Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Rodrigo de Souza Leão


 

Nêumanne - O Filho do Som

 

José Nêumanne Pinto nasceu em 18 de maio de 1951, na pequena cidade de Uiraúna, no sertão do Rio do Peixe, nos limites da Paraíba com o Rio Grande do Norte, ao norte e o Ceará, ao oeste e a 400 quilômetros do mar, ao leste. Jornalista, trabalhou no Diário da Borborema de Campina Grande (PB), na Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Revista de Cultura Vozes e SBT. Atualmente, é editorialista do Jornal da Tarde e comentarista diário da Rádio Jovem Pan (Direto ao assunto), ambos de São Paulo. Escritor, tem nove livros publicados, três de poesia, um romance e cinco de reportagens e ensaios políticos.


Rodrigo: Quando se descobriu escritor?

José Nêumanne: Na infância, encantou-me o ritmo dos poemas de Castro Alves, que minha mãe, dona Mundica, lia, quando o motor da luz era desligado, na calçada de nossa casa, no alto sertão. Ali, lendo a revista O Cruzeiro e os gibis Bolinha e Luluzinha, trazidos por meu pai, Anchieta Pinto, de suas viagens ao Sul Maravilha, comecei a sonhar viver de escrever. Depois, no seminário redentorista, em Bodocongó, Campina Grande, Paraíba, colaborei para um jornalzinho, escrevendo contos e poemas, todos abaixo da crítica, mesmo para um estreante de minha idade. Tive uma fase realista-socialista no jornal Formação do Centro Estudantal Campinense, do qual fui editor. Mas creio que o momento definitivo, quando resolvi deixar de lado a hipótese de prestar vestibular para a Faculdade de Geologia, no Recife, foi quando me viciei no cheiro de tinta de rotativas do Diário da Borborema, de Campina Grande, Paraíba. Ali tive meu primeiro emprego e comecei minha carreira de jornalista, como crítico de cinema e repórter de polícia. Então, me descobri jornalista. Mas ainda não descobri se sou mesmo escritor.


Rodrigo: Qual o primeiro livro que leu?

José Nêumanne: Não me lembro exatamente qual foi o primeiro livro que li. Mas uma pessoa fundamental em minha formação literária foi o padre Anacleto, pároco de Uiraúna. Era a única pessoa que tinha uma estante de livros e todos no lugar. E os li todos. Eram livros religiosos, vidas de santo, que resolvi imitar. Foi daí que quis ser padre e fugir para Baturité para ser jesuíta. Terminei estudando com os redentoristas em Campina Grande.


Rodrigo: Quais os livros que influenciaram sua formação?

José Nêumanne: Espumas Flutuantes, de Castro Alves. Eu queria ser poeta romântico e tuberculoso, na adolescência. Também por causa de Eu, de Augusto dos Anjos. O primeiro romance que tentei imitar foi Fogo Morto, de Zélins do Rego, o primeiro escritor que invejei. Diz Paulo Henrique Amorim, casado com uma neta dele, que lembro um pouco sua figura. Fico pimpão com isso. Minha iniciação sexual em literatura foi bisbilhotando os encontros de Padre Nando com Winifreda e Francisca em Quarup, de Antônio Callado. Gostaria de escrever um livro como A Morte e a Morte de Quincas Berro d´Água, de Jorge Amado. Ou A Segunda Morte de Ramón Mercader, de Jorge Semprún. Os livros que mais abro para reler pedaços ao léu são a Bíblia Sagrada e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa ou ainda qualquer poema, crônica, conto ou parágrafo escrito por Machado de Assis, um grande escritor em qualquer língua e qualquer tempo. Como jornalista, considero imperdível Aos Olhos da Multidão, de Gay Talese.


Rodrigo: Com que se inspira para escrever?

