Paulo Roberto Pires
O encontro adiado
Fernando Sabino foi
o sobrevivente de uma geração. Ao lado de Helio Pellegrino, Paulo
Mendes Campos e Otto Lara Resende formou uma curiosa confraria,
celebrizada pela literatura mas cimentada na profunda cumplicidade
existencial. Os Quatro Mineiros entraram para a história da
literatura por acaso, pois o que os manteve unidos foi, acima de
tudo, os vínculos de fogo da amizade, vínculos partidos
sucessivamente pela morte precoce dos três e jamais cicatrizados num
Fernando que passou seus últimos anos distante de entrevistas e
aparições públicas, revirando gavetas, publicando inéditos e
desenterrando correspondências, cioso de uma posteridade digna,
livre de qualquer tipo de oportunismo ou apropriação. Morreu nesta
cinzenta segunda-feira, em casa, cercado pelos filhos, na véspera de
completar 81 anos.
Nas bibliografias, constam mais de 30 títulos publicados, entre
romances, contos, novelas, relatos de viagens e correspondência.
Escreveu muito e para muitos, tinha entre seus leitores uma
impressionante diversidade de perfis e idades, sendo a única
constante os jovens, que sempre passavam por suas deliciosas
crônicas ou por romances como “O grande mentecapto”. Era, mais do
que tudo, um raro escritor formador de leitores - e não apenas para
seus livros. Como poucos, fez jus ao título da antológica série de
crônicas publicada nos anos 70: “Para gostar de ler”.
Seu estilo límpido e fluente só teve a leveza como marca porque esta
era resultado de uma lenta depuração dos volteios da barroca alma
mineira, torturada entre os impulsos da vitalidade e os interditos
da moral. A graça de, por exemplo, “O homem nu” só seria possível
com a penosa gestação de “O encontro marcado”, um dos dez melhores
romances brasileiros do século XX e um dos retratos mais lúcidos e
emocionados daquele momento na vida em que é preciso decidir:
amadurecer é transformar a convulsão em experiência ou administrar
as frustrações de uma vida conforme?
Em 1956, quando o romance foi publicado, Antonio Candido definiu-o
como “o moto contínuo da alma ofegante”. Não conheço síntese melhor
para a história dos três amigos que, na Belo Horizonte opressiva dos
anos 40, flertavam com a literatura e consumiam-se em dúvidas,
reunindo-se na praça para “puxar angústia”. Aprendiam, na marra, que
viver seria eternamente encontrar-se com o Outro, fosse ele um
amigo, um amor ou Deus. Ignorá-lo é consumir-se em egoísmo e
limitação; transformá-lo em tábua de salvação é diminuir sua própria
responsabilidade e importância na vida, deixando-a passar em branco.
A primeira leitura de “O encontro marcado” – só aos 29 anos, muito
mais tarde do que em geral lê-se este livro - deu-me um personagem e
uma convicção. O personagem foi Hélio Pellegrino, tema de um dos
Perfis do Rio, do recente Arquivinho publicado pela editora Bemtevi
e elo de união com pellegrinos que transformaram-se em amigos
queridos. Com este livro veio ainda a convicção de que é melhor
saber puxar a angústia antes que ela te puxe e de que a amizade, o
dedicar-se de alguma forma ao Outro, é um dos pouco valores que
valem a pena serem cultivados.
Quando estava tentando decifrar meu personagem, pedi muitas vezes
uma entrevista a Sabino. A mais doce das recusas era sempre
acompanhada por um livro autografado, o mais querido deles uma
edição especial de “O menino no espelho”. Livro publicado, recebo um
dia na redação do “Globo” um telefonema: “Aqui é o Fernando Sabino”.
E aquela voz, para mim inacessível e um tanto irreal, me contou o
quanto gostou do retrato do Helio, de sua preocupação de que o
enfático amigo se transformasse numa caricatura e ainda arrematou,
bem ao seu jeito: “Viu como não precisava da minha entrevista?” Daí
para frente foram outros telefonemas esparsos, recados que deixei na
secretária eletrônica quando, fascinado, vi que a correspondência
“Cartas na mesa” era uma espécie de making of do “Encontro marcado”.
Em junho passado, a publicação de “Movimentos simulados” me levou a
escrever, aqui em No Mínimo, uma carta-aberta a ele, falando da
importância para os jovens escritores de um livro que ele já
dispunha muito bem no escaninho da posteridade. A resposta veio,
semanas depois, num recado enviado através do jornalista Mauro
Ventura, amigo em comum: “Fernando adorou o texto, quer falar com
você”. Nenhum dos dois ligou para o outro, mas ambos sabíamos o que
teria sido dito.
Como se pode homenagear adequadamente alguém que escreveu o livro
que você gostaria de ter escrito e que, através dele, mudou de
muitas formas a tua vida? Nada disso cabe entre as duas datas do
obituário. A única resposta possível, pelo menos agora, é esta,
puxar a angústia da morte para mais rápido libertar-se dela, sentir
a perda de um amigo que nunca o foi pessoalmente mas que sempre
consolou e esteve por perto - como só o mais fraterno dos
companheiros pode conseguir fazer.
Leia Fernando Sabino
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