Nilto Maciel
O pião
O menino atirou
à distância o pião e puxou o cordão. O objeto alcançou o chão, com
violência, e se pôs a girar. E tão velozmente girava, que Us
imaginou estar ele parado. No entanto fazia voltas no chão, num
movimento de translação ao redor de um ponto imaginário.
Aos poucos, o
giro se fazia mais lento e Us pôde perceber o movimento de rotação
do pião.
Mais alguns
giros, e o objeto perdeu o equilíbrio. Entrou em desordem, rolou
deitado e foi repousar longe do lugar onde originalmente caíra.
O menino
atirou-se em busca do brinquedo. Certamente enrolaria de novo o
cordão ao redor do pião e reiniciaria a brincadeira. Us, porém, não
esperou o novo espetáculo. Devia se sentir satisfeito. E correu para
casa.
– Mãe, compra
um pião pra mim.
A mulher
resmungou sim ou não e mudou de assunto. Fosse o filho tomar banho.
A hora do almoço não tardava. Se não se apressasse, ia chegar
atrasado à escola.
Us tomou banho
com o pião girando em sua cabeça. Durante o almoço falou do
brinquedo. A caminho da escola repetiu o pedido à mãe.
Mal teve início
a aula, a professora chamou a atenção de Us. Deixasse a conversa
para a hora do recreio. Ele falava a um amiguinho sobre o pião que
iria ganhar.
Para sua mãe,
no entanto, aquilo parecia muito perigoso. Mas ele não via perigos,
só via piões. E sonhava esquisitices. Um mundo de piões. Todos
girando. Nas calçadas, nas ruas, nos telhados, nos ares. A Lua, um
pião enorme e lindo. As estrelas, piões do céu, brinquedos dos
anjos.
E se a Terra
também fosse um pião gigante a rodopiar no espaço? Brinquedo de
Deus, aquele ser poderoso das aulas de religião e das missas de
domingo.
Mas como os
sonhos durassem pouco, durante o dia Us não se continha e fugia de
casa para o país dos rodopios. Esquecia-se do tempo, dos estudos, da
mãe. Aprendia a soltar piões. Olhos atentos às mãos dos outros
meninos. Daqueles felizardos. E pedia, humílimo, para ao menos
enrolar o cordão. Negavam-lhe esse favor, essa caridade. Comprasse
ou mandasse fazer um pião.
Ora, a mãe
jamais lhe daria dinheiro para comprar tão perigoso brinquedo. De
qualquer forma, iria ao carpinteiro. Talvez não custasse tanto um
pequeno pião.
Não custou
nada. O carpinteiro com certeza se apiedou do pobre Us.
E toda a
felicidade humana se incorporou ao menino. Tão feliz se sentia, que
não carecia de platéia nem de elenco para seu espetáculo. Só de
palco, do pião e de si mesmo. E se isolava nos becos, nas pontas de
rua, nos terrenos baldios.
Havia, porém,
um espectador oculto a ver todo o seu sonho rodar no chão. Um velho
escultor. Entalhava uma estátua de Deus-homem, e só lhe faltava o
coração. Aquele pião talvez servisse.
O menino se
assustou e agarrou o brinquedo. Não, não venderia nem daria seu
pião. Custara-lhe caro. O homem sorriu. Via mentira nos olhos de Us.
Contasse a verdade. Ele também tinha sua via-crucis para contar.
Fizeram-se
amigos. E o pião de Us acabou incrustado no peito do Deus do velho
escultor.
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