Fernando Peres
Gregório de Mattos, 360 Anos
Fatos Documentados e Lendas Relativas a Gregório de Mattos e Guerra
(in A Tarde, 07.12.96)
Insinua-se nas dobras do tempo, a obra de Gregório de Mattos e
Guerra (1636-1695), a despeito de jamais ter sido autografada pelo
poeta. Sombras encobriram os escritos hoje atribuídos ao baiano
filho de portugueses, entre o século XVII, quando ele viveu e
circularam seus poemas satíricos pregados às escondidas por anônimos
nas paredes de prédios públicos, e o século XVIII, no qual copistas
os perenizaram em códices apógrafos. Neste final do século XX, já há
mais luzes sobre a vida e o legado gregorianos. Cronista da
sociedade seiscentista, intérprete crítico do seu tempo, religioso,
lírico, herético, Gregório de Mattos e Guerra estava longe de ser
figura unânime na sociedade seiscentista. O que, como defende João
Carlos Teixeira Gomes, estudioso da obra do poeta, talvez o tenha
impedido publicar em Portugal seus poemas "bem comportados". Tais
desmedidas motivaram preconceitos contra a poesia satírica, erótica
e escatológica de Gregório de Mattos até o início deste século, como
observa o historiador Fernando da Rocha Peres. O resgate do corpus
gregoriano só viria a ocorrer com o lançamento de Gregório de Mattos
— Obra Poética, organizada por James Amado, em 1968, hoje disponível
em dois volumes pela editora Record. As portas do século XXI,
Gregório de Mattos está em voga, através de mídias inimagináveis no
período em que viveu. Ele navegará no cyberspace da Internet através
de uma home-page, com textos sobre o poeta, poemas em português e
vertidos para o alemão, chinês e italiano, bibliografia básica e
material iconográfico. Seus poemas ganharam o suporte de um compact
disc, na voz da atriz Nilda Spencer. Seu nome foi refrão de um rap
defendido pelo cineasta Edgard Navarro num festival de música
popular. Proliferam as publicações acerca do poeta e sua obra, tendo
sido a mais recente de autoria da professora da UFBA e dramaturga
Cleise F. Mendes. Há 360 anos de seu nascimento, Gregório de Mattos
e Guerra é, mais do que nunca, personagem para o futuro. Em torno da
data e com o tema o poeta renasce a cada ano. No evento, serão
lançados carimbo comemorativo da data, o livro Sete poemas, de amor
e desespero, de Maria dos Povos, à partida do poeta Gregório de
Mattos para o degredo em Angola, de Myriam Fraga (edições Macunaíma)
e o CD Boca do Inferno, coordenado por Maria da Conceição Paranhos,
com interpretação de Nilda Spencer e música de Nico Rezende (edições
Cidade da Luz). Organizador do evento, o historiador e poeta
Fernando da Rocha Peres, aborda adiante, em entrevista, fatos
documentados e lendas relativas a Gregório de Mattos e Guerra,
revelando que a aproximação temática entre a obra do poeta do século
XVII e a do seu contemporâneo, o padre Antônio Vieira, será tema de
seus próximos estudos.
Ao que parece, novos dados biográficos sobre
Gregório de Mattos estão condicionados ao aparecimento de novos
documentos. Por que alguns registros-chave, como o de batismo e
óbito do poeta não são encontrados?
F.R.P. - As lacunas sobre a vida de Gregório de Mattos de certo modo
já foram preenchidas, quando fiz a revisão da biografia escrita no
século XVIII por Manuel Pereira Rabelo. Se estes dados, de registro
de nascimento e óbito, não foram encontrados é porque essa
documentação deve ter perecido. A certidão de batismo deveria estar
aqui, no arquivo da cúria metropolitana, e hoje não se encontra
mais. O registro de óbito deveria estar em Recife, onde ele faleceu.
Eu estive pesquisando aqui na Bahia, em Pernambuco, em Portugal e o
que pude encontrar sobre Gregório de Mattos foi, como disse Antônio
Houaiss, o suficiente para uma reescritura da biografia do poeta.
