Nilto Maciel
Dimas Carvalho e os
narradores delirantes
Alguns críticos
opõem ao que chamam de “conto tradicional” o denominado “conto
moderno”. Para Assis Brasil (A Nova Literatura – III O Conto, Ed.
Americana, Brasília, INL, 1973), “Só com a quebra do episódio, com a
abolição – parcial ou total – do enredo, do descritivo narrativo
linear, o conto foi se libertando das outras narrativas de ficção e
adquirindo sua própria forma.” Na verdade, o termo literário “conto”
é genérico, serve para designar todo texto literário curto que não
seja poema ou crônica. Para certos escritores, até alguns tipos de
poema e crônicas são postos na categoria geral denominada conto. Há,
porém, textos literários curtos que somente são classificados como
conto em razão dessa “noção didática” de se chamar conto todo texto
de ficção curto que não seja poema ou crônica. No Ceará este tipo de
conto vem sendo praticado há alguns anos, como no livro Pluralia
Tantun (1972), de Gilmar de Carvalho. Mais tarde surgiu Jorge Pieiro,
com seus “contemas”. Verifica-se também nos livros Itinerário do
Reino da Barra (1993), Histórias de Zoologia Humana
(2000) e Fábulas Perversas (2003), de Dimas Carvalho.
Em “Os Ilustres
Assassinos” (quase prefácio do próprio autor) lê-se espécie de lema
literário, que se repete ou se resume em “Conto curtíssimo”. O
personagem é o menos importante no conto. Mais vale a história,
embora nem sempre haja enredo e muito menos ação. Ou literatura não
passa de pura erudição de desocupados? Leiam-se “Esboço de um
relatório”, “Oráculo para principiantes”, “O prisioneiro”. Onde está
o personagem? O personagem às vezes nem é personagem, isto é, o
narrador é somente narrador, não chegando a personagem (“Messias, ou
os filhos do limbo”). Como se fosse apenas cronista, observador, sem
nenhuma vinculação com a trama, com a história. Essa
“desimportância” do personagem (ser humano) pode ser vista em “Desaniversário”,
onde animais e seres inanimados tomam o lugar do homem. Fábula? Sim,
mas não somente por isto. Em “Odisséia de Bernardo Tracajá” não há
personagens.
Muitos dos
personagens de Dimas não são de carne e osso. Seriam simples
imagens, representações, impressões de personagens, como em “O
Toureiro”. Em outros contos, os personagens se transformam
continuamente ou sofrem constantes mutações, metamorfoses. Há também
personagem indefinido (“Âncora”): “Nunca se soube ao certo quem era:
um conde russo, um pintor renascentista, um pirata levantino, um
mágico, um cantor, um arquiteto, um vigarista qualquer.” Personagem
“vindo do nada”. Narrador indefinido ou não identificado percebe-se
também em “Nossa fronteira ao sul”.
Às vezes o
personagem quer se conhecer, se descobrir, e se inventa. Dá-se a
auto-invenção, como se o narrador-autor não tivesse domínio do
personagem (“Glosa a uma história antiga”). Há ainda personagens
“ocultos”, como em “O irmão do grande homem”, embora haja uma
história, ação, tempo e lugar definidos. O mesmo se vê em “Chamado”.
Quem chama? O personagem oculto? Outros são apenas vislumbrados,
como se vistos de muito longe, quase envoltos em bruma, ou há muito
tempo, como em “O Vidente”. Algumas formas verbais na narração dão
idéia dessa distância do personagem aos olhos do leitor:
“profetizava”, “cresceu sua fama”, “se propagou” sua alcunha,
enquanto uma águia “soltava gritos”, até que “no dia seguinte”
apareceu morto.
Os personagens
são sempre emblemáticos ou simbólicos. Em “A Árvore” o homem só é
uma árvore; o jardineiro é a rotina, vista como o mau; a mulher bela
e atraente é o novo, o progresso, o bem. O protagonista de “O
Profeta” é, ao mesmo tempo, humano e divino, pois os comerciantes o
insultam, as crianças lhe jogam merda de cavalo, se deita na
piçarra, ou seja, é visível, tem corpo, e, no entanto, “quando
caminha pela superfície, torna-se invisível”. Em “O Gato” o narrador
fala de todos os gatos, poeticamente, até contar uma historinha ou
uma fabulazinha, com direito a “moral da história”: “tende cuidado
com os gatos cor-de-rosa. De todos os tipos, é o mais perigoso. Não
porque nos minta, ou nos iluda, ou nos roube o queijo. Mas pelo
contrário”.