José Nêumanne: Chorei diante da catedral inacabada da Sagrada Família, de Antoni Gaudí, em Barcelona, e daí me saiu um livro com 51 poemas (meu livro Barcelona, Borborema). Sonhei com o poema Poeira de Estrelas e não mudei uma palavra do sonho. Imaginei o que se passava dentro da cabeça do Anjo da Morte para escrever o romance-reportagem Mengele, a Natureza do Mal. Cobri a campanha presidencial de 1989 e escrevi Atrás do Palanque. Nasci na mesma cidade onde nasceu Luiza Erundina, única mulher que foi prefeita de São Paulo e escrevi Erundina, a Mulher que veio com a chuva, só para ter pretexto para falar de meu sertão velho de guerra e paz. Li uma notícia de jornal sobre o crime daquele José Carlos Alves dos Santos, que matou a mulher e denunciou os anões do orçamento, e, aí, tentei imitar Truman Capote, escrevendo um roman à clef, Veneno na Veia.


Rodrigo: Será que dá para falar num método? Como é seu processo criativo?

José Nêumanne: Já fiz um poema, Madeiro, de encomenda para servir de legenda à foto feita por um amigo para um álbum. Sonhei inteirinho o poema Será uma vez, que descreve a hora de minha morte, amém. Passei quatro anos burilando alguns poemas de Barcelona, Borborema. Um livro de ensaios e artigos, Reféns do passado, surgiu de uma conversa com amigos num restaurante. Outros são paridos pela pressão de editores amigos, como Pedro Paulo de Sena Madureira ou Luiz Fernando Emediato. Sei lá. Sei lá sequer se crio.


Rodrigo: Qual o melhor caderno cultural entre os publicados nos jornais brasileiros? Por quê?

José Nêumanne: Sábado, do Jornal da Tarde. Porque o editor, José Márcio Mendonça, não pertence a nenhuma camarilha ou panelinha cultural, que predominam nos outros suplementos. Prosa & Verso, do Globo, também é um bom suplemento, principalmente por abrigar a voz mais lúcida e corajosa da crítica literária brasileira, a de Wilson Martins.


Rodrigo: Quem é o escritor brasileiro? Como faz para viver de literatura?

José Nêumanne: Dos nove livros que publiquei, o que mais fez sucesso foi Atrás do Palanque. Ficou seis meses nas listas de dez mais e entrou na lista de dez mais vendidos do ano de 1990. Ganhei de direitos autorais o equivalente a um mês de salário no jornal, o que não é lá grande coisa. Mas sei que já há gente vivendo de literatura. E não apenas fenômenos de venda como Paulo Coelho ou grandes narradores como Jorge Amado. Zé Louzeiro, meu companheiro na reportagem da Folha de S. Paulo, é um pioneiro nisso aí e merece ser citado. Marcos Rey, um injustiçado da crítica, como bem lembrou Wilson Martins, consegue sobreviver de literatura infanto-juvenil, que tem um esquema profissional, capitalista, fugindo ao amadorismo comum da indústria editorial brasileira, que paga a pena de não ter escala. De qualquer maneira, vivendo ou não de literatura, o escritor brasileiro é, acima de tudo, um forte, como dizia do sertanejo (modéstia inclusa) um grande entre os grandes, Euclydes da Cunha.


Rodrigo: Como você vê a informática na literatura? O livro vai acabar? Qual o futuro da literatura?

José Nêumanne: Não creio que a informática vá acabar com o prazer de cheirar e folhear um livro, o que faço desde os tempos em que freqüentava a Livraria Pedrosa, em Campina Grande. Mas acho o computador um instrumento maravilhoso, também para ler, mas principalmente para escrever. Hoje escrevo muito mais rápido, depois que aposentei a velha Corona de aço. Acho que a literatura tem futuro. E gostaria de ter futuro na literatura.


Rodrigo: O que pensa de Drummond, Cabral, Geração de 45? Qual o poeta predileto (brasileiro e estrangeiro)?

José Nêumanne: Drummond foi um poeta dos maiores, sobretudo pelo casamento que fazia do humor com o amor. Cabral é o mais influente poeta brasileiro vivo. Nisso discordo de Wilson Martins, que o considera apenas um poeta regional. Se a influência é sempre boa ou pode ser má, é o caso de discutir. Mas não dá para negá-la. A Geração de 45 foi ofuscada pelo barulho dos concretos, mas teve grandes momentos, principalmente com o grande Péricles Eugênio da Silva Ramos, mas também com Domingos Carvalho da Silva, que está vivo, bem e mora em São Paulo. Gosto demais de Arthur Rimbaud, Walt Whitman, W. B. Yeats, Cesar Vallejo e Manuel Bandeira. Mas posso citar muitos mais, se você quiser. Apesar de ter a consciência de que 90% do que se produz em poesia no mundo é pura porcaria.


