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Paulo de Tarso Pardal


 

Um estilo despojado
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

 

 

Na publicação do primeiro livro de Juarez Leitão, Urubu Rosado, em 1981, F. S. Nascimento dizia que o poeta manipulava com competência a metáfora e o símbolo, ´elementos fundamentais para arquitetar o universo transcendente da poesia´, escrevia o crítico na contracapa do livro.

Realmente, o livro surpreendeu, e ficamos sabendo que mais um poeta surgia para enriquecer ainda mais essa terra tão cheia de elementos inspiradores de poesia.

Acredito que Juarez Leitão, no entanto, não busca inspiração como elemento primeiro para suas composições. Digo isso porque seu estilo é despojado, sem muitos ornamentos lingüísticos, cuja retórica encontra-se, paradoxalmente, na simplicidade das construções das metáforas e dos símbolos. Esse despojamento é distintivo em sua poesia.

No primeiro livro, ainda há um certo derramamento sentimental, como sempre acontece. É como se fosse um desejo interior de afirmar-se enquanto ser e enquanto poeta, daí uma espécie de grito de libertação ser comum. Nesse livro, ainda há poemas puramente confessionais, cujos temas estão ligados à paixão, ao amor ao desejo, temas estes que se repetirão no livro seguinte, Tangenciais, de 1987, porém, com outra abordagem, com outra visão, como veremos adiante .

A novidade de Urubu Rosado está na construção das imagens, no coloquialismo da fala do narrador e, principalmente, na surpresa do emprego de determinadas expressões cujo efeito retórico só um poeta poderia conseguir:

Sou amarrado na noite mas lambo minhas auroras.
 

Este dístico faz parte do poema que dá título ao livro, poema, aliás, dos mais representativos de Juarez Leitão.

Além da surpresa de imagens como essa, aparecem outros elementos que enriquecem o poema e que demonstram a liberdade com que o poeta oficina seus textos:

Na proteção de meu mito me sinto nojento e nu como o verme no detrito
urubu
bu
bu.
Não tenho jeito nem prumo nem caminhos, como vê,
nem mais norte nem mais rumo
só você

cê.

 

Nestas estrofes de ´Urubu Rosado II´, o ritmo muito característico das redondilhas dão uma graça especial ao poema. A repetição das sílabas finais identifica o poema com uma canção e sugere uma melodia. Observe-se que o corpo do poema é formado por versos de 7 sílabas - ´Na proteção de meu mito´ -, e o refrão é formado por versos de 5 sílabas: ´urubu bu bu´; ´só você cê, ce´. É a junção desses dois elementos - ritmo e sintaxe - que faz desse poema um dos mais belos do livro e que coloca Juarez Leitão no rol de poetas que sabem usufruir das virtudes da nossa língua.

Há belos efeitos metonímicos em muitos poemas: ´rasgou blusas, atacou decotes´; há expressões irônicas, sarcásticas, outra grande característica que vai marcar não somente a poesia de Juarez Leitão, mas todos os seus textos: ´pudicas senhoras amaridadas´.

Além desses elementos bem específicos, temos que observar que Juarez Leitão tem uma característica temática mais geral, maior, cuja marca ficou gravada em todos os seus livros: o apelo erótico e o desejo; a saudação ao corpo da mulher. Estes, realmente, são elementos que identificam e que distinguem.

Apesar de tais temas terem sido já muito trabalhados em todas as épocas, mesmo assim, Juarez Leitão conseguiu extrair efeitos surpreendentes:

Que tal os seios vermelhos das irlandesas? (p.23)
Os peitos de Luísa se partem maduros (p.29)

Os seus peitos balbuciam segredos e murmuram ameaças veladas. (p.31)

Segurem o Juvenal! Poeta do sertão
(...)
fez vítimas rasgou blusas e atacou decotes. (p.33)

eu amo as mulheres grávidas cheias de vida e ardor.
(...)
namoro com todas elas. (p.39)

 

Se em Urubu Rosado há uma espécie de explosão lingüística de um poeta que não teve limites para experimentos na linguagem, nem cercas que o aprisionem na construção das imagens, em Tangenciais, publicado seis anos após o primeiro, há uma certa contenção. Observemos que os poemas de Urubu Rosado são da década de 1970; e de Tangenciais, da década de 80.