O
personagem-escritor Eulálio Modesto Nicanor é, ao mesmo tempo, real
e irreal. Real porque tem biografia e deixou vasta obra literária,
impressa em jornais, almanaques e revistas. Irreal porque esta mesma
obra desapareceu e o poeta (e sua obra) não passa de obra coletiva e
anônima. Personagem e obra se confundem.
Há na obra de
Dimas uma visível preocupação do narrador com a criação literária.
Veja-se “O livro inexistente”, onde o personagem é um escritor que
não escreve, diferente de Eulálio, que escreveu, mas a obra se
perdeu. No fundo, a mesma coisa. E ainda “Aqui, do meu quarto”, no
qual o narrador é um escritor (maluco), um criador de fantasias,
enclausurado num quarto, preso entre quatro paredes, solitário,
imune aos ruídos do mundo, fechado num casulo. Leia-se “Finnegans
wake”, homenagem a Domingos Olímpio ou todo escritor relegado ao
esquecimento.
As personagens
de Dimas Carvalho agem em espaços ilimitados ou etéreos, quando elas
mesmas nem aparecem. A casa, o curral, o bosque, as igrejas, as
torres das igrejas, as torres góticas, as ruas estreitas, todos os
espaços são meros nomes. Para o contista não tem nenhuma importância
este ou aquele lugar. Tudo é apenas adereço. Assim, que território
habitam os personagens de “Os gêmeos”? Seria o espaço bíblico,
homérico, indígena, indiano? Como se todos os dramas não passassem
de sonhos, alucinações, visões, delírios. Os narradores e os
protagonistas são seres delirantes, quase sempre, como o de “Um
Sonho”, a vagar por uma cidade coberta de névoa, entre casarões
antigos, com figuras de górgonas e dragões esculpidas nas portas. Em
“Os quatro dragões azuis” o espaço é apenas “aquela cidade”, cheia
de “grandes estátuas”, “sentinelas taciturnas” e, logicamente, os
dragões azuis.
Embora
delirantes, os narradores e protagonistas de Dimas são sempre
pequenos, frágeis diante da vida e da trama da narrativa. “Um
militar da reserva” é um exemplo dessa fragilidade. Parece até que
mais importante do que o personagem, mesmo o protagonista, é o
objeto ou o mistério a envolver um e outro. Em “O manual de
prestidigitação” o narrador chegou à casa de poderoso feiticeiro, o
qual presenteou o visitante com um livro. O feiticeiro desaparece,
porque não tem mais importância na trama. O livro assume lugar de
destaque. E se mantém “fechado” (misterioso), até que um dia alguém
chegue “para recebê-lo”. Em “O Herdeiro” o próprio Rei “não passa de
uma peça, talvez a menos importante”.
Dimas Carvalho
não raras vezes abole o uso do prisma dramático univalente ou
simplesmente faz do conflito apenas um esboço, como se ação não
houvesse. Em “Este lugar” a ação é tão-somente expectativa – do dia
fatal – pois “nada acontece”, embora o dia da resposta se aproxime e
cresçam o medo e a esperança do narrador. Essa ausência de ação –
esse nada acontece – é claríssima em “Nada, sempre”. Esse
não-acontecer está também em “C’est la vie”. A ausência de enredo,
às vezes, leva a se pensar se o enredo é apenas um enredado de
ações, como em “Os doze trabalhos de Gabriel ” e “A Coisa”.