Creio que a data de nascimento e a de morte já estão suficientemente
fixadas.
Nestes 13 anos desde a publicação da revisão
biográfica de Gregório de Mattos, de sua autoria, surgiram muitos
dados novos? O que poderia ser acrescentado em uma nova edição?
F.R.P. - Esses fatos novos já surgiram e foram acrescentados em
outras publicações que fiz. Alguns documentos estão, como costumo
dizer, na encubadora, porque, em verdade, um trabalho em cima de
fontes primárias é um trabalho lento. Temos que checar as
informações documentais de todas as maneiras possíveis. De 1983 para
cá, muita coisa já foi acrescentada. Por exemplo, o fato de Gregório
de Mattos ter sido provedor da Santa Casa de Misericórdia de uma
vila portuguesa, Alcácias do Sal, onde ele foi juiz de fora. A
descoberta de uma terceira sentença dele, publicada pelo jurista do
século XVII Emanuel Alvares Pegas. O levantamento que fiz mais
sistemático sobre a família extensiva do poeta, da questão referente
ao processo inquisitorial contra ele, de 1865. Todos esses dados
serão acrescidos a uma nova edição ou, quem sabe, a um desenho novo
do poeta.
Que tipo de documentação se encontra no
Brasil? Há informações sobre a passagem do poeta no Colégio da
Bahia, dos jesuítas?
F.R.P. - Infelizmente não existe nada, porque quando os jesuítas
saíram daqui, no século XVIII, deixaram a biblioteca e o arquivo.
Vilhena, cronista da Bahia do século XVIII, nos informa que os
papéis do colégio foram vendidos para serem usados como embrulho de
gêneros na área do Terreiro de Jesus e no Pelourinho. Toda
documentação primária, levantei basicamente em Portugal, em Coimbra
e em Lisboa. Há aqui um registro no arquivo da Santa Casa da
Misericórdia da Bahia, quando ele entrou para irmão da Santa Casa.
Este é o único documento primário. As outras informações relativas a
Gregório existentes na Bahia, estão, algumas delas, publicadas nas
atas e cartas dá Câmara da Cidade do Salvador, hoje a Câmara de
Vereadores. Há muita informação sobre ele, que foi Procurador da
Bahia, defendeu os interesses dos proprietários de engenho de cana e
defendeu o quanto pode a criação de uma universidade na Bahia, no
século XVII. Registros não só dele, também de seu pai, avô, e irmãos
estavam em documentos cujos originais já não existem mais, mas por
sorte foram Publicados pela Prefeitura Municipal da Cidade de
Salvador.
E sobre o magistrado Gregório de Mattos?
F.R.P. - Sobre o juiz de fora, juiz do cível, representante do
Brasil nas cortes, há documentação em Portugal — na Torre do Tombo
ou na Biblioteca Nacional de Lisboa. É o caso do documento do
casamento dele em Lisboa, que era absolutamente ignorado. É um
documento autógrafo no qual ele diz ter 25 anos, em 1661, o que
resolveu a questão da data de nascimento. Outro documento precioso é
o de batismo de uma filha natural que ele teve em Lisboa, com uma
mulher chamada Francisca. Os arquivos portugueses são organizados.
No Brasil, lamentavelmente, não guardaram essa documentação dos
séculos XVI e XVII. Está quase toda ela destruída pelo tempo, pela
umidade, pelos insetos, pelos fungos, pelo desleixo.
Há pesquisadores portugueses debruçados sobre
a biografia de Gregório de Mattos?
F.R.P. - Sobre a biografia, não que eu saiba. Está havendo hoje em
Portugal e, podemos dizer, em grande parte da Europa — na Itália,
Alemanha, Noruega, Espanha — um interesse pela obra do poeta. Pela
obra apógrafa que ficou guardada nos manuscritos existentes em
Portugal, no Brasil, na Biblioteca Nacional, e pelo manuscrito agora
existente na Bahia, datado de 1775. São manuscritos feitos por
copistas portugueses ou baianos. Acredito que os documentos
fundamentais já estejam suficientemente assentados, levantados. Mas,
poderá surgir, em um ou outro arquivo ainda não organizado, público
ou particular, uma documentação que venha a esclarecer determinados
detalhes da vida de Gregório de Mattos.
