Hélio Pólvora
Velho Braga, caçador de melancolias
04.08.2001
Diziam os
antigos autores de máximas que quem semeia ventos colhe tempestades.
O cronista Rubem Braga, o velho Braga de Cachoeiro do Itapemirim,
saiu à cata de ventos e recolheu melancolias, conforme está numa de
suas crônicas e Carlos Ribeiro utiliza como título de sua tese de
mestrado em Teoria da Literatura (Ufba).
A julgar apenas
por essa atitude, Rubem não foi tão contemplativo quanto faz crer.
Também se pôs em campo. Saiu, em outro exemplo, com a Força
Expedicionária Brasileira para narrar-lhe os feitos na campanha da
Itália - missão jornalística cumprida à risca. Homem de jornal,
desde a adolescência, quando colaborou numa folha de menor
importância e dela saltou para o Diário de Minas, Rubem jamais se
desligaria das redações. No jornal, escrevendo crônicas e
reportagens, forjou a sua identidade profissional. No jornal
permaneceu até à véspera da morte, sempre escrevendo, quase sempre
cronista. Mesmo na condição de colaborador, o jornal era-lhe uma
segunda natureza, o prolongamento da casa - e talvez a própria casa.
É natural,
porque, sendo ele essencialmente cronista, o jornal haveria de ser o
seu manancial. Carlos Ribeiro comprova, neste Caçador de Ventos e
Melancolias, que a crônica advém do folhetim (este, por sua vez, um
derivado do feuilleton), em meados do século XIX, estampados todos
eles em jornal. O advento da sociedade industrial, lembra ele, criou
necessidades de comunicação e leitura, além de formar um público
pequeno-burguês que dispunha de vagares e ócios. O que eram tais
folhetins, nos quais afadigaram-se autores de porte, como o nosso
Machado de Assis, o romancista Balzac narra em Les Illusions perdues.
A crônica, tal
como a conhecemos e praticamos hoje (registro de estados de ânimo,
comentários sobre fatos do cotidiano, banal matéria biográfica ou
densa página de cunho existencial), advém dos faits divers, aquelas
colunas de prosa leve e solta, tantas vezes leviana, do jornalismo
diário ou semanal. Nasce para morrer logo, como as cigarras, atiçada
pelos estios que a condenam ao efêmero - mas, se suplanta as
circunstâncias, conduzida por um cronista-escritor, vinga como
gênero literário.
Sei que alguns
críticos negam-lhe o status de gênero, aferrados que estão a uma
teoria de gêneros literários que a fusão atual dos gêneros já mandou
para as urtigas. Felizmente, ao escrever não pensamos nos críticos,
nem a eles nos dirigimos. O conto literário, que gozou, como a
crônica, das oportunidades da leitura breve e rápida, graças à
difusão dos rodapés e das revistas (na Europa, uma affluent society
expandiu as oportunidades de ensino), passou por evolução
assemelhada, mas ainda é olhado de banda, principalmente por
editores.
O velho Braga
foi cronista, de ponta a ponta do seu leque, tal como Dalton
Trevisan foi contista. Dois casos singulares. Tal exercício contínuo
fez com que se ouvisse a crônica e o conto com maior atenção e lhe
dedicassem espaço nos jornais. Se não fixou o gênero, porque, entre
nós, tem antecessores ilustres, como João do Rio, Medeiros e
Albuquerque, Olavo Bilac, Humberto de Campos e, naturalmente,
Machado, o cronista do Cachoeiro reforçou-lhe o alento. Já por isso
mereceria homenagens.
Mas talvez
Rubem, cronista visceral, estivesse esquecido, ainda que passados
somente uns dez anos do seu falecimento, não fossem circunstâncias
de meio e de época. Cada vez que utilizamos esses termos, os
formalistas da obra pela obra, inimigos da historicidade e,
provavelmente, saudosistas da turris eburnea, se eriçam. Mas não
haveria escritor, por mais talentoso, que se desse ao luxo de
menosprezar a conspiração dos fados. São esses fados, as
circunstâncias históricas, que os situam na esquina adequada. Há que
estar na esquina certa, na rua certa e no tempo exato, e com vontade
de abrir portas. José Lins do Rego, cujo centenário de nascimento
transcorreu há pouco, escreveria hoje o Ciclo da Cana-de-Açúcar?
