Paulo Rosenbaum
Entrevista com Paulo Rosenbaum por
Rodrigo de Souza Leão
Paulo Rosenbaum, poeta paulista, publicou “Impreciso Emigrar” em
1979 (Massao Ohno) com ilustrações do autor, com colaboração de Luis
Dolhnikoff. Depois, durante o curso de filosofia participa de
recitais e de uma coletânea de poesias da PUC-Sp (1981).
Cursa medicina (1981 a 1986) e se especializa em homeopatia, área na
qual publica vários livros. Mestre e doutorando pela Faculdade de
Medicina da Usp participou como articulista em várias publicações
(Folha de São Paulo e Jornal da Tarde) onde expõe suas idéias.
Apesar de não ter publicado mais poesias nunca parou de
escrevê-las.
Encontra-se em fase final de elaboração uma coletânea de poemas de
suas várias fases que levará o nome de Naufragata.-Diáforas
Continentais
1.Por que tanto tempo parado desde “Impreciso Emigrar”, de 1979?
Na verdade, não há explicação alguma. Cabe no entanto uma correção à
própria pergunta. Nunca estive parado. Sou apenas desconhecido neste
meio. Nunca participei de concursos, nunca tive referencias na
poesia brasileira e portanto não busquei apadrinhamentos, apesar de
hoje reconhecer retrospectivamente o estímulo de Cláudio Willer para
publicar Impreciso Emigrar. Mais recentemente, com os comentários
incentivadores de Ivan Teixeira. O problema, e talvez isto suscite
controvérsias, é que não acho que a poesia seja uma carreira. Pelo
menos não para mim. O escritor lato sensu pode ser uma profissão.
Mas a poesia entra numa espécie de domínio público no qual a
especialidade gera mais limite do que aperfeiçoamento. Portanto o
que cabe é constatar que estive, isto sim, longe de um meio nada
homogêneo. E exatamente esta característica híbrida e dispersiva do
meio poético desestimula qualquer militância pública. É verdade que
em certo momento fizemos um esforço para aproximar grupos de poesia
na década de 80, em recitais e encontros, mas não desenvolvíamos,
naquele momento, identidade suficientemente forte com qualquer
gênero de escola poética. Ou seja, a poesia, normalmente ofício
solitário, induzia mesmo a um grau de misantropia não sanável.
Some-se a isto um certo desengajamento da poesia política militante
e ficará claro que não havia mesmo muito espaço para promover aquele
tipo de retórica poética. Até hoje é difícil dizer a qual gênero
pertencia. Alguns a chamavam de surrealista. Mas me ocorre pensar
que de fato se tratava de uma poesia ainda inominada. Não era a
concretista, nem as experiências pós-modernistas, tendências em voga
na época. Alguém chegou a sugerir que uma “novíssima poesia” estaria
eclodindo. Não sei se era mesmo. E se era ainda não se firmou como
tal. Mas ficou pelo menos o gosto de sacudir, com perspectivas
criativas e ousadas, a convicção hermética da mesmice. Que é uma
espécie de caretice disfarçada de um formalismo sem sentido algum.
Confesso que foi um tanto frustrante já que não houveram
desdobramentos significativos os quais normalmente qualquer autor,
sob a previsível ingenuidade, espera perceber. Destarte, a tentativa
de buscar experiências na linguagem escrita favorecia a busca do
novo, aliás este o autêntico espírito da pesquisa. Da recusa
amotinada à eterna repetição. Eu não poderia ter escapado disto. Não
queríamos ou esperávamos ratificação, só perceber até onde e com
quanta liberdade poder-se-ia experimentar.
2.Como era o ambiente poético da puc na década de 80?