Há uma polêmica entre críticos, quanto a
situar Gregório de Mattos com poeta brasileiro. É possível que
expressões do nosso vernáculo e a incorporação de vocábulos
africanos e indígenas — elementos presentes nos poemas de Gregório —
tenham ocorrido nos apógrafos e não partido do poeta?
F.R.P. - Não, evidentemente estes poemas, na sua grande maioria,
podem ser atribuídos a Gregório. Podem ser até mesmo datados com
base em seus conteúdos. Expressões da língua nativa, mais falada na
costa do Brasil, vocabulário africano, vocabulário espanhol — já que
todo português letrado era bilíngüe tudo isso compondo, junto com o
latim e o francês uma babel de falares que os poetas naquela época
usavam, não elide o Gregório de Mattos. Ao contrário, isso é típico
do barroco e aqueles que querem defender a brasilidade do poeta, o
fazem por esse viés de que ele é um barroco brasileiro, nativo, ou,
como eu mesmo cheguei a dizer, um barroco gentio. Ao se expressar,
na sua poesia, com esses falares ele revelou urna realidade local.
Há uma poesia de Gregório de Mattos feita em Portugal, anterior a
1682, e uma poesia na Bahia depois daquele ano. Só resta fazer um
cotejo entre o que está publicado de outros poetas. Já se sabe o que
foi atribuído a Gregório mas é de autoria de Tomaz Pinto Brandão, ou
de Dom Tomás de Noronha, ou outros poetas, até mesmo dos quais não
se possa indicar o nome.
Seria mais fácil se Gregório de Mattos tivesse
publicado em vida seus poemas sacros, ou os líricos?
F.R.P. - Havia muitos poetas na Bahia. Quase todo letrado praticava
poesia. Uns cuidavam de publicar, como foi o caso de Manoel Botelho
de Oliveira. Gregório não organizou os poemas bem comportados — os
poemas líricos e sacros — para uma publicação, lamentavelmente. Há
um poema dele em que é mencionado um quarto tomo. É um grande
mistério. Será que ele estaria preparando uma publicação, ou tinha
conhecimento de que as pessoas estavam organizando sua poesia a
mando de alguém? É muito estranho. Ele não publicou e criou esse
pequeno problema que, provavelmente, dentro de mais alguns anos,
será sanado.
Em que se basearam teses, hoje contestadas, de
que Gregório de Mattos seria de uma linhagem mestiça?
F.R.P. - Gregório de Mattos é mestiço na poesia que fez. Sua poesia
tem muita mestiçagem, até mesmo agressiva, na medida em que ele
assume um papel preconceituoso contra o negro, o mulato. De modo
algum ele pode ser considerado etnicamente um mestiço, um mulato.
Era descendente de galegos que vieram da cidade de Guimarães e se
instalaram na Bahia no início do século XVI. Naquela época, havia
uma triagem através de um processo chamado habilitação de gênere. O
sujeito que fosse mestiço — tivesse sangue de mouro, de judeu, de
africano, ou como eles chamavam, “sangue de infecta nação” — ou que
decendesse de oficial mecânico não poderia freqüentar a Universidade
de Coimbra nem ser nomeado pelo rei para exercer uma função de juiz.
Na sua poesia, Gregório em todo momento está se auto-referenciando
como branco e honrado. Sua linguagem é mestiça e esse é seu grande
mérito.
A partir de que período começa a surgir, ou
circular em Salvador, a produção poética de Gregório?
F.R.P. - É curioso que a maioria dos códices apógrafos sejam do fim
da primeira metade do século XVIII. A poesia de Gregório circulava
oralmente e, como ele chegou a denunciar, em forma de pasquins. O
poeta se irrita com isso dizendo que muita coisa que circulava não
era de sua autoria, era atribuída a ele. As pessoas copiavam um
poema de autoria de Gregório e colavam na parede ou porta da
Catedral. Poemas geralmente investindo contra as autoridades civis,
militares e eclesiásticas. Os poemas satíricos têm esse percurso,
principalmente se não são poemas muito longos. Tudo isso foi se
juntando. As pessoas copiaram de alguma maneira e isso permaneceu
guardado nos códices do século XVIII. Há uma lenda de que um
governador contemporâneo de Gregório, D. João de Alencastro, colocou
no palácio um livro para que todas as pessoas que soubessem de cor
um poema de Gregório o copiassem ali. Esse códice nunca foi
localizado.