Rubem Braga
pertenceu a uma geração de esperançados que não tardaram a se
desiludir. Considero esta geração atual mais vulnerável, porque,
perdida a esperança, e toda a esperança, restou-lhe o medo. Ainda
podia apanhar, o Rubem, nos seus campos de centeio, algumas
alegrias, alguns lampejos de beleza fugaz. Hoje, recolhemos
melancolias fundas e também corpos inanimados. Hoje, Rubem teria
motivos dobrados para ser o que dele diz Carlos Ribeiro -
“melancólico e envelhecido, inadequado ao seu tempo e lugar”.
Mas, se o poeta
é fingidor, o cronista também finge. Há nas atitudes sombrias dos
cronistas, e nas suas “filosofias pardas” (a expressão é de Benito
Perez Galdós), uma certa pose. Uma espécie de simulação irônica que
não escapa à análise de Carlos Ribeiro, quando menciona, em Rubem,
“a ironia manejada contra si mesmo” - atitude herdada de outros
cronistas e que, por conseguinte, parece fazer parte da poética do
gênero. De qualquer modo, a moldura de época foi favorável ao velho
Braga, que contou com a conjuração da amizade. Carlos Ribeiro
enumera alguns de seus muitos amigos, como Bandeira, Drummond, Otto
Lara Resende, Houaiss, Portela, Antônio Cândido, José Paulo Paes.
Deles partiu a crítica de boca que teceu em torno da obra de Rubem o
acolhimento unânime. E Ribeiro atesta que ele é pouco estudado, mas
seus livros retornam em novas edições.
A confraria de
espírito já não funciona com a naturalidade daqueles tempos. Poetas,
cronistas, contistas e romancistas travam hoje a sua guerrinha de
Brancaleone. É mais difícil, certo, mas nem por isso deixa de chover
poesia, em lufadas ou aguaceiros, deixa de cair em pancadas a chuva
de contos e crônicas. Regurgita o nosso lirismo nas canaletas, e nem
sempre há ouvidos disponíveis.
Dois aspectos
neste correto estudo sobre Rubem Braga merecem atenção: o leve
tratamento do aparato teórico que, em teses universitárias, costuma
enfastiar; o empenho de Ribeiro em acompanhar a história. Ele sabe
que o texto não brota por geração espontânea, e então, para fazê-lo
mais expressivo, vai fincando marcos econômicos, políticos e
sociais. Nesse balizamento que tanto ajuda a emoldurar o velho
Braga, vemos que a lírica bracarense está atrelada a um tempo e suas
circunstâncias, há nela um “compromisso visceral com a realidade
social do tempo em que viveu”.
A verdade que
Rubem Braga buscou extrapola do texto jornalístico, é a verdade
ficcional do instante revelador. Assim entende o ensaísta, assim
entendemos nós. Ele é um transfigurador da realidade, não para
deformá-la sectariamente, nem substituí-la, senão para recriá-la.
Crônicas que a alguns desavisados poderiam parecer contos, como
“Lição de Inglês”, “A Borboleta Amarela”, “Eu e Bebu na Hora Neutra
da Madrugada” e “Um Pé de Milho”, em que o cronista dialoga com o
seu risonho demônio, atestam a sua necessidade de trabalhar uma
composição em circuito fechado para melhor refletir o que Virginia
Woolf chamava de “estados de consciência”. Braga não praticou a
escrita artística, como o seu conterrâneo José Carlos Oliveira (o
Carlinhos de Oliveira citado pelo ensaísta), que sob este aspecto
lhe foi superior. Não quis escrever bem e bonito, com uma densidade
intencional; desejou apenas tocar no nervo.
Carlos Ribeiro
formula votos para que o seu livro estimule “a pesquisa de outros
escritores que exerceram e exercem a crônica no Brasil”. Faz ele
bem. Após os nomes dito nacionais, estão alinhados os da Bahia,
entre os quais me vejo incluído. Só não julgo pertinente a
distinção, que também foi feita por Aramis Ribeiro Costa em recente
resenha na revista Iararana, ainda mais quando eu e outros,
confessadamente baianos, publicamos livros de crônicas no eixo
Rio-São Paulo. Iniciei-me como cronista em 1962, com A Mulher na
Janela, editado no Rio de Janeiro, onde assinei crônicas no Shopping
News (tiragem dominical de cem mil exemplares), em revistas, no
Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Diário Carioca. No mais, é
louvar também o aspecto gráfico e a revisão de Caçador de Ventos e
Melancolias, devidos aos cuidados de Flávia di Garcia Rosa, da
Edufba, e desejar que o velho Braga de Cachoeiro do Itapemirim
continue a chamar os ventos.
Leia Rubem Braga
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