Os mais variados
recursos expressivos se mostram na linguagem de Dimas Carvalho, às
vezes num mesmo conto curtíssimo, como em “A Vingança”, onde se
podem ver descrição (“A casa fica num alto, batida pelos ventos.”),
narração (“Meia noite quase, a voz:”), fala (“– Água, por favor.”) e
desenlace (“A porta que se abre, o tiro, o galope dos cavalos.”),
com a presença clara de elipses de narração, preenchidas e resumidas
no título. O uso do epílogo-resumo é uma constante em Dimas, como
“Último ato”. Há até um conto de um só parágrafo, sem pontos
(“Recordações da cidade do sol”).
Eclético, o
escritor cearense utiliza as mais diversas formas da ficção curta:
da narrativa inspirada na tradição do conto linear, com enredo claro
(“Grau Zero”, “Tango em Itapemba”), à fábula curta, breve, sem
trama, à parábola de feição bíblica. No mais das vezes, porém, o
primeiro tipo dá lugar ao segundo, este ao terceiro, na mesma
“narrativa”. É o que se pode verificar em “As tartarugas”. A
princípio se trata de uma narrativa linear. Logo, porém, aparece o
misterioso, a quebrar a “racionalidade” do enredo, isto é, a
desmontar o urdidura verificada no início da “história”.
No mais das
vezes Dimas foge do realismo e se envolve nas brumas do
supra-realismo, do surrealismo, (“Encantos”) ou do realismo mágico.
O realismo se apresenta aqui e ali, como em “Um dia ainda serei
feliz”, com uma anti-heroína urbana. Ou em “Zé tatu”, história do
sertão, “Sertão” e “Meu amigo Valenciano”, com heróis sertanejos e
seus misticismos. O ambiente rural ou não-urbano se mostra ainda em
“História de avô”, embora o realismo se vá aos poucos desfazendo,
para dar lugar ao mistério. Mas o que é real para Dimas? Em “O
Peixe” o animal era reflexo de uma imagem (quadro) irreal. A ilusão
da imagem reaparece em muitos outros contos, como em “Diógenes”. Ou
tudo é real ou tudo é ilusório? (“A descoberta”). Em “Visões” a
mesma dúvida: Quem é? O que é? E em “A dúvida”: Quem sou?
Na maioria dos
contos de Dimas o ponto de vista é do narrador onisciente, algumas
vezes do narrador-protagonista. Em “O Sonho” o narrador está só no
mundo. Em “A estátua de bronze” o narrador se vê diante de uma
estátua, que seria o segundo personagem. E é, porque, no epílogo,
“começa a abrir cautelosamente os olhos impassíveis”.
O narrador às
vezes é plural (“Em memória de K”). Há também contos em que o foco
narrativo é múltiplo, como em “Três rezas para Fortunato”: as
criaturas (personagens de uma autora) e a criadora (suposta autora).
Ocorre ainda o tratamento na segunda pessoa, onde o narrador ou
interlocutor da segunda pessoa não se manifesta com clareza, como se
fosse apenas uma voz (a consciência?). É o caso de “O Sobrevivente”.
Em “Mostrando as armas” o narrador (o falante, o escritor) se dirige
a outro personagem, a quem trata por “você”, e que é simplesmente
“um homem”. Essa segunda pessoa pode ser protagonista ou o símbolo
do homem universal (“Instruções para o fim do mundo”). Há um conto
(“O dia seguinte”) em que o narrador é o morto (o que não é novidade
na literatura), invertendo-se o ponto de vista narrativo. Espécie de
monólogo interior do defunto, enquanto os personagens vivos se
deixavam observar por ele.
Edgar Allan Poe
está muito manifesto na obra de Dimas Carvalho, sem imitação. Porque
também presentes estão os narradores bíblicos (Adão e Eva, o pecado
e o castigo, como em “O Manuscrito”), Homero, Ovídio (metamorfoses,
“Ovídio”), Dante, Kafka (“Francisco”, “O Castelo”, “Tratado da
neblina”), Borges, contos de fadas (“Branca de Neve e os sete
gigantes”) e toda a melhor tradição na arte de narrar.
Em suma, a
linguagem de Dimas Carvalho é trabalhada, cinzelada, apurada, como
se a frase surgisse depois de horas a fio de cuidados. Não se
percebe, no entanto, a frase ornamentada, cheia de floreios, atavios
inúteis.
Leia Dimas Carvalho
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