Esse detalhe pode passar despercebido pelo leitor menos avisado, mas pode ter um valor imenso para a explicação da contenção lírica do segundo livro de Juarez Leitão: a década de 70 foi marcada pela repressão ditatorial, e a censura a qualquer manifestação que ideologicamente questionasse o regime imposto pelos militares era severa. Somente após essa primeira década é que parte de uma geração tomou consciência, realmente, do que estava ocorrendo no país. E essa geração começou a questionar e, de certa forma, contribuir para o término desse terrível período da nossa história.

Esse dado é importante, porque no livro Tangenciais Juarez Leitão, talvez mais consciente do momento político, abrandou sua temática recorrente - o erotismo, o desejo, a paixão - e construiu poemas com temas traumáticos, proibidos e, por isso mesmo, liricamente contidos.

Embora alguns temas ainda sejam recorrentes, a maneira de dizê-los muda. É como se o poeta tivesse criando consciência de que a linguagem é apenas uma parte do poema; que o poema também precisa dar um certo mergulho na essência das coisas sobre as quais ele fala; que um poema nunca está dissociado da sua história social, política e estética. Talvez tudo isso explique a contenção.

Aqui, o poeta prefere ousar menos lingüisticamente e aprofundar-se mais, tematicamente. Aqui reside a diferença fundamental entre os dois livros. Se nos poemas de Urubu Rosado o narrador vai confessando seus desejos, em Tangenciais ele, antes disso, quer saber o porquê das coisas; aqui ele aprofunda seu pensamento, sai do primeiro nível da confissão. O mundo interior revelado não basta para abarcar as temáticas. O narrador sai de seu interior, subjetivo, egoísta, e se encontra com as coisas do mundo real, objetivo; com as coisas do mundo político, cuja repressão emurchecia as vozes. Neste sentido, o poema é mais um grito contra tudo o que estava ocorrendo no país: o poema é uma arma.

Mesmo nos poemas confessionais, a postura é outra: antes de o narrador querer ver os seios da mulher amada, ele quer também saber dela, enquanto mulher, enquanto pessoa. Neste sentido, há uma valorização dessa mulher idealizada, porque, antes de ser objeto de desejo (na verdade ela não vai deixar de ser), ela é um ser.

A visão do narrador, portanto, é outra, muito mais consciente de que um poema merece profundidade; consciente da realidade social do país; consciente de que o poema não serve apenas para cantar egoisticamente as dores do peito e/ou as tensões existenciais.

O olhar do poeta é outro, porque as tensões são do próprio ser poético, agora consciente de que inadaptado ao mundo não-poético, ao mundo banal, cujo golpe maior é mostrar o lado racional e cruel do ser.

Se em Urubu Rosado a paixão movia o olhar do narrador, com a ânsia e a força características da paixão, aqui, em Tangenciais, há também o viés dessa paixão:

Que amar é fazer guerra
sangue sol fatalidade:
É tudo mandacaru (p.85)

 

Neste caso, o sentimento da dor está por trás da imagem criada. O poeta aperfeiçoou sua técnica de despojamento, identificando o viés da paixão com elementos regionais que são símbolos de sofrimento.

Em ´Infância´, por exemplo, ao invés de o narrador confessar-se em saudades do tempo de menino, há uma espécie de receituário da infância, um ensinamento de como se construir essa infância. É um outro tipo de confissão, de lirismo; há uma outra abordagem. Neste poema, há uma verdadeira representação do mundo do período, maquinizado, que tenta transformar tudo em números. É isto o que este poema representa: uma equação da infância.

É esse tipo de visão que vai fazer de Tangenciais um livro mais próximo de seu tempo e que coloca, definitivamente, Juarez Leitão na lista dos poetas cearenses.

O lirismo é comedido, contido, porque é mais maduro. Aqui, o extravasamento dos primeiros momentos cede lugar à reflexão acerca do eu e do mundo. Há, portanto, uma mudança de postura poética e de cosmovisão.

 

Juarez Leitão

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