Pedro Salgueiro
O olhar
Quem me conhece
bem sabe que eu tenho uma obsessão pelo olhar. E vivo dizendo que o
olho é o caminho mais curto da alma para tudo que está aqui fora, no
mundo vivido; mas nem sempre foi assim — houve um tempo em que ele
significava o mesmo que o olfato, o gosto e outros sentidos
vulgares.
E se hoje não
consigo mais olhar alguém nos olhos, não é por fraqueza... essa
covardia comum a qualquer indivíduo medroso, e sim uma espécie de
medo que me consome desde a juventude.
Descobri o
poder de um olhar no dia mais infeliz da minha vida. Explico: desde
a mocidade eu planejava uma vingança contra um sujeito que bateu no
rosto de meu pai, em meio a uma discussão besta, por causa de não
sei que teima. Era uma tarde morta, triste — daquelas em que os
únicos barulhos ouvidos eram os gritos de crianças, vindos com o
vento de um bairro distante. Lembro como fosse hoje, no entanto já
se passaram setenta anos desde aquela tarde.
Começaram
conversando baixo, depois as vozes foram aumentando, até silenciarem
com um tabefe seco, que meu pai engoliu fundo, baixou a vista,
apanhou o chapéu do chão... e eu fui seguindo seus passos de longe
(nunca o caminho de nossa casa fora tão longo): desde este dia nunca
mais foi o mesmo, e até o último instante de sua vida ele jamais
haveria de levantar a vista — morreu com os olhos baixos, como se
fosse (desde aquela maldita tarde) indigno de olhar os outros nos
olhos.
No dia de sua
morte jurei para mim mesmo que o responsável por tudo aquilo pagaria
com a vida pelo que fizera. Planejei durante muito tempo, teria de
ser uma ocasião singular; não poderia acontecer rápido, exigir a uma
ocasião especial. Levei quarenta anos estudando a situação, e por
várias vezes estive lado a lado com ele, só eu o conhecendo; vezes
houve em que trocamos algumas palavras; depois o perdi de vista por
quase dez anos. Eu não tinha pressa, estava certo de que logo ele
estaria em minhas mão, inevitavelmente.
Um dia eu soube
através de um tio que continuava residindo no vilarejo de minha
infância que o meu desafeto regressara para passar os últimos dias
de sua velhice na terra natal. Havia chegado a hora, não poderia
deixar para depois, era agora ou nunca. Convenci minha esposa e os
filhos já rapazes de que precisava ir ajudar a família em uma
questão de terras, mas que logo estaria de volta a casa.
Cheguei pela
manhã, no primeiro trem — e foi como se a vida toda desfilasse em
minha mente, as idéias tornavam—se confusas: o passado e o presente
se misturavam como se fosse em um sonho. Passei o resto da manhã
meio perdido, não conseguia reconhecer ninguém. Da janela da
hospedaria fiquei esperando a saída dele para um passeio, e que
fosse à tarde, do jeitinho de outrora.
Quando ele
despontou na esquina da farmácia já era boquinha da noite. Eu me
aproximei: olhei-o nos olhos, bem fundo, puxei vagarosamente a faca
e, quando notei que o seu olhar me reconhecia (tive certeza disso),
afundei-a toda em seu peito, depois outra e mais outra. Da surpresa
inicial de seus olhos passou para não mais reagir tentando se
proteger com as mãos, agora aceitava tudo parado a me olhar
tristemente - as feições de surpresa e dor deram lugar a uma calma
superior, quase arrogante. Olhou-me bem fundo. Neste instante meu
braço jazia parado no ar, um último golpe inútil fora contido por
aqueles olhos. E o que vi em seguida, teria preferido a morte, um
simples olhar sereno, mais forte que toda a minha raiva guardada, um
único olhar que eu jamais vira em toda a minha vida, um olhar de
quem não estava mais neste mundo, um olhar que (com certeza) nunca
mais me dará paz nesta vida. Fugi como o diabo foge da cruz, depois
me apresentei com advogado e cumpro (em parte devido à idade) a pena
em domicílio; porém sinto que já não vivo depois daquele olhar. E
desde aquele dia não levanto a vista, pois não sou mais digno de
olhar para mais ninguém neste mundo.
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