Eu cursava filosofia e o ambiente caracterizava-se pela bizarra
multiplicidade de idéias emergentes, frutos diretos de uma fase de
liberação intelectual logo após o declínio relativamente recente da
ditadura militar. Havia uma certa euforia. Mas era um ambiente um
tanto patrulhado. A poesia, argumentavam muitos e isto se estendia à
Usp e outros centros universitários, devia ser dirigida (assunto
aliás tema nada anacrônico no Brasil de hoje), mostrar os espaços de
cultura militante dos exilados, torturados, ter uma conotação
prioritariamente social. etc. Minha perspectiva era “refusinik”, ou
seja era outra e apesar de uma ou outra de minhas poesias ainda
conservar um matiz de cunho ideológico (uma delas “O terror do
opressor”) ela era muito mais influenciada pela escrita automática
de André Breton, os denominados poetas malditos franceses, o fluxo
de Mallarmé, a mística alusiva de William Blake ou a poesia extraída
da filosofia natural do que pelo materialismo ideológico ou qualquer
engajamento poético-partidário. Dizia sonoramente não à poesia
sindical que aquela altura reemergia. Num episódio lamentavelmente
chocante (e que naquela altura foi a deixa para o abandono de
qualquer sonho de militância) durante leitura coletiva de poemas de
autores paulistas na antiga livraria Kairós, um dos poetas
“engajados”, afirmava que somente quem tinha sido torturado podia
legitimamente opinar sobre os rumos da poesia contemporânea. Inútil
tentar descrever a densidade do tédio e a miserabilidade psíquica
que rondava este tipo de ambiente, com exposição pública de índices
de tortura para definir aqueles mais “aptos” e idôneos para exercer
a poesia. Mas era um pouco o clima geral da época. Por outro lado,
havia mesmo aquelas “escolas” já definidas com seus séquitos de
adeptos incondicionais como os concretistas, os pós-modernistas, os
tropicalistas, os beatniks. De forma geral, eles se articulavam bem
dentro das universidades ou em ambientes pré-selecionados e seguros.
Na PUC isto se repetia e duas saídas ficavam evidentes: ou a
marginalidade ou o engajamento. E este último podia ser do gênero
in-doors dentro dos nichos específicos ou em torturantes sessões de
acting out como a acima mencionada.
3.O que a medicina tem de poético?
Grosso modo, nada. No entanto ao exame atento persiste, para além
das cintilações passageiras, um viés poético na arte médica. A
poesia permite dar sentido às vicissitudes e alegrias dos sujeitos
durante um tratamento. Minha opção original, depois de cursar e
abandonar a filosofia, era pela psiquiatria. No meio do caminho,
gratíssima surpresa, descobri a homeopatia (que inicialmente
rejeitara sem conhece-la), arte médica que tinha como leit motiv
devolver ao sujeito seu papel no acompanhamento médico. Apesar da
tecno-ciência e seus adeptos incondicionais ainda não terem
compreendido adequadamente a medicina não é uma ciência. É, segundo
epistemólogos e historiadores da ciência como George Canguilhem e
Karl Rotschuld “arte operativa”. A arte médica é ofício
semi-artesanal, no qual o médico aplica uma ou várias técnicas
científicas (como, por exemplo, a anatomia, a biologia, a
farmacologia).
Claro que a potência da dimensão poética da medicina foi obnubilada
pela adesão quase acrítica à fé tecnológica. Mesmo assim há uma
enorme tradição humanista que em meio aos avanços da tecnociência,
heroicamente sobrevive na medicina. Trata-se da herança da antiga
escola médica grega de Cós que colocava observação da natureza (a
physis) e o saber antropológico como dimensões essenciais da
terapêutica. A homeopatia, uma medicina montada por Samuel Hahnemann
na transição dos séculos XVIII-XIX, influenciada pelo romantismo e
pelas filosofias de Goethe e Rosseau, recolocava o problema da
singularidade do sujeito como uma questão básica, central para a boa
prática da medicina. Nasceu dentro do movimento literário romântico
fazendo renascer o vitalismo como iatrofilosofia (filosofia médica).
Movimentos que surgem exatamente como contrapontos ao racionalismo
do iluminismo francês e à redução mecanicista. São temas que
recentemente readquiram atualidade nas ciências da vida. Vêm
reocupando espaço nos mais sóbrios espaços acadêmicos temas como a
re-subjetivação dos sintomas, a identidade do fenômeno vital, a
importância atribuída à vida psíquica das pessoas como parte
integrante e operante de qualquer movimento de intervenção clínica.
