Rodrigo de Souza Leão
Todos Os Pecados são Gerardo
O Começo
Rodrigo — Sempre há o momento inicial,
o primeiro contato com a literatura. Como foi este momento?
Gerardo de Mello Mourão — Quando começou? Os antigos diziam que
"poeta nascitur". Assim, creio que, de certo modo, a poesia é uma
coisa de nascença. Ela não tem nada a ver com a literatura, enquanto
instituição. A letra é uma coisa sagrada. A nossa foi inventada por
Linos, filho de Orfeu. Letra em grego é grama. A palavra literatura
é uma palavra nova. Os escritores eram chamados "gramáticos".
Depois, a palavra ficou desmoralizada, porque os "gramáticos" foram
acusados de ser meros processualistas do grama, isto é, das letras..
Na decadência latina, os escritores começaram a deshelenizar a
nomenclatura. Foi inventada a palavra "literatura", como tradução
fiel de "Gramática", isto é, a arte de se expressar com a "littera"
- a letra, e o termo só entrou em voga, efetivamente na Renascença,
depois da Idade Média. Então, os que trabalhavam com o "grama", isto
é, a "littera", passaram a ser chamados não mais com a expressão
grega, mas com voz latina: "literatos". Hoje, com a revolução da
escritura, iniciada no fim do século passado, a palavra "literato"
também passou a ser desmoralizada. Quer ofender um escritor? Chame-o
de "literato". Porque o literato passou a ser também um presunçoso
processualista, como o gramático pós-alexandrino. Creio que a
palavra "literatura" também está desgastada. Não me pergunte por
que, pois a resposta seria longa e cruel.
R — Quais livros fizeram parte de sua formação?
GMM — Antes da escola sistemática, os livros de cantadores
nordestinos, toda a antologia dos violeiros, que ouvi de viva voz,
na feira e nas festas populares de Ipueiras. Conheci também, ainda
criança, alguns textos de Gustavo Barroso, primeiro divulgador da
obra dos cantadores nordestinos, e depois, na coletânea de seus mais
importantes discípulos, Leonardo Mota e Luís da Câmara Cascudo.
Leonardo Mota foi o mais fértil e melhor recolhedor de cantigas,
hoje chamadas de cordel, sem a erudição de Cascudo, que dizia ser
Gustavo a fonte em que todos aprenderam a poesia dos violeiras e
rabequistas. Depois do livro de Leonardo Mota, "Os Cantadores", que
eu lia e decorava aos cinco e seis anos (sabia ler correntemente aos
cinco anos) outro livros que li, deslumbrado, foram a "História de
Carlos Magno e os Doze Pares de França" e "O Lunário Perpétuo".
Minha mãe me ensinou a ler cedo demais. Mas os livros exemplares que
me deram gosto pelas letras foram os clássicos que comecei a ler na
"Antologia Nacional" de Fausto Barreto e Carlos de Laet, dos 10 para
os 11 anos. Aos 12 lia autores franceses. Aos 13 traduzia autores
latinos e ainda hoje acho uma das mais perfeitas peças poéticas que
conheço o capítulo de Júlio César sobre a construção de uma ponte na
guerra das Gálias. Aos 14, aos 15 e aos 16, traduzia diariamente
textos de Ovídio, Virgílio, Cícero, Homero e Píndaro. Foi um batismo
de fogo, quando comecei a entrar na retórica de Cícero, nos metros
poéticos gregos e latinos, que não são medidos pelo número de
sílabas, como os de nossos poetas metrificados, mas pelo número de
pés, em que o ritmo não se marca pelas átonas ou tônicas, mas pelas
sílabas breves ou longas. Pelas vogais breves ou longas. É uma coisa
altamente sofisticada. Os poetas de línguas latinas - italianos,
franceses, portugueses, espanhóis, etc., abandonaram a metrificação
latina e inventaram outros ritmos: os decassílabos, os alexandrinos,
as redondilhas, etc. Mas os grandes poetas de língua inglesa, alemã
e até certo ponto os italianos, Dante, Petrarca. Leopardi e mesmo os
contemporâneos, D'Annunzio, e os revolucionários, de Marinetti a
Sanguinetti, etc., guardam o ritmo interior dos versos em dáctilos
virgilianos, hexâmetros, jônicos, trocaicos e outros, como os
greco-latinos. E os poetas fundamentais, que inventaram a poesia
contemporânea, como Pound, Rilke, Trakl, Eliot, Gotfried Ben,
Hopkins, os irlandeses, etc trabalharam todos com a música interior
do verso latino e grego. Mas quem souber ler Baudelaire, Rimbaud,
Iommi, Marteau, Claudel, Edi Simmons, Déguy, Raul Young. Efraín e
Agustin e os grandes da poesia contemporânea, e em português,
Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, verá que eles cantam nesse
ritmo vertebral da música interior do metro grego e latino: uma
breve - duas longas - uma longa - duas breves, e assim por diante.
