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Nicolau Saião




Sobre José do Carmo Francisco



 

O Autor sobre o qual nos debruçamos é um poeta multifacetado que ao Alentejo – e a esta região, mediante textos de claro enfoque calipolense – tem dado muito do seu discurso literário.

Claramente tributário de Florbela Espanca no que esta tinha de intenso, magoado e repleto de paixão (não falando nos seus textos em prosa que apontam directamente para sinais expressos no florbeliano “As máscaras do destino” – leiam-se por exemplo certos trechos de “O inventor”), JCF é de igual modo um irmão-colaço de Cesário, de Afnoso Duarte e de Irene Lisboa, bem como de autores estrangeiros – estou a lembrar-me de Guillevic ou mesmo de Tonino Guerra – que ao quotidiano transmutado endereçaram o melhor de um estro ancorado na realidade mais apropriada e sensível.


I

A memória do poeta é uma memória ausente. Pura e dispersa, vive acocorada em lugares sem tempo, sem idade, pois o seu mundo mais autêntico habita outra dimensão. Ou antes: colocado ante a impossibilidade de atingir, no quotidiano, a verdadeira vida de que falava Rimbaud, o poeta tenta cristalizar breves minutos, flashs que iluminem os continentes definitivamente perdidos onde a existência percorreu tardes e manhãs e onde a figura dos seres amados (o avô, os vizinhos, a mãe, os primos) se quedaram para sempre entre os pontos cardeais.

José do Carmo Francisco poderia dizer, à sua maneira, que a nostalgia (essa tentativa de sentir de novo o sol desaparecido dos dias e das noites, desgarradora e fremente) enforma e caracteriza boa parte da melhor poesia que hoje se vai fazendo na Europa. É que, agora, sabido que foi que as civilizações são mortais, passámos a todo o pano para o outro lado da questão: a imortalidade é a única promessa que vale a pena, como se refere num poema de Mathew Meade. E o poeta, que é um mastigador do mundo, na expressão de Cristovam Pavia ou, para seguir António Luís Moita, uma ponte, um transportador do testemunho dos que se vão para os que nascem, como por outras palavras sugere o grande autor de “Cidade sem Tempo”, sabe que só conta, para reerguer um universo à medida do Homem, com esse fiozinho de música, de encandeamentos, de cruzamentos e círculos que a palavra possibilita e faz vibrar. Como, numa fase da Obra alquímica, a escória se transmuta para ganhar nova face sob a luz do mundo, assim cabe ao poeta purificar as correspondências retidas nas palavras de todos os dias e que nos apresentam o seu corpo caótico, ainda não transmutado. É nele que reside, a nível do discurso humano – que se supõe possa sempre ter reflexo na realidade social e psicológica – uma certa redenção dos dias havidos ou a haver e que recoloquem no seu melhor lugar a existência das pessoas, dos animais e, porque não, das próprias coisas.

Sobe do vale a surda voz da água/sobe e perde-se no pó da tarde/ no som do comboio – no tempo/ (tudo me ajuda a lembrar a voz)
Não a posso ouvir mas sobe/ por uma estrada de pó – este rio/e as saudades do mar perdem-se/como se o mar fosse um retrato
Memória aos poucos diluída/(tempo destruído em luz na tarde)/ a voz da água canta surda/(não a posso ouvir mas sobe)
Uma outra estrada um outro tempo/ palavras no pó – nuvens paradas/o retrato do mar aos poucos/ (a voz da água a subir na tarde)
 

diz-nos ele na quarta parte do livro. “Como se o mar fosse um retrato”, sublinho, e que “aos poucos” invade a “memória aos poucos diluída” numa “(…)outra estrada(…)outro tempo” numa tarde perdida entre outras e só recuperada mediante a sua fixação no poema. Um mar real, evidentemente, mas também metafórico e que de alguma maneira simboliza a grande corrente que até nós chega, nos envolve, nos transporta com ela: o tempo em que somos e que nos constrói, mas em que a seguir deixamos de ser, ficando só resíduos como pegadas numa praia deserta. Poemas como “Até esse momento”, “A voz da mãe”, “Outro tempo”, para referir apenas alguns, são significativos de uma consciência que se reconhece nas raízes, paraíso perdido ou bosque encantado – esses paraísos e esses bosques que, por mais que o tente uma sociedade repleta de desvigamentos, caquexias e manhas, nunca poderão ser retirados ao poeta, aos poetas, porque habitam um outro espaço imune à sua acção corruptora e que, mediante o poema, passa a fazer parte de outros imaginários, ou de quem lê e entende.

Milagre da poesia – mas milagre também dos que, escrevendo, sabem isolar esses “restos dos sonhos no meio dos objectos” ou, ainda mais definitivo, “dos escombros” onde os corações se procuram num afã de conhecimento e de encontro.