A medicina é profunda devedora destes movimentos. Enquanto a poesia
em medicina é exatamente um reduto da sublevação tanto contra a
hegemonia do método como se opondo à tecno-ciência aplicada na
política biomédica das evidências. Se a homeopatia é uma espécie de
superego auxiliar da biomedicina a poesia permeia qualquer
perspectiva que conserve a frase de Pope “o estudo apropriado ao
homem é o homem”. Motim levado adiante a fim de resgatar uma
“medicina baseada em narrativas” como pensa David Castiel, que busca
trazer o sofrimento humano, a angústia existencial e o “estar aí”
(das sein) para o centro do processo saúde-enfermidade. Neste
sentido o vitalismo, um movimento filosófico científico nascido na
escola de Hipócrates, resiste dentro da medicina apontando para uma
retórica não mecanicista e anti-reducionista. Nele, sintomas não tem
valor peremptório e unívoco. O foco recai menos na patologia e muito
mais na peculiar relação que o sujeito desenvolve com sua doença.
Ali, como defendia o pai da filosofia continental Immanuel Kant,
cada homem tem um modo peculiar de estar são e de adoecer. Se a
poesia é uma forma de conhecer o mundo e de estar nele, a medicina,
pelo menos em sua versão não mecanicista, dialoga com ela de forma
muito intensa e bela. Enfim uma nova ciência produz sua versão de
poesia, ainda que engessada pela eterna divisão das disciplinas.
Pode ser que haja também uma espécie de poética vitalista que se
oponha ao mecanicismo dos poemas.
4.Você tem vários livros publicados na área de medicina. Dá para um
médico ser bom poeta?
Acho que sim. Mas aqui há uma provocação adicional muito
interessante. Quem pode ser bom poeta? Leitores assíduos de poesia?
Os egressos da graduação de letras? Poliglotas filólogos? E quanto
aos concursos: revelam talentos ou discriminam? Os inspirados ou a
ourivesaria meticulosa? Afinal, o que boa poesia?
São dilemas superficiais já que, apesar dos tratados, não há
validação intersubjetiva que possa definir o que é de fato “boa
poesia”. Como disse acima não acredito em carreira poética. Como não
há “bom-gosto”, o que há é criação. Havendo criatividade o processo
icônico do poeta pode fluir. Sem ele, geralmente se cai na imensa
vala comum que são descrições mais ou menos refinadas, mais ou menos
eruditas, da comédia social e de costumes. Na minha opinião
caricaturas toscas (e desinteressantes) do cotidiano. Há também o
outro lado: o panfletário, o verborrágico onde prevalece um o axioma
de Feyrabend “qualquer coisa serve”. James Joyce prenunciava o
imbróglio dizendo que a mediocridade produtiva acabava levando o
autor a se contaminar com os aplausos de seus idólatras e
felicitar-se por seus enganos bem estudados. Sua percepção, mais que
pertinente, adquire matiz oracular. Talvez este seja um índice para
aferir o que é “boa poesia” interessante: a permanência. É o que o
também filósofo da ciência e poeta Gaston Bachelard chamava de
epistemologia histórica: a sobrevivência atestava uma destas duas
possibilidades: ou uma certa qualidade ou muito interesse em
prosseguir investigando aquele tema. Não é pouco importante o fato
de que a genial poesia bíblica tenha sobrevivido enquanto o
interesse pelos beatniks é francamente decadente. O que se pode
fazer se a poesia medieval desperte mais interesse do que poesia
contemporânea? Ou que Sthephen Crane possua um refinamento que não
enxerguei em nenhum dos poetas publicados? Na poesia brasileira,
Jorge de Lima sempre foi para mim referência imprescindível. O que
quero dizer enfim é que não se predizer quem sobreviverá e que o
momentâneo – como sempre -- é literalmente insuficiente para
quaisquer diagnósticos.