O que se pode falar com segurança da relação
entre o poeta e o padre Antônio Vieira?
F.R.P. - A relação entre Vieira e Gregório se deu mais largamente
aqui na Bahia. Ambos vieram para cá quase no mesmo momento. Vieira
confinou-se no colégio, especificamente na Quinta do Tanque, onde
escreveu sua sermonária. Na poesia de Gregório existe algumas
referências ao Padre Antônio Vieira. Existem também alguns temas que
Padre Vieira abordou nos Sermões e que Gregório também abordou nos
poemas. Sobre isso estou preparando um trabalho para apresentar no
próximo ano, no tricentenário da morte do Padre Antônio Vieira. Não
gostaria de me adiantar muito, mas há essa possibilidade de
aproximação. Vieira era um homem da corte, foi confessor do
restaurador do império português, D. João IV, foi embaixador
plenipotenciário, teve muita influência. Gregório também teve muita
influência, fez uma carreira na magistratura, foi juiz em Lisboa,
veio para a Bahia ocupar um cargo importante. Vieira era da família
dos Ravasco e Gregório, dos Mattos da Bahia, como ele se intitula.
Havia aproximação entre esses sujeitos que, sendo do clero e
proprietários rurais, faziam parte do grupo dominante.
Por que Gregório de Mattos não chegou a ser
preso pela inquisição?
F.R.P. - Segunda a denúncia, ele tinha aqui na Bahia um modo solto
de cristão. Era considerado um herege. Praticava determinados atos e
dizia determinadas coisas que contrariavam a igreja. Principalmente,
ele escreveu alguns poemas contra o denunciante. O promotor do
eclesiástico Antônio Roiz da Costa, foi motivo da chacota em mais de
um poema. Defendo a posição de que o processo não foi levado a termo
porque a denúncia era de difícil comprovação e principalmente porque
a família de Gregório tinha ligações com a inquisição. O avô do
poeta foi familiar da inquisição do Santo Oficio aqui na Bahia,
nomeado pelo visitador D. Marcos Teixeira. Esta condição do avô fez
com que Gregório acumulasse, dentre outras coisas, um prestígio
enorme, a ponto de não ser molestado pela inquisição.
Sobre o período em que Gregório de Mattos
esteve em Angola, o que se pode afirmar?
F.R.P - Ele sai daqui em 1694, porque os dois filhos do governador
Antônio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho, contra quem ele tinha
escrito poemas terríveis, queriam matar o poeta. Os amigos de
Gregório, inclusive o sucessor do governador (D. João de
Alencastro), fizeram uma espécie de conluio. Colocaram o poeta numa
embarcação que saía daqui para Angola, levando cavalos do rei. Há um
poema muito engraçado dele descrevendo esta saída e maldizendo a
Bahia. Na Angola, houve uma troca do padrão monetário, do zimbo (um
pedaço de pano que circulava como dinheiro) pela moeda em cobre. Com
essa troca, os militares começaram a receber um soldo menor. Eles se
rebelaram e fizeram do bacharel Gregório de Mattos o interlocutor
junto ao governador de Angola. Gregório acaba traindo esses
militares e, em troca, pode voltar ao Brasil para morar em Recife,
já que ele não podia vir à Bahia sob risco de ser assassinado. Há um
poema onde ele relata esse fato. Localizei fontes que asseguram o
envolvimento dele com militares e, num segundo momento, uma
aproximação com o governador. Os militares foram presos, os líderes
condenados e mortos. Como ele contraiu em Angola a malária, chegou
em Recife, em 1695, e morreu no mesmo ano.
