garça, comandando os
músculos da vaqueirama, mandou traspassarem o rosilho, ainda vivo,
com um varijão, como se quisessem assá-lo ao espeto, como um frango
depenado é assado inteiro, o varijão enfiado pelo ânus, perfurando
as vísceras, e, depois, saindo pela boca. ‘Eu pensei no Nhozinho.
Ah, se Nhozinho estivesse, não teriam feito aquela perversidade com
o animal. Mas o Nhozinho não estava, e quem era eu pra impedir? Já
foi muito não ter ajudado. Na hora que encaixaram a ponta do varijão
no cu do rosilho, antes do Zelito das Mercês dar a primeira porrada
com a marreta, vi Nhô Domiciano com cara de quem ia impedir, mas ele
já não podia, tinha dado o bangoleiro a Nhô Dioclécio, e um
fazendeiro é homem de uma só palavra. O Zelito das Mercês mirou a
ponta do varijão com perícia, como se mirasse o xiri duma rapariga,
e deu a primeira marretada, potente e enraivecida. Um vaqueiro
trocista gritou: Bate, Zelito! É o cu do Cirilo da Assunção! O
Zelito das Mercês criava um filho dele que era a cara do Cirilo da
Assunção. Com a primeira pancada, o bangoleiro deu um urro rouco,
longo e agoniado. Mas não se abateu, como se quisesse esconder a sua
dor. Só os olhos continuavam bem abertos, escancarados. Uma coisa
incrível aconteceu então, Nhozinho. Eu acompanhava o martírio do
animal lá de longe, por trás da roda de homens, que gritavam se
divertindo. O bangoleiro não podia me ver, mas eu via ele. Eram
olhos de gente, Nhozinho! Ódio e dor. A cada martelada do Zelito das
Mercês, o ódio dava lugar à dor, mas parecia que o animal não podia
morrer antes de ver alguém. Mirava a roda de brutos como se
procurasse alguém. Diz-que os animais não têm memória, nem
recordações, pois eu digo que têm, senão por quem ele procurava? Era
pelo Nhozinho, pensei. Mas o Nhozinho fazia um ano na cidade! Não
podia ser, tem gente que se esquece de tudo depois de um dia! Então
não agüentei, Nhozinho; corri pra roda embrutecida, rasguei caminho,
levei um cotovelaço do Tonhão do Bonfim, que não queria perder
visão, e quando apareci do lado de dentro da roda, a dois metros da
cabeça do bangoleiro, o animal, que até aí não parava de mexer os
bagos do olho, grudou os olhos em mim. A estaca já estava pela
metade, sangue escorria do cu do coitado, e uma lágrima, Nhozinho,
uma lágrima, grossa, vermelha, rolou pela cara do animal, que
continuava me olhando, já sem ódio nem dor, só desespero e uma coisa
estranha, Nhozinho, parecia saudade. Se aquele búfalo tivesse uma
língua que nem a nossa, falava. Nhozinho talvez não acredite nisso,
mas, tenho certeza, o bangoleiro mandou um adeus pro senhor! Uns
vinte homens suspenderam o varijão e penduraram o rosilho, que
morreu olhando pra mim, nas forquilhas de dois barrotes fincados no
terreiro. Deixaram o animal o resto da tarde ali, exposto, para todo
mundo ver. No instante que o animal expirou, outra coisa estranha
aconteceu, Nhozinho. Milhares de búfalos urraram, parecendo chorar a
morte do touro amado. O dotô-garça, pra completar, mandou trazerem à
força alguns touros rosilhos pra verem o bangoleiro espetado num
varijão que nem frango. Mas o doido não conseguiu amedrontar os
bichos, que urraram enraivecidos e arribaram pro campo, quebrando
cordas e arrastando vaqueiros. À noite, antes da festança de São
Benedito começar, antes da dança e da mulherança, o dotô-garça, com
a ajuda da vaqueirama, arriou o rosilho do terreiro, tirou o varijão
e fez o serviço de empalhação. O bangoleiro tá lá na Santa Inês,
frente à capela da Santa. Já tem vaqueiro achando sagrado o animal,
até os que ajudaram a torturar o bicho. A Santa que se cuide, senão
perde os devotos pro rosilho. Foi assim na China, já tinha dito. Vai
ser também no Marajó. O homem mata, depois se arrepende e acaba
santificando o morto. Falar a verdade, Nhozinho, o bangoleiro bem
merece adoração; foi um animal que nem gente. Mesmo empalhado,
continua com o olhar da hora da morte. Nem ódio nem dor, só saudade.
Se o Nhozinho quiser, eu levo o Nhozinho na Santa Inês pra ver’.”
“E eu fui, pois embora não tivesse
dúvida, não queria crer que a loucura fosse verdade. Mas era.
Encontrei o meu bangoleiro do jeito que o Tião contou. E concluí,
amada minha, que o meu obscuro amigo Tião, na sua simplicidade de
vaqueiro iletrado, era mais filósofo do que o mais festejado dos
filósofos, que um dia escreveu: ‘O homem pergunta um dia ao animal:
— Por que não me falas da tua felicidade e não fazes mais do que me
olhar? O animal bem queria responder e dizer: — Isso provém de que
esqueço imediatamente o que queria dizer. — Mas já esqueceu a
resposta e calou-se, o que muito espantou o homem’. Se o filósofo
tivesse assistido à morte do meu búfalo bangoleiro e o seu último
olhar, não blasfemaria contra Deus, afirmando que o animal não se
recorda.”
(Excerto do romance “A Espera do Nunca Mais”, Ed.
Cejup, 1999)
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