Rodrigo: O que pensa da polêmica "Poesia x Letra de Música"?

José Nêumanne: Sou poeta bissexto e letrista (de Zé Ramalho, Gereba, Mirabô e Walter Santos) mais bissexto ainda. Publiquei letras como se poemas fossem em As Tábuas do Sol. Mas concordo com Pedro Lyra e Ivan Junqueira: poesia é poesia e letra é letra. O humorista Falção concordará comigo: poeta é poeta, letrista é letrista. Às vezes, é possível ser grande nas duas atividades. Leia-se Vinicius de Moraes. T. S. Eliot, com sua auditory imagination, resolveu bem a questão: a música da poesia é o silêncio.


Rodrigo: Por que é difícil publicar e vender poesia no Brasil?

José Nêumanne: Porque poesia é uma atividade marginal mesmo. E, também, porque tem mais gente fazendo do que lendo poesia no Brasil.


Rodrigo: Teve muita dificuldade para editar o primeiro livro? Qual seu livro mais bem escrito?

José Nêumanne: Meu primeiro livro, As Tábuas do Sol, de poemas, foi editado pela Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba, porque Pedro Paulo de Sena Madureira brigou com seu patrão, Sérgio, filho de Carlos Lacerda, e ele terminou não saindo pela Nova Fronteira, como eu planejara. Só teve essa dificuldade. Não posso dizer que tenha sido muito grande. Talvez meu melhor livro seja o mais despretencioso, A República na Lama - Uma Tragédia Brasileira, sobre a queda e o impeachment de Fernando Collor.


Rodrigo: Há algum livro seu que não deu certo?

José Nêumanne: Pensei que Mengele, a Natureza do Mal venderia muito, até no exterior. Não vendeu nada. Gosto demais de Erundina, a mulher que veio com a chuva, mas também não vendeu nem agradou muito. Talvez por ser telúrico demais.


Rodrigo: Qual seu livro mais recente? Fale um pouco dele.

José Nêumanne: Solos do Silêncio — Poesia Reunida resultou de uma loucura de meu amigo Luiz Fernando Emediato, que resolveu lançar toda minha obra poética pela Geração Editorial. Falar o quê dele? Eu estou inteiro nele. Tá bom assim?


Rodrigo: Há sempre a briga Editora x Escritor?

José Nêumanne: Eu, pessoalmente, nunca a travei. Mas tenho um amigo, Milton Eric Nepomuceno, vulgo Bicho, que sempre dizia não conhecer escritor rico, mesmo quando faz muito sucesso, nem editor pobre, mesmo quando quebra. Mas hoje, segundo um editor que entrevistei para o Jornal da Tarde, ele não pensa mais assim.


Rodrigo: O que querem as editoras?

José Nêumanne: Acho que querem vender mais livros. O que é legítimo. Infelizmente, há no Brasil menos livrarias do que em Buenos Aires. Assim, não dá, como diria o presidente Fernando Henrique Escrevinhando. É tudo uma questão de escala. Precisamos de menos analfabetismo, mais poder aquisitivo e um maior nível de instrução da média da população. Ou seja, um longo caminho a ser trilhado, meu caro Rodrigo.


Rodrigo: O que é poesia?

José Nêumanne: Como disse em entrevista ao repórter Pedro Bial, que, aliás, é bom poeta, daquela geração do mimeógrafo, poesia não é para quem quer, é para quem pode, tá? Concordo com meu amigo Antônio Olinto, que escreveu durante 50 anos a coluna Porta de Livraria, no Globo: se o romancista se faz, o poeta nasce. Poesia é dom, vocação, quase danação, não uma opção.


Rodrigo: O que é necessário para que exista o fenômeno poético? Qual a sua concepção de poesia? O que pensa sobre teoria literária? Ela tira espontaneidade?

