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Nilto Maciel




Barros Pinho e o novo regionalismo
 


 

Depois de publicar cinco livros de poemas, Barros Pinho apresenta ao público o livro de contos A Viúva do Vestido Encarnado. O título é muito sugestivo. Encarnado é o mesmo que vermelho, vermelho da cor da carne. Seguindo a tradição da literatura brasileira, Barros deveria ter escrito ´vestido vermelho´ e não ´vestido encarnado´. No entanto, ele faz questão de se apresentar como representante de um neo-regionalismo, de resgate do linguajar nordestino, dos costumes e das tradições. A par disso, as viúvas vestem vestidos pretos, sobretudo nos primeiros tempos de luto. Ao usar um vestido encarnado, a viúva do conto que dá título ao livro cumpriu a promessa feita ao marido, manchando de vermelho o negro do luto.

Os dramas vividos pelos personagens de A Viúva do Vestido Encarnado são dramas universais, embora localizados no sertão do Nordeste brasileiro ou, mais precisamente, às margens do rio Parnaíba, no Piauí. O tempo histórico desses dramas poderia ser o do início da segunda metade do século XX, quando da substituição das moendas de madeira pelos engenhos de ferro, na fabricação de rapadura e outros produtos derivados da cana de açúcar. Tempo dos alambiques, dos coronéis donos de tudo, dos cambiteiros, dos vaqueiros, dos currais. No entanto, como está no conto da viúva, ´O tempo, como lagarta, vai comendo o destino das pessoas´. Araçás do Mestre Rosa´ é um drama de amor e morte, como tantos e tantos outros da literatura. O triângulo amoroso é formado por Eugênio, mestre Rosa e Amália. O primeiro vive a viajar, ´a trato de negócio de arroz e babaçu´. E aí está dado sinal para o início do conflito: o dono da casa vive viajando, enquanto sua mulher observa outro homem, dentro de casa ´na caiação da casa e no preparo da capela branca-azul ao lado´.

Em a ´Faceirice da Burra Sabiá nos Alegres do Zeca do Bonário´ a desilusão amorosa do homem se dá logo nos primeiros dias do casamento. E aí se inicia o conflito. Conviver ou não conviver com a mulher desvirginada por outro?Os contos de Barros Pinho têm uma estrutura definida: primeiro ele pinta o espaço em que se desenrolará o drama, em seguida desenha o protagonista e logo o leitor se percebe no meio do redemoinho do conflito. Como bem vislumbrou José Alcides Pinto, em ´Barros Pinho: as teias da escritura´ (´Diário do Nordeste´, Fortaleza, CE, 27/10/2002), ´A paisagem geográfica vai se delineando como na montagem de um filme´ (...).