Inútil negar que não ser lido deprime, mas estar na moda tampouco é
garantia de coisa alguma. Desde que escrevam algo, não importa o
que, funcionários de cargos públicos midiáticos, locutores de teve e
artistas e cantores performáticos podem se transformar em ícones
poéticos de forma meteórica. Assim como é provável que um
excepcional poeta do Acre jamais será lido. Cinema, música e teatro
têm incentivos econômicos e fiscais bilionários, além de privilégios
injustos e inexplicáveis, enquanto a poesia nenhum. Ou quase nenhum.
São disparidades que nos levam a compreender a cronicidade das
distorções, da falta de uma política de efetiva igualdade de
oportunidades para as artes. O incentivo à leitura da poesia poderia
ser um caminho mais curto para erradicar o preconceito contra uma
das formas mais interessantes de conhecimento disponíveis. No
entanto, deve-se entender e tematizar os preconceitos. Neste caso,
pode ser que a poesia seja a antítese absoluta da marcha do
progresso e do consumo. E exatamente por isto ela esteja sendo
reaquecida como manifestação literária.
Quanto aos estilos preferidos, mesmo em ciência o que se espera hoje
é uma franca pluralidade de métodos. Filósofos da escola de
Frankfurt como Adorno e Horkheimer mostraram na dialética do
esclarecimento, através da metáfora da privação sensorial de
Ulisses, como o método retira de cena inúmeros aspectos do humano. A
autolimitação do método entre em cena sempre quando se quer analisar
qualquer coisa do ponto de vista da hermenêutica filosófica. Há
portanto leitores e hermeneutas para todos os matizes e
manifestações poéticas. Exemplo clássico mas eficaz: Lautreamont e
Rimbaud praticamente ignorados em seus tempos tornaram-se
mundialmente cults na contracultura.
É um tremendo equivoco imaginar que uma profissão pode ser decisiva
na facilidade ou dificuldade para a atividade de escritor, seja ele
um poeta ou não. Um mergulhador pode registrar e narrar melhor sua
captura sensorial do que um catedrático, um biólogo interpretar
melhor uma prosa do que um filósofo e um psicólogo ter uma
performance escrita superior a de um jornalista. As profissões – e a
história por vezes mostrou isto -- nada definem a priori na
consistência literária poética. Em meu caso, eu já escrevia
intensamente muito antes de ser médico e isto me acompanha de forma
um tanto obsedante. Talentoso ou não, meticuloso ou displicente,
paciente ou impulsivo, aquele que escreve está quase condenado a
isto. O Talmud (a tradição bíblica oral do judaísmo) afirma que quem
tem potencial para escrever um livro e não o faz pode ser comparado
a um assassino, uma vez que suprime antecipadamente o que está
potencialmente destinado a nascer. Acho que isto responde em parte a
sua questão. A outra coisa interessante é como a poesia me ajudou e
ajuda a articular melhor as minhas ações como médico. E vice-versa.
A busca de interlocução ao se produzir uma ação através do “belo
discurso” (épode) é sempre uma possibilidade durante uma anamnese.
Sempre há um autor que nos impulsiona em determinados temas
preferências. No meu caso o livro do historiador de medicina Lain
Entralgo “A cura pela palavra na Antigüidade clássica” mostrava que
poesia e discurso são tão vitais para uma compreensão mais acurada
da atividade médica do que saber prognosticar e identificar
patologias. Dediquei-me a compreender, com certo grau de
especialização, este aspecto quase ignoto da arte médica que, na
verdade, começou com Parmênides. Por outro lado, o aspecto operativo
disto na homeopatia é quase perfeito. Na perspectiva homeopática a
correta compreensão de um paciente e com isto a decisão terapêutica,
depende antes de uma correta apreciação da linguagem. Ou seja,
permite uma filologia aplicada diretamente à clínica. A digressão
válida aqui é que Miguel de Unamuno afirmava que toda filosofia, é,
no fundo, filologia. Como os medicamentos homeopáticos são
experimentados pelo homem e além do registro dos distúrbios e sinais
clínicos provocados, apura os sintomas subjetivos as sensações, os
dramas pessoais, as expressões intersubjetivas, pode-se imaginar a
riqueza de detalhes surpreendentes nas sensações coletadas.
