Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Nicodemos Sena


 

Fortuna crítica: Dirce Lorimier Fernandes


A saga de um naturalista devorado por
canibais em ritmo de folhetim

 

Depois de estrear em 1999 com “A espera do nunca mais”, uma saga amazônica de 876 páginas, prêmio Lima Barreto-Brasil 500 Anos da UBE/RJ, o paraense Nicodemos Sena reaparece com “A noite é dos pássaros”, seu segundo romance, uma dessas obras capazes de transitar entre os vários mundos a que pertence o homem.

De forma eloqüente, traz para o presente o diálogo entre a História e a Literatura dos séculos de desbravamento do Brasil. Recriando e desfazendo mitos existentes a respeito da relação entre o europeu e o elemento nativo, faz da narrativa uma boa maneira de atualização de conceitos, ou, pelo menos, reorganiza o objeto de observação a partir de um outro ponto de vista, que tem a responsabilidade em preservar um panorama distinto, que agora se constitui em romance.

“A noite é dos pássaros” traz uma homenagem a Alexandre Rodrigues Ferreira, que, embora tenha nascido na Bahia em 1756, é, a bem dizer, português, pois, com apenas 14 anos, partiu para Portugal, só retornando ao Brasil em 1783, como naturalista formado na Academia de Coimbra. No Grão-Pará (hoje Amazônia, onde nasceu Nicodemos Sena) e Mato Grosso, Alexandre Rodrigues Ferreira pesquisou, durante dez anos, as nossas riquezas naturais, do que resultou a sua “Viagem Filosófica”. Na obra de Nicodemos, o cientista aparece sob o codinome de “Alexandre Rodrigo Ferreira”, aprisionado na foz do rio Amazonas pelos índios tupinambás, canibais que têm uma certa predileção em alimentar-se de portugueses, considerados inimigos de seu povo.

No cativeiro, Alexandre encontra um livro, que veio parar na aldeia após um naufrágio. A obra encontrada narra a história de Hans Staden, um alemão que também fora prisioneiro dos índios tupinambás em uma aldeia de Ubatuba, litoral de São Paulo, no século XVI. Trata-se de uma história real, da qual o autor retirou alguns elementos e boa parte do roteiro do romance, sem prejuízo para a ficção, cuja originalidade está no “como” a história é convertida em história, e não no “quando” ou no “onde” transcorre a ação.

Publicado primeiramente no jornal “O Estado do Tapajós”, “A noite é dos pássaros” tem os principais ingredientes do folhetim – suspense contínuo; enredos que se imbricam gradualmente, numa intencional mistura de tempo e espaço, etc. Entretanto, o romance é mais do que a simples história de amor entre a índia Potira e o naturalista. Questões como o choque entre culturas e a combinação veracidade & ficcionalidade são abordadas. Nota-se a intensa pesquisa. Informações, idéias e costumes do século XVIII permeiam a ficção, numa refinada e complexa rede de referências, sem retirar-lhe a leveza. A utilização da língua tupi nos diálogos dá um sabor especial ao texto e permite ao leitor “vivenciar” o momento histórico.

“A noite é dos pássaros” dialoga com outras obras de escritores brasileiros. Como o herói de “I-Juca-Pirama”, Alexandre Rodrigo Ferreira será devorado em ritual antropofágico, porém, admite, perante o algoz, que não é um guerreiro e não se envergonha de demonstrar medo da morte. Como no “Macunaíma”, Nicodemos retoma lendas indígenas, misturando o real e a fantasia. Parte dos “fatos”, mas a estes não se prende, já que tem uma visão muito particular das coisas. Sem perder o pulso da narrativa, deixa que seus “pássaros” voem com a imaginação. Infelicitado pela morte iminente e anunciada, o narrador de “A noite é dos pássaros” busca nos sonhos um sentido para a vida, recupera o sentido original da cultura indígena, criando marcantes personagens, como a apaixonada Potira, que acompanha Alexandre durante toda a trama. E recria alguns mitos, como o de Sumé, o “cariua catu” (branco bom, em tupi), que alguns crêem ser a própria figura de São Tomé entre os índios. Enquanto no livro de Hans Staden (“Duas viagens ao Brasil”) o homem branco e o Deus que o governa são os elementos principais, no romance de Nicodemos Sena o índio é valorizado.

Por tais nuanças, que revelam o vigoroso estilo e intensidade do autor paraense, “A noite é dos pássaros” merece um lugar de destaque. É uma obra fascinante, na qual o escritor transpõe as barreiras impostas pela mediocridade e voa em todas as direções, sonhando, deixando-se levar pelas asas de seu rico imaginário, entregando-se aos espíritos que habitam a natureza, lá onde está a sabedoria, o medo lutando contra a valentia, a metáfora da vida e da morte.

(O Globo, 08/05/2004, Rio de Janeiro)
 


 

*Dirce Lorimier Fernandes é doutora em História da Cultura, pela USP, crítica literária, autora de “A Literatura infantil” (Loyola, 2003)