Em ´Araçás do Mestre Rosa´ a ação se dá num sítio localizado na ribanceira do Parnaíba. Como em muitos outros contos do livro, Barros Pinho localiza suas histórias às margens do grande rio do Piauí. No entanto, no conto de Zeca do Bonário o espaço, ou a geografia, cede lugar aos personagens, à história propriamente dita. Em ´Mundica, Mulata do Cais´ é onde mais se acentua a presença do rio Parnaíba na prosa de ficção de Barros Pinho: ´o paredão chamado cais´, as balsas, as águas. Mas há também o sertão com suas palmeiras de babaçu, seus brejos. No conto dos araçás apenas três personagens participam diretamente do conflito, o que é óbvio, por se tratar de um triângulo amoroso. Amália, a filha do coronel Gaspar, ´espiadeira dos viajantes das lanchas que subiam as águas do rio´, seu marido Eugênio e o mestre Rosa, que tenta fugir da tentação de trair o amigo.Na história de Zeca do Bonário são também apenas três os personagens principais: Maria, no dia do casamento, se apresenta triste, acabrunhada, porque já não seria virgem. Leia-se esta frase: ´Ela vem com o olhar fixo na perna da mesa´.E esta: (...) ´Maria esconde afogado de tristeza no canto dos olhos´ (...) Zeca é o marido ´traído´ antes do tempo: ´Se bem contado, quase um ano e um dia esperando sangue de virgem pra molhar minha macheza de homem´. Até decidir levar a esposa de volta à casa dos pais: ´Aqui tá Maria, do jeitinho que me entregaram´. O pai, Vicente, ´Apanhou o mal dos tristes´. No entanto, nem só de homens enganados são construídas as histórias de Barros Pinho. Há também os heróis, os valentes, como Zeca Gois, com suas constantes aventuras. ´O Zeca, se rezava, rezava com o punhal na mão´. Ou como Bené Gavião (´Os 10 Limites de Bené Gavião´), virado herói depois de levar nove surras. Ao receber umas relhadas do soldado Beradão, aplica-lhe algumas facadas, matando-o. ´Sou mais do que homem, sou gavião que não tem medo de voar´. Outros, como Abdon (´Josefa da Neblina na Roça de Abdon´), viviam em razão das mulheres: ´Quem tiver mulher esconda dele´. Quando quer fazer galhofa, o contista utiliza a caricatura, a lembrar Rabelais. Aliás, há também muito de Molière e Cervantes nas ´novelas´ de Barros Pinho. Sim, porque os contos de A Viúva do Vestido Encarnado têm muito das novelas daqueles gênios, pelo pitoresco, pelo fescenino, pelo humour, pelo caricaturesco. Veja-se o retrato da senhora Tranquilina Pereira, cujo corpo ´parecia um saco cheio de carnaúba; o rosto com as pontas dos ossos salientes; os olhos trocados num caraolho esquisito; a boca agamelada com uma dentadura a se mexer e a estalar, ver guaxinim chupando cana; os peitos tais jenipapos maduros à procura dos joelhos; as pernas, cambitos secos, carga de bagaço; as orelhas, cego passava chuva embaixo delas esperando o sol; os cabelos duros como de porco-espinho; e os braços compridos lembrando vereda de peba; e as mãos grandes como o abano do diabo chegando no inferno. Ah! Ia me esquecendo da bunda batida como bunda de jia. Não era gente, era bicho com parecença de mulher´.

Em todo o livro observa-se o emprego de frases curtas e enxutas, inclusive com a supressão de artigos e verbos. A par disso, a linguagem poética é uma constante. Metáforas e mais metáforas são encontradas no decorrer das narrações e nas falas dos personagens, tal como em José de Alencar. ´Espanto de Zeferino no Dilúvio de Santa Bárbara´ tem por desfecho este belo verso: ´A Terra é uma asa de anum escuro voando pro céu!´ Em ´O Zeca do Tiro no Bode da Nazária´ encontra-se esta outra preciosidade: ´Viver pelo absurdo no buraco dos abismos até alcançar as linhas da aurora´. Às vezes, as frases são construídas com a mesma poesia do sertanejo: ´Homem e mulher foram feitos para o mesmo caçuá da vida´.

Dimas Macedo, no artigo ´Recriação da linguagem´ (´Diário do Nordeste´ Fortaleza, CE, 27/10/2002), já se referia a este aspecto na obra de Barros Pinho: ´Mas poesia, na sua ficção, como no poema, se infiltra, às vezes, quase absoluta, e reina, absoluta, de maneira quase provocante, desafiando jargões, anunciando formas, propondo universos lingüísticos, restabelecendo vernizes populares e códigos de unidade semântica´. Barros Pinho não se vale das técnicas tradicionais, em especial no caso do foco narrativo. Em ´Araçás do Mestre Rosa´ faz uso freqüente do monólogo interior e do diálogo interno.

O narrador, no caso em foco, não pode ser confundido com o escritor nem com o clássico narrador onisciente. Veja-se este trecho: ´Seu Eugênio da Varginha era conhecido como folha de pau-das-extremas, homem de comércio sem fazer mistério. No vai-vém da troca, nada escapava que não fosse objeto de mimo e mulher, semente da família. Opa, seu Eugênio, não segure em rabo de cotia. Era a vez do Tonho do Sérgio, juiz de paz dos araçás: meça as palavras debaixo do céu´. Com A Viúva do Vestido Encarnado Barros Pinho se afirma como uma das revelações da ficção curta não somente no Ceará mas no Nordeste brasileiro, empunhando a bandeira de um novo regionalismo - poético nas frases e nas falas dos personagens, de elaborada feitura e sem os cacoetes do velho regionalismo.

Nilton Maciel
Contista
 



Barros Pinho
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