Impressionam a mente de qualquer clínico observador. Leitura e
vivência poética como poeta podem ser ferramentas importantes na
análise das palavras e da linguagem tematizada em qualquer área da
medicina. Outro aspecto interessante é que a medicina clínica usa o
paradigma indiciário ou semiótico para descobrir, através do
aparentemente desimportante, o essencial de cada caso. Como nos
conta o historiador Carlo Guinsburg, Freud e Conan Doyle entre
outros beberam desta fonte. Fundou-se uma hermenêutica que dentre
outros frutos nos trouxe a psicanálise, a pisocrítica de Charles
Maurron, e a própria homeopatia entre outros.
5.Como é ser ter escrito para os jornais?
Não sou jornalista, fui apenas um esporádico produtor de artigos.
Especialmente nos anos 90 com matérias especiais no Jornal da Tarde
e uma série de publicações ligadas a iatrofilosofia (filosofia da
medicina) e antropologia médica na Folha. Por outro lado os embates
com a biomedicina tornaram-se cada vez mais anacrônicos, ainda que
tenham sobrado muitas e boas polêmicas. Contudo é inegável que o
treino e o hábito de escrever matérias para a mídia jornalística
facilita a atividade acadêmica, já na poesia não tenho tanta
certeza. Vale dizer, nenhuma certeza!
6.O que é naufragata?
A nau (etiml. do Greg. Naûs navio e do Lat. Navis, navegar) é o
navio de casco e velame redondos. Já fragata (do It. Tardio do sec.
XVI fregate) uma espécie de belonave. (do Lat. Belli, guerra,
combate). Uma embarcação, a metáfora da nau em movimento irregular
perseguindo a epopéia bélica da fragata. O naufrágio é, claro,
iminente. Uma balsa oceânica que invade habitats, marítimos,
lacustres e terrestres. O embate anunciado, mas imprevisível, contra
inimigos inominados. Como possível náufrago, o poeta não faz
travessia alguma. Não há mapas e o trajeto foi abstraído de suas
intenções. Restaram apenas elaborações de novíssimas tessituras,
algumas bem primitivas como jangadas de juncos, outras mais
elaboradas como pontes suspensas pelo vapor das superficialidades.
Navegar nunca foi preciso, o embate criativo sim. Como não há
qualquer escolha uma naufragata é, antes de mais nada, tudo, além de
um bom título.
7. Para que serve a poesia?
Não sei exatamente. Para que serve um martelo? Do ponto de vista do
conhecimento objetivo o mundo sensível serve para nos dar
instrumentos para explora-lo. Vejo a poesia como uma razão
instrumental com múltiplas potencialidades:
1- A poesia gera uma gestalt oportuna pode iluminar pela forma.
Tornar-se um pólo de referencia para a tradição humana. Certa vez
conversando com o cineasta Werner Herzog, propus que a tendência
absoluta fosse recolocar a imagem como a formulação mais efetiva da
afirmação poética, no cinema e na poesia escrita.
2- Mas aí teríamos o problema da ética: ou seja a poesia é útil? Ela
deve ser pedagógica? Talvez sim. Ela torna possível que outros
fundam horizontes na passagens de linguagens que são
compartilháveis. A poesia cumpre assim mais uma função involuntária.
Ela examina o mundo inspeciona-o como um corte n’água: não a fere de
verdade, não a modifica, apenas a examina para descarregar suas
impressões dissipáveis.
3- Mas como é que ela ainda subsiste nas livrarias se está soterrada
entre os manuais de auto-ajuda, holismos pseudo-compreensivos,
magias ilícitas, fundamentalismos intolerantes, cds. sem melodia?
Trata-se da própria natureza do milagre. Uma forma de conhecer e de
estar no mundo como a poesia deveria ter sido erradicada há muito
tempo. No entanto sobreviveu. É realmente espantoso.
O que acontece é que quanto mais superficial é a natureza
programática de uma sociedade (o que creio, é mais do que evidente),
quanto mais ela esta absorvida na auto-referência de suas ilusões e
necessidades criadas mais ela gera necessidade de estimular exílios
voluntários. Isto foi imediatamente detectado pelos assim
denominados “novos filósofos franceses” como André Glucksmann.