II
 

Mas mal estaria o poeta que só tivesse no seu baú os ecos do passado, posto que transfigurados em experiências comunicáveis ao leitor. A breve trecho ficaria no meio dum prado imaginário, ou no centro dum pátio lajeado, executando com os dedos estranhos passos cabalísticos que procurariam retirá-lo do universo das sombras e daquilo que, mal ou bem, não pode ser recriado mas tão-só recordado como exemplar.

Em José do Carmo Francisco também há outras mansões para visitar. Ele dispõe e outras setas na sua aljava, de outros acordes na sua lira e alguns bem eficazes.

Por exemplo: um certo humor magoado, que é o que mais se ilumina, o que mais rebrilha em todas as direcções. Vale aqui o aviso aos zoilos: se topares um sorriso, repara nos seus cambiantes. Se é apenas um riso branco, atenção, porque pode estar inquinado por matérias que a breve trecho o transformam em simples riso alvar, próprio de distraídos, de alarves ou de pequenos patifes. Como dizia apropriadamente Isidore Ducasse, conde de Lautréamont: ”Riam, mas chorem ao mesmo tempo. Sejam lágrimas, seja mijo, seja sangue, aviso já que um líquido qualquer é aqui necessário”.

Em JCF esse líquido é o pequeno facto do dia-a-dia. Ele, aliás lealmente – mas também com marota argúcia legítima – avisa-nos logo no frontispício, socorrendo-se de uma citação de Marie Louise Fleisser: “A simplicidade é a ponta de um iceberg./ O que está por baixo e que não se vê é que é/ o verdadeiro e estende-se muito, até muito longe./ Por isso é que o que é simples tem mais peso.”. Isto na primeira parte do livro, “poemas do olhar”, em que o leitor é de súbito introduzido em diversas salas e espreita em variadas esquinas, num jogo de miradas em que o oitavo poema ( e chamo a vossa atenção para o facto de que o número oito é, na sabedoria tradicional, o símbolo do infinito) chega a ter duas versões, numa sugestão de que o olhar do poeta, neste caso facetado como o de uma borboleta fantástica, pode desdobrar-se em visões múltiplas, como num jogo de espelhos em que fosse finalmente possível vermos a nossa verdadeira face ou, se quiserem, a autêntica face do mundo e da vida. Diz-nos ele a abrir o poema “Sexto olhar”:


Era no outro lado do olhar:/ estátuas perfeitas que não respiram,/sinais de trânsito ou apenas/grandes olhos que piscam de modo maquinal.
E a seguir, numa dedução que tem por detrás muitas coisas vistas, magoadamente sentidas por quem anda pelas ruas e pela realidade que nos pretendem fornecer como boa:
E a grande paz industrial/ não se vê, não se transporta no olhar/ (existe nos discursos, alguns títulos de jornais/ repetidos pela noite fora num pequeno écran).
Quem procura enfrentar a solidão/ disputa um lugar na chuva interior:/ as lágrimas que se escondem nas carteiras/ são o húmido reflexo desse olhar perdido.
O record da memória do último sorriso/ perde-se entre discussões, pequenas guerras, doenças/ e num pesado silêncio é que se revelam/ os destroços do outro lado do olhar.
 

Humor magoado, incursão pelo quotidiano – são portanto características maiores da poesia de JCF, que sabe muito bem levar a água ao seu moinho poético onde a farinha é de diversas cores: a cor cinzenta da vida-vidinha, a cor violeta dum fantástico social que se desprende dos poemas assumidamente simples (ia a dizer fingidamente simples porque o poeta, já se sabe, é um fingidor definitivo mesmo quando os olhos lhe saem das órbitas, esbugalhados por obra e graça da sua qualidade interior de homens entre os homens) que contudo por um torcer de mão – o célebre tour de main dos alquimistas – um jeito de quem mexe na matéria com os dedos todos, se projecta e nos projecta noutra direcção, essa sim a sua verdadeira meta. Como no filme “Stalker” de Andrei Tarkovski, há na zona, esse lugar mítico que pode ser uma zona geográfica ou zona da alma a que as palavras nos conduzem, um ponto onde se cumprem os desejos. Também assim acontece na poesia. Por intermédio duma brusca inflexão, o poeta conduz-nos então na direcção certa – e o que ainda é melhor é que nós, leitores, podemos chegar a ela sem ser necessário exagerar na indicação. Podemos, por outras palavras, sentir esse clic.