NUM VÔO EM TEMPESTADE
“O grande poeta inicial da literatura brasileira”, é assim que o
professor João Carlos Teixeira Gomes, autor de Gregório de Matos, o
Boca de Brasa — um estudo de plágio e criação intertextual, se
refere, ao refletir sobre o legado do poeta nascido há 360 anos. Na
entrevista que se segue, ele destaca que até o século XVIII era
usual absorver a tradição na criação literária, "condicionada pelas
normas da imitação". Defende, portanto, que o diálogo entre os
poemas satíricos de Gregório de Mattos e Guerra e a obra de Quevedo,
por exemplo, "é um processo legítimo e fecundante ".
Pode-se falar de dois Gregórios de Mattos — um
magistrado, ligado ao clero e cuja poesia é sacra e lírico-amorosa;
outro libertino e autor de poemas satíricos?
F.R.P. - Sim, há inclusive estudiosos que dividem a poesia de
Gregório em vários seguimentos temáticos. Por exemplo: poesia sacra,
poesia de circunstância, poesia erótica/obscena, poesia
lírico/amorosa. Há um Gregório múltiplo, na verdade. Mas, o
essencial para a literatura brasileira é o satírico.
Por que o satírico?
F.R.P. - Gregório de Mattos era uma personalidade eminentemente
satírica. Tendo vivido em Portugal grande parte de sua vida, ele
tomou conhecimento da obra do grande poeta satírico espanhol
Quevedo, que foi fundamental na sua concepção de poesia. Se Gregório
se limitasse a fazer poesias sacras, líricas, de circunstância,
jocosas não teria sido o grande poeta que foi na literatura
brasileira. O fato de ter entrado em confronto com a sociedade
baiana depois que voltou de Portugal provocou essa veia satírica com
mais intensidade. Através dessa linha de poesia, ele se firmou como
o grande poeta inicial da literatura brasileira.
Ha críticos que não aceitam Gregório de Mattos
como um dos nomes inaugurais de nossa poesia. O que o senhor acha
disso?
F.R.P. - Até o século XVIII, a criação literária estava muito
condicionada pelas normas da imitação, que começaram a se
desenvolver mais intensamente na Europa, a partir do Renascimento.
Podemos dizer que toda poesia de conteúdo amoroso do Ocidente até o
século XVIII é calcada na poesia de Petrarca. O fato de um poeta
seguir determinados cânones, previamente estabelecidos por outros
poetas, e basear sua criatividade na teoria da imitação, não diminui
o valor de sua obra. Na época de Gregório de Mattos, dois pólos eram
essenciais na criação literária da Península Ibérica: Quevedo e
Gôngora. Gregório afastou-se de Gôngora, na parte melhor da sua
poesia, e se deixou influenciar pelo clima da poesia de Quevedo.
Isso o tomou, inclusive, um poeta original. Quevedo teve uma vida
pessoal semelhante à de Gregório, foi perseguido político, preso.
Gregório foi desterrado. Havia o que alguns autores chamam de
afinidades eletivas entre os dois. Quevedo fecunda Gregório de
Mattos, que absorve esse legado e o adapta às condições da Bahia,
transforma isso de uma forma pessoal e consegue realizar uma obra de
grande importância, através dessa linha satírica.
A presença, na obra de Gregório de Mattos, de
elementos da língua espanhola, vocábulos africanos, indígenas e do
português falado no Brasil, são traços particulares do poeta?
F.R.P. - Gregório de Mattos usou sobretudo os termos indígenas e
africanos no sentido pejorativo, para estabelecer uma comparação
negativa com determinados elementos importantes da sociedade baiana
da época, que se davam ares de grande destaque. Quando utiliza esse
vocabulário — que enriquece muito sua poesia — o faz com o sentido
satírico e não com a preocupação barroca de acrescentar elementos
múltiplos à criação. Mas ele realmente ampliou os meios
expressionais da poesia barroca do Brasil, pela incorporação de
vocábulos indígenas e africanos.
Para o crítico, torna-se difícil se
desvencilhar da personalidade de Gregório para concentrar-se numa
análise que se detenha no texto, ou mesmo intertextual?