Trata-se de retiros em ilhas circunscritas, nichos seguros
cuidadosamente selecionados. A urbanidade e as mazelas da polis
asseguraram que o interesse pela poesia sobreviva precisamente ai.
No protegido anonimato. No imaginário iconográfico da memória das
pessoas. E então, quanto mais evocativo e profunda forem as imagens
criadas e destruídas, casadas ou não com a sonoridade construída,
mais a poesia alcança inconscientes ávidos de experiências alheias.
Limiares subliminares compartilháveis. Experiências subjetivas
divisíveis entre pessoas. Isto se propaga e transita entre mentes de
uma forma um tanto eficaz, ainda que incompreensível. Quanto mais
densa for a diversificação dos interesses e quanto menor for a
campanha de aculturamento sistemático dos rádios e das redes de
televisão, mais amplas poderão ser as possibilidades de poesias
diagnosticadas como “invendáveis”, “elitistas”, “difíceis”,
“intimistas” ou simplesmente “herméticas”, serem progressivamente
mais apreciadas. O que quero dizer com isto é que a ressonância
cultural de uma obra (e com isto seu impacto e sucesso comercial) é
uma construção. Não há mercado dado, espontâneo. Óbvio, mas ainda
assim inspira ceticismos estudados. O que sempre incomodou
escritores de qualidade foi a repercussão comercial e marketológica
extraordinária de formulações simples, pseudônimos rotineiros e
escritores fantasmas que assinam sucessos produzidos. Isto quando o
texto não é francamente grosseiro. E veja bem que nem estou
computando a poesia, que até bem pouco tempo era considerada um
“mico” absoluto pelos editores nacionais. (vide as várias
entrevistas)
8.Como se insere na poesia atual?
Não creio que me possa me considerar inserido na poesia atual.
Prefiro pensar que posso vir a me inserir numa poética futura que
têm como garantia uma matriz histórica da fusão de muitos estilos.
Lancei-me na tarefa de executar a linguagem possível. Busco fazer
com a língua um trabalho de construção (e conseqüentemente
desconstrução) imagética sistemática. Sonhos e tradição, desejos e
símbolos, re-significações sensoriais e percepções corporais
traduzem a inquietude vital, motivações existenciais e metafísicas
do velho homem contemporâneo. Uso as metáforas obsedantes – assim
denominadas por Charles Mauron -- para poder enfrentar os ambientes
e recria-los.
Recuso o julgamento de méritos mas registro aqui também a pretensão
imodesta e desmesurada nos poetas que alcançaram status de
reconhecidos, ainda que o estatuto deste reconhecimento esteja
restrito a tribos muito circunscritas. Esta delimitação ocorre com
exceção dos que há muito foram eleitos ícones perpétuos em vários
nichos. (como por exemplo Bandeira, Drummond, João Cabral, os irmãos
Campos).
Alguns ousaram declarar que deram finalmente o acabamento que
faltava a poesia no Brasil – risus teniatis -- outros que perfilaram
um panorama em que tudo parece coerente e linear, acreditando numa
evolução “natural” do poema, produzindo uma versão quase
involuntária e pífia de darwnismo literário. Ora, nada menos
provável. Os poetas modernos não são e nunca serão insuperáveis.
Como afirmava Roberto Machado nem sempre uma anterioridade
cronológica é uma inferioridade lógica. Traçando uma analogia vejo
mais “evolução” no idioma poético naqueles que não se renderam às
efemérides das demandas do que nos midiáticos. Aqueles, alguns ao
menos, daqui há muito serão relembrados. E provavelmente nunca
tocarão nas rádios ou declamarão nas bienais. Já nem todos os
imortais da ABL ou laureados terão a mesma sorte. Não é torcer
contra, mas compreender historicamente o movimento. Como não sou e
não desejo ser um teórico da poesia arrisco-me apenas a dizer que
não sinto que tenhamos chegado a acabamento algum e o que está
acontecendo é a redescoberta (o que acho extremamente interessante)
de um outro valor para a poesia. Este novo significado pode abrir
espaço tanto para o poeta oculto no Acre ao qual aludíamos acima,
assim como produzir uma espécie de levante nos escravos da crítica
literária que seguem receitas assim como gourmets viciados acatam
servilmente indicações dos chefs. Mas ainda há muito barulho para
ser feito e que os poetas atraiam sobre si o luminosidade que lhes é
devida.