José Nêumanne: Conheço pouco de teoria literária, mas acho primordial conhecê-la melhor, embora, insista, acredite mais na inspiração do que na transpiração no fazer poético. Não vejo por que haveria, aí, perda de espontaneidade. É-se espontâneo ou não, sendo erudito ou ignorante. Não é necessário conhecer teoria para fazer poesia, mas também não é uma condição excludente. Por que seria? Para mim, a poesia é o laboratório da linguagem. Da mesma forma como se testavam novas tecnologias na Nasa na Lua para posterior uso na Terra nossa de cada dia, os criadores testam na poesia o que, depois, irá para a prosa e para a rua.


Rodrigo: Qual o movimento mais importante, renovador da poesia em todos os tempos? Qual o que gosta mais?

José Nêumanne: Parodio Millor Fernandes: o movimento mais importante e mais renovador da poesia em todos os tempos é o movimento da cintura. Embora, de certa forma, outros também sejam válidos: o olho que vê e a mão que escreve, o coração que pulsa e o pulmão que aspira expira o ar. Poesia é algo orgânico, sacou?


Rodrigo: Quais os poetas que o influenciaram em seu passado? E no presente?

José Nêumanne: Antes, Augusto dos Anjos, Castro Alves e Manuel Bandeira. Agora, Mário Chamie, Octavio Paz e José Paulo Paes.


Rodrigo: Em quê o jornalista prejudica o poeta e vice-versa?

José Nêumanne: Acho que era Hemingway quem dizia que o bom escritor passa por uma redação de jornal, mas sai dela correndo. Mas, no caso específico da poesia, nem influi nem contribui, não aborrece nem atrapalha. Por que haveria-de?


Rodrigo: Você é nordestino. Como podemos explicar o sucesso, em meio a tanta adversidade, do escritor nordestino?

José Nêumanne: Talvez pelo fato de a palavra ser gratuita. Quem vai saber? Não é preciso pagar para usá-la. Basta nascer com o dom. É pouco? Ou quer mais?


Rodrigo: Como podemos definir o poeta nordestino?

José Nêumanne: O poeta nordestino é filho do som, como Gerardo Mello Mourão, com seu baião camoniano, dito A Invenção do Mar. Ou filho da luz, como João Cabral com sua engenharia de rigores. O poeta nordestino é múltiplo, como qualquer outro, entende? Pode ser telúrico como Ascenso Ferreira, metafísico como Augusto dos Anjos, militante como Castro Alves, ousado como Jorge Fernandes ou atento ao gesto como Sérgio de Castro Pinto. O poeta nordestino, simplesmente, o é. Como o mineiro, ué.


Rodrigo: A polarização Rio e São Paulo é prejudicial à cultura brasileira?

José Nêumanne: É. Só que, por incrível que pareça, o fenômeno da globalização está demolindo essa coisa da centralização. O global é gêmeo do paroquial. O regional se valoriza e ganha o mundo. Como provam Zeca Baleiro, Lenine, Rita Ribeiro e Chico César, na MPB, Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque e Tabajara Ruas, na literatura, etc.


Rodrigo: Você teve de vencer alguma barreira para tornar-se escritor?

José Nêumanne: Não que me lembre, além de minhas próprias barreiras, quais sejam, falta de talento, de ânimo, de perseverança...


Rodrigo: Qual a principal característica que deve ter um bom escritor?

José Nêumanne: Sobretudo, escrever bem. Depois, ser vaidoso o suficiente para ter a segurança de que sabe escrever. E humilde o bastante para saber que não é o melhor do mundo nem pode ser. Nem nunca vai ser. Manjou?


Rodrigo: Caso conselho fosse bom, ia-se cobrar, mas, esquecendo o ditado, que conselho daria para quem está començando?

José Nêumanne: Simplesmente, comece. Não há ponto final, se não for escrita a primeira letra.


Rodrigo: Qual o papel do escritor na sociedade?

José Nêumanne: O escritor é um cidadão como outro qualquer: o lixeiro ou o senador. Com todos os deveres e direitos de praxe. Seu principal dever é testemunhar seu tempo e sua gente. Se possível, voltando sempre a nosso pé de serra e à mãe da gente, como diz um sertanejo na propaganda de um programa jornalístico da TV a cabo.


Rodrigo: Que pergunta gostaria de responder e ninguém ainda fez?

José Nêumanne: Todas. E nenhuma.

 

José Nêumanne Pinto

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30.09.2005