F.R.P. - A obra de Gregório de Mattos sobreviveu através de
apógrafos. Não há um único poema assinado por Gregório entre os mais
de 700 que James Amado reuniu nos sete volumes da edição das obras
completas. Aspectos da vida do poeta se harmonizam com a visão
satírica que os poemas revelam. Na mesma época, existiram poetas
dessa linha satírica, cuja linguagem se aproxima muito da de
Gregório de Mattos. Mas, certas situações só poderiam ter sido
vividas por um poeta satírico que aqui estivesse radicado. Saber,
por exemplo, que ele foi demitido do cargo de tesoureiro da Sé,
pouco depois de chegar à Bahia, lança luz sobre o fato dele ter uma
aversão profunda pelo clero. As informações biográficas estabelecem
certos nexos que ajudam a compreender a poesia satírica de Gregório
de Mattos e conceber que realmente um poeta como ele a escreveu. O
estilo de época era muito universal, os procedimentos poéticos do
barroco, os recursos retóricas, os tropos eram uniformes entre a
poesia portuguesa, a castelhana e, naturalmente, a poesia
brasileira, da época. Esta recebia influência natural, um processo
normal de intertextualidade, das duas outras — sobretudo da poesia
castelhana, que influenciou também poesia portuguesa. O gongorismo
foi avassalador. Já o quevedismo é a particularidade satírica de
Gregório de Mattos. Embora Quevedo tivesse, por exemplo, escrito
poemas de uma inquietação religiosa, sobretudo uma obsessão com a
idéia da morte, do aniquilamento físico do homem. Esse problema de
apógrafos não atinge só à obra de Gregório. Há uma boa quantidade de
poemas de Quevedo e do próprio Gôngora que não foram publicados com
assinatura, sobre os quais existe grande controvérsia,
Quando a posição ideológica do poeta contrária
às instituições estabelecidas se afirma?
F.R.P. - As pesquisas, inclusive realizadas pelo professor Fernando
Peres, mostram que Gregório de Mattos ocupou cargos importantes na
magistratura de Lisboa, o que para um brasileiro, na época, era de
grande significado. Ele casou-se com a filha de um magistrado
importante, o que deve ter facilitado seu acesso, mas não bastaria
para que ele fosse nomeado magistrado em Lisboa. É no retomo ao
Brasil que o lado satírico se aguça, embora atribuam a ele um poema
escrito em Portugal chamado Marinicolas. Poderia afirmar com
convicção, pelo estudo que fiz, que o Gregório importante para a
literatura brasileira nasce com a volta à Bahia. Há uma mudança na
sua conduta de vida, concepção de mundo e nas suas relações sociais.
Ele começa a ser o homem que ia com os amigos fazer grandes caçadas
e farras no Recôncavo, ou nos bairros afastados de Salvador daquela
época — Brotas, Rio Vermelho... — nomeados na poesia dele. Passa a
atacar os padres, os representantes do poder constituído, as
relações econômicas Brasil-Portugal. Era um homem de família rica,
mas um produtor rural brasileiro prejudicado pela política
portuguesa. Em alguns poemas, ele denuncia inclusive que as naus de
Portugal vinham cheias de pedras e voltavam abarrotadas com as
riquezas da terra. Até por esse aspecto sua poesia é importante,
porque já revela uma certa consciência anti-colonialista se formando
nas elites econômicas brasileiras da época. Muitos críticos dizem
que Gregório não tinha sentimento patriótico. Como nós temos hoje em
dia, certamente não. Mas, ele tinha o sentimento de um produtor
rural contrariado nos seus interesses econômicos. Sentia como a
presença de Portugal no Brasil era prejudicial a esses interesses.
Sobre a influência, o senhor chega a falar de
uma postura próxima à antropofágica?
F.R.P. - No meu livro (Gregório de Matos, o Boca de Brasa um estudo
de plágio e criação intertextual) estudei a força da tradição da
sátira ibérica sobre Gregório, um procedimento legítimo, natural,
fecundante, rico. Não como uma diminuição, como foi hábito até certo
tempo. A crítica brasileira não estava aparelhada para perceber a
importância desse jogo intertextual. É uma assimilação devoradora,
digamos assim. Gregório assimilava essas coisas e as transformava em
coisas nossas. A parte satírica da sua obra é fundamental como um
momento da evolução da consciência (eu diria) brasílica, mais que
brasileira — esta ainda não existia, no sentido da independência.