9.Tem algum mote?
Mote, não. Mas há um trecho da famosa carta de Rimbaud a Paul Demeny
(antes dele abandonar a poesia e se transformar em traficante de
armas na Abissínia) que acho curiosa: “E ainda que terminasse por
perder a inteligência de suas visões teria no entanto chegado a
vê-las”. A idéia do poeta como uma espécie de visionário que
monologa, criando contra-ambientes prometendo um “longo e
sistemático desregramento dos sentidos” é para mim prazerosa. Como
um dado interessante o recentíssimo e polêmico leilão dos
manuscritos inéditos de André Breton bateu todos os recordes de
interesse em poesia na França nas últimas décadas. Talvez isto
indiretamente reflita e antecipe um pouco da tendência a valorizar
certo tipo de manifestação poética. Espero que, desta vez, ao menos
desta vez, o mercado tenha razão.
10. Qual o papel do escritor na sociedade?
O registro histórico é um primeiro papel óbvio. Mas muito mais do
que isto o escritor é um indexador das perplexidades. Como
intelectual, aquele que escreve, obrigatoriamente penetra
criticamente na realidade. Como artista deve recriar jogos dando
conotação lúdica à seriedade pedante. Como poeta o escritor, assim
como o filósofo, acaba invertendo a direção habitual do trabalho do
pensamento. Parte de abstrações, de redes de sua epistemologia
genética para tecer enredos dentro de ilhas aparentemente
impermeáveis.
Geralmente são arquipélagos de idiossincrasias, agendas temáticas de
origem obscura. Intuição e imaginação coexistem sob pressão. Tudo
para que quem lê possa debruçar-se sobre cenários e idéias sem
molduras. Para que o que se move possa atravessar a insula. Devem
ser arquiteturas ágeis e deslocáveis. Neste sentido, dentre aqueles
que escrevem, o poeta é dos mais artesanais. O escritor, sendo uma
espécie de testemunha independente retraduz (ou pensa que retraduz)
o panorama que sintetiza. São instantâneos perfeitos. Os que
dialogaram mais serão os mais profícuos. O escritor não deveria se
render à idéia de poesia como produto. Deve resistir, e não pelo
purismo. Muito mais porque os poemas são idéias que se auto-realizam
como fatos. Poemas são notícias. Ações comunicativas subliminares.
Neste sentido, e compreensivelmente, os muito analíticos terão
sempre uma inveterada dificuldade para aprecia-las. Análise poética
é assunto para além da controvérsia. A lógica em poesia é assunto
perigoso, porque aqui, se seguirmos a radical compreensão
aristotélica, estaríamos diante de um pensamento que, por definição,
não admite contradição. Como sabemos a poesia pode prescindir desta
análise, já que os contrapontos são inerentes à ação poética,
enquanto dentro de um tratado de lógica, não.
A relação da poesia com a ciência (a tekhné) é outra digressão
interessante. Desde que a matematização do mundo operacionalizou e
deu feições claras e distintas à revolução científica moderna, a
racionalização emancipou o homem do dogmatismo. Ao mesmo tempo
reduziu as impressões ao demonstrável pelas ciências duras. Apesar
da resistência a poesia ficou ainda refém da aura do positivismo
aplicado. Foi preciso mais do que crises violentas, guerras e
finalmente a ruína do dirigismo cultural, maquiado de slogans de
justiça social, para que a liberdade de criar fosse apenas
rudimentarmente restabelecida. A reação foi parcial, e ainda estamos
apenas recomeçando a cantar sem medo de que alguém nos ouça. O ruído
está aí, baixo mas persistente: escutem!
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