Pedro Salgueiro
Procissão
...ninguém dirige aquele
que Deus extravia!
Raduan Nassar |
O Senhor Morto
ainda não havia dobrado a esquina da farmácia, demorava-se nas
louvações em frente à janela do conselheiro Antônio Nobre. Dona
Bertolina erguia as mãos para o céu, repetindo o ritual de sempre.
Os galhos de benjamins foram colocados em posição que propiciasse a
demora. O meio da rua completamente forrado com as folhas e flores
que o sacristão e os mais devotos providenciavam desde a madrugada.
E foi logo de
manhãzinha, quando o magricela teve a triste idéia de largar sua
tarefa de jogar rosas pelas calçadas para se dirigir ao balcão do
boteco Riso da Noite, que a desavença aconteceu. Ele entrou
implorando licença, olhou tímido para o proprietário e pediu um
refresco. A gargalhada foi geral, uns riram por gosto, outros para
agradar os parceiros. Negro Nilson se destacou dos camaradas e pegou
o magrinho pela gola, enfiou-lhe a mão aberta no rosto, olhando de
soslaio para os companheiros. Depois que o devoto bebeu meia garrafa
de aguardente e levou alguns safanões, foi atirado no meio da rua.
O cortejo havia
acabado de passar pelo mercado e contornava a esquina da farmácia.
Os freqüentadores do boteco saíam para a calçada e se misturavam com
a multidão, perdendo-se entre os devotos — os olhos fixos no corpo
estendido do Senhor Morto, as narinas invadidas pelo cheiro de velas
queimadas e o adocicado das flores murchas. Os mais firmes
arriscavam alguns passos atrás da procissão, logo desistiam e
cambaleavam de volta; aqueles menos bêbados se escoravam nas paredes
e no tronco de um benjamim, acompanhando com os olhos tristes o
féretro.
Os fiéis
desciam já o alto da matriz, as velas tremelicando na direção do
cemitério. No Riso da Noite restou apenas o silêncio. Em todos um
certo clima de paz e medo, os olhos perdidos no infinito. Menos o
negro Nilson, que jazia debruçado sobre a janela, com os olhos
arregalados e a boca aberta buscando desesperada o ar — as mãos
cheias segurando as vísceras.
Bem longe o
cortejo descia vagarosamente a Rua da Saudade, um dos braços do
andor vazio, o Senhor Morto ligeiramente inclinado para a direita.
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