Nos poemas de Gregório que se repetem em
diferentes códices há muitas variantes?
F.R.P. - Sim, porque aquilo tudo era copiado a mão. Os copistas,
depois de um certo tempo, se cansavam. Há variantes inexplicáveis,
que desfiguram completamente o sentido do poema. Isso não atingiu
apenas à obra de Gregório, mas a toda a produção da época. A poesia
lírica de Camões, por exemplo, é toda ela duvidosa. Camões teve
publicados em vida três poemas, em locais diferentes. Nunca
publicou, ele próprio, um poema de sua autoria. Sua obra lírica é
toda póstuma. Não podemos dizer que Gregório, não tendo deixado um
códice autenticado, está com toda a obra sob suspeita. Nesse caso
teríamos que afastar também a obra de Camões, poeta que realizou a
tradição petrarquista, em sua poesia amorosa, de forma eficiente e
bela.
Que tipo de critério faz um estudioso, como o
senhor, escolher determinada versão de um poema de Gregório?
F.R.P. - Aquela que mais guarda coerência com a própria estrutura
lexical do poeta em outros poemas. Todo poeta tem um arsenal verbal
e retórico, usa com mais freqüência determinadas expressões,
determinados tropos, determinadas figuras de retórica. A construção
da frase guarda certas características.
Esse é um dos aspectos mais difíceis para uma
análise da obra de Gregório?
F.R.P. - Tudo é muito difícil quando não há indicação de autoria. É
como se fosse um vôo em tempestade, não se sabe o que vem pela
frente. Ninguém pode dizer com certeza absoluta que o legado que
está aí é de Gregório nem que o legado lírico de Camões é de Camões.
Há critérios que se estabelece, hipóteses de trabalho louváveis, que
constituem um avanço, mas não dão certeza nenhuma de fidelidade
autoral. O próprio fato de haver tantos códices atribuídos a
Gregório indicam haver, na época em que ele viveu, um poeta com o
nome dele e que provocava grande interesse.
Em alguns poemas Gregório de Mattos se mostra
incomodado com a destinação dada a sua poesia?
F.R.P. - Ele deveria escrever com esta finalidade. Como ele não
assinava os poemas, prendê-lo por isso ninguém poderia. Só se o
flagrassem distribuindo panfletos na rua, o que ele não fazia. Há
inclusive um poema, localizado por mim, em que ele diz que os
moleques de rua distribuíam sua poesia. O que mostra ser possível
até que ele fizesse cópias e mandasse distribuir, sobretudo quando
atacava às autoridades. Ele certamente gostava muito que sua poesia
satírica atingisse o objetivo, não escreveria aquilo para ficar
guardado.
As fontes da sátira de Gregório de Mattos,
serão tema de sua próxima palestra. O que o senhor aborda,
especificamente?
F.R.P. - A tradição vinda da literatura greco-romana. Sobretudo, a
partir da influência castelhana e portuguesa. A tradição satírica na
Península Ibérica através da poesia do escárnio e do mal dizer, da
poesia medieval satírica muito, freqüente em Portugal na época,
passando por Quevedo. E curioso dizer que Gregório esteve na Bahia
com um poeta português, chamado Tomás Pinto Brandão, muito
semelhante a ele na maneira de versificar e de encarar certos fatos
da Bahia, o que toma ainda mais confuso identificar as origens da
poesia satírica de Gregório e de certos poemas que estão nos
códices. A poesia de Tomás Pinto Brandão ficou num códice curioso
intitulado Pinto renascido que foi publicado. Esse poeta viveu na
Bahia com Gregório, fazendo farras. Parece que eles escreveram
alguns poemas a quatro mãos. Há poemas de Pinto Brandão muito
parecidos com os de Gregório, como se ele os imitasse.
Leia a obra de
Gregório de Mattos
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