Quer dizer: a poesia de JCF sabe ser discreta, sem aquelas ridículas redundâncias que anos e anos de metafísica mal assimilada nos habituaram a verificar em certos poetas, alguns dispondo mesmo de certa aura (provavelmente algo imprecisa). Dizia Georges Brummel que a verdadeira elegância não se nota, apenas se sente e parece-me que isso é inteiramente verdade tanto para a indumentária como para a poesia (aliás parentas muito próximas…). Um poeta indiscreto é como – e perdôe-se-me a expressão relativamente pitoresca – uma daquelas mademoiselles que realçam os seus atributos sem ponderação, colocando tudo sobre a mesa como reza a colorida expressão de Apolinnaire.

E poderemos aqui esquecer o ambiente sócio-psicológico existente nos tempos de Florbela, esse tempo com a sua delicadeza de maneiras e uma certa elegância que atravessava as diversas classes, mesmo as literárias?

Esta discreção não é, evidentemente, estudada. Nem por fora nem por dentro. Tenho para mim que o poema, tanto em Cesário como em Florbela, tanto em Irene Lisboa como em JCF – e poderíamos falar em muitos mais – faz inteiro corpo com o poeta no que este tem de quotidiano, aquele signo terra-a-terra que se sente palpitar na “Correspondência” em que a autora de “Carta da Herdade” faz reflectir os seus dias. Que é sinal de pessoa no seu tudo. O poeta de que aqui nos ocupamos é tudo menos um malabarista desses que, para explicarem como é que a visão de um pomar nos faz compreender melhor a existência, utilizam muitos quilos de retórica com resultados pouco entusiasmantes. Vejamos como procede José do Carmo Francisco:

As pequenas árvores não olham:/ fecham-se sobre si próprias/ como quemse esconde do sol.
Na tarde que o calor abafa/ um invisível fio nos liga ao chão:/ parte da água do poço sai para lá.
Anos depois se os frutos surgirem/ será também por esta água/ nesta tarde em resposta ao olhar.
 

Mas, voltando ao humor magoado que se solta dos seus textos, vejamos o poema seguinte intitulado “Férias”, no qual (ao contrário do que com Florbela se passava) tudo se resolve mediante uma resolução de tom que é tributária do último quartel do século vinte:

Até aqui os maus filmes indianos nos perseguem/ E se insinuam devagar a cada esquina./
Nas lojas de souvenirs são também anunciados/ Ao lado de explicações e apanhadeiras de malhas.
Por outro lado os pneus do automóvel/ tornam-se pesados/ Como se estivessem cheios de angústia/ em vez de ar.

 

Ou este ainda mais completo e elaborado, arrolando minutos idos, com o título de “Camioneta” e que bem poderia ter sido reportado a Vila Viçosa, com o seu ambiente de meia-província:

Nesse tempo de Verão/ o avô muitas vezes ajudava/ a carregar cestos com ameixas/ roubadas uma hora antes da partida.
Os homens dormiam na pensão/partiam para Lisboa sem temor/ e para quem se levantava cedo/ diziam um até logo breve.
A camioneta transportava sonhos/ um mundo irreal que lá vinha/ por isso havia quem na madrugada/ lhe ia ao largo a dizer adeus.
Hoje perdeu o tom, perdeu a luz:/ bancários, costureiras periféricas/ enchem a camioneta na manhã/ sem dinheiro porque têm passe.
Talvez a irónica nota de humor perdido/ (já não há avô nem ameixas roubadas)/ é o homem que vai comprar barato/ mas não junta ao preço o bilhete pago.

 

Esse bilhete que todos nós pagamos, diria eu metaforicamente, conhece-o bem JCF: toda a sua vida de criança a passou na província profunda, com todas as consequências que isso arrasta – os custos, como se diz agora, da interioridade, mas também uma determinada ligação ao solo, aos ritmos das estações que só os lugarejos ou as vilas proporcionam. De certa forma, como contraponto à inexistência de muita coisa típica da sociedade de consumo – que todavia, na sua vertente positiva, é indispensável – as aldeias e as vilas, se correm o risco da excessiva familiaridade sempre redutora da privacidade, estão pelo menos mais defendidas da normalização que ataca não só os seres humanos como os produtos de consumo (maçãs, galinhas, bens diversos), ainda que nos últimos tempos os poderes públicos tenham feito um esforço heróico e para eles compensador para estragarem definitivamente o que de bom havia nos pequenos agregados populacionais de toda a Europa com diferentes pretextos.

Mas a memória está felizmente aí, tomando nas suas asas o desforço de permitir ao poeta a viagem de volta à sua pátria chica, vingando-o decididamente de todas as humilhações que a cidade grande proporciona quotidianamente, nomeadamente através da tentativa de que todas as terras se pareçam (bem assim como os discursos poéticos), com seus pequeninos horrores tão naturais e redutores como um telejornal televisivo:

O súbito aparecimento duma moral/ em Agosto, no corredor da camioneta.
A voz da mulher lamentava/ os trinta e um dias do mês,/ a mãe a seu cargo e a praia/ tão sedutora na sua periferia.
A voz da mãe não se ouvia/ perdida num qualquer quarto escuro/ - se ouvisse lembraria as noites entre a fralda e a canção de embalar.
No domingo na procissão à tarde/ nada faria ser esta a mulher/ capaz de pedir à morte/ um calendário de meses iguais.
diz-nos ele no poema intitulado “Moral de Agosto”.

 

E aqui talvez conviesse recordar que uma das coisas que mais feriram Florbela foi esse tipo de moral de Agosto, com a sua interior e normal crueldade, tão propícia a magoar os mais fracos, os despossuídos e os sensíveis.


III

 

Há um outro aspecto na poesia de JCF e, atrevo-me a dizer, no seu todo como ser humano, que conviria trazer à colação: os nomes, que são a representação de pessoas as quais, por seu turno, se tornam arquétipos de uma determinada mundividência. Creio que não foi por acaso – ressalvando o que de acaso exista na actividade editorial e de publicação em relação a um autor – que o seu livro de estreia se intitulou “Iniciais”.

Com efeito, é patente a fascinação fraternal deste autor por certas figuras que, necessariamente, considera representativas ou exemplares e que são assim no seu espírito a consubstanciação de um mundo de valores que ele directa ou transversalmente nos propõe, seja a inocência substantiva das crianças, carreada de espanto e de futuro, como no poema “Lena”, seja a magoada verticalidade dos olhares e dos gestos, como em “Manuel Cintra”.
Vou citar-vos este último, para ilustrar:

Tira dos bolsos as sílabas e a timidez/ Parado na rua e no peso dos sapatos./ Recebe das pedras o reflexo da luz/ E perde-se nas palavras que persegue./
Entre duas vírgulas na pontuação do tempo/ (Aves ou crianças no ângulo das esquinas)/ Como quem procura óculos para ver melhor/ E descobre que o olhar é a lágrima seca.
Porque nada se perde na luz branca do papel/ Procura outro ângulo para escrever datas/ A memória que se enche de relógios – horas/ Tanta imagem gravada entre duas vírgulas.
 

A atitude, claramente, é a dos magos de antanho. O que José do Carmo Francisco faz tem anterior correspondência nas operações efectuadas, por exemplo, pelos taumaturgos druidas celtas que, de vara kadosh orientando os ritos, nomeavam figuras desenhadas no solo sagrado. Aqui, o solo sagrado de JCF somos todos nós, é a mente do leitor - onde ele procura inscrever os sinais escritos que, por sua vez, lhe chegaram através da figuração humana que existe no seu panteão pessoal.

Evidentemente que não se trata da simples actividade de proferir motes elogiosos ou afectivos, mas sim de epigrafar experiências, maneiras de ser específicas e marcantes ou então de retirar da ganga dos minutos a pequenina pepita dourada que consubstancia a pedra filosofal de gentes, de momentos e de inflexões que interessam ao mundo real ou quotidiano. Compará-los-ia com retratos de Cézanne, esse excelso pintor que dizia que o fim da pintura consiste em se chegar de maneira eficaz à representação da figura humana, mesmo que fosse tratada como uma natureza-morta. E em Cézanne, como em José do Carmo Francisco, os retratos vivem e pulsam – não fossem eles como são irmãos espirituais.

Como Florbela também pulsava – arrebatada e até ingenuamente: pois não considerou ela, numa carta repleta desses movimentos de alma, a italiana Ada Negri a maior poetisa do mundo?

Vejamos, para finalizar, o seu poema “Quinto olhar”, um dos de acento mais dramático e no qual a presença da angústia própria e alheia mais se faz sentir – e que talvez por isso é um dos mais belos da colectânea a que pertence:

Olha o vidro – vê só uma sombra/ automóveis e peões na rua, a luz,/ a reflexão dos sonhos no azul.
Não se levanta – fica logo presa/ e prende numa esfera (talvez) azul/ o peso da voz que não a revela.
Não revela nem persegue – só vê/ permanece no registo (nada mais)/ o sufocado desenho da palavra.
Quem reparar bem não lhe fixa nada/ - perde todo o tempo no olhar/ e enche a tarde com a sua imagem.
 

Nostalgia, amor ao pequeno facto que, todavia, tem a força de um universo próprio, um humor magoado que se transfigura e que nos dá, por extenso ainda que sobriamente, uma grande e bela indignação ante as injustiças da sociedade, fidelidade à infância e aos seres que a preencheram, ligação ao sinal próprio do Homem patente em retratos de figuras tutelares e, finalmente, a discreção e a serena mágoa que são frequentemente o prólogo da mais justa alegria não conspurcada por sistemas de valores discriminatórios – eis o que consigo ver na poesia tão simples, tão bela e simultaneamente tão arrojada de José do Carmo Francisco.
 

 

 

 

08/03/2005