Sem a contagem de sílabas parnasiana e acadêmica, mas também com o
metro nosso antigo e o verso livre, ( destaque-se o grande poeta
mineiro Dantas Mota). O verso, soprado ou coloquial, a linguagem
poética, da poesia propriamente dita, só é feita pelos que sabem,
por intuição ou por disciplina, esses segredos da arquitetura e da
tessitura do verso. Não se pode fazer versos sem sílabas nem poesia
sem verso, em que pese à validade das experiências de construção e
des-construção das escolas que andam ou andaram por aí. Algumas
dessas experiências podem até ter sido corretas. Mas não fazem uma
obra poética. É bom lembrar a advertência do segundo Manifesto de
Picasso, sobre os artistas que apresentam pesquisas como obra feita.
Não são.
É o caso dos concretistas, etc. E ponha etcétera nisso. Não dou aqui
nomes de poetas vivos, ou que se julgam vivos, apesar de alguns
deles estarem mortos sem saber. Mas alguns entre os vivos sabem
estas coisas.
R — Quando começou a escrever. Quais eram as sensações?
GMM — Muito cedo. Pensava que estava descobrindo a poesia. Aos 21
anos, com um grupo de poetas em Buenos Aires - éramos a Santa
Hermandad de la Orquídea - desconfiamos de nossos versos,
verificamos que não era a poesia, e queimamos todos em praça
pública, no chamado "Pacto del Victoria"- uma decisão que tomamos
num bar chamado "Victoria". Infelizmente, eu já tinha publicado
alguns desses equívocos, que hoje queimo quando os encontro num sebo
de livros ou num jornal antigo.
R — Atualmente o grande problema do jovem escritor é publicar
seus poemas. Nestes sentido, no início, quais eram os seus
problemas?
GMM — Publicar ou não publicar não é problema para um escritor de
verdade. Vender livros também não. Baudelaire, em toda a sua vida,
ganhou apenas 17 francos com seus livros. Kafka nunca teve mais de
40 leitores. Quanto a mim, escrevo apenas para comparecer com estes
livros na mão, diante de Deus, no Dia do Juízo Final, no Vale de
Josafá, que espero esteja para chegar. Acho até que tenho vendido
demais e publicado demais. Deus vai me cobrar isto. Quando um jovem
escritor está aflito para publicar um livro, desconfie do livro e do
escritor. Começo por mim, que desconfio de meu primeiro livro.
Depois, tome nota: um dos maiores poetas de nosso tempo e de todos
os tempos, Kavafis, nunca editou um livro em vida, apenas
distribuía, de vez em quando, quarenta ou cinqüenta cópias de um de
seus poemas a quarenta ou cinqüenta pessoas que conhecia em diversos
países da Europa.
R — Teve algum incentivador?
GMM — Infelizmente, tive.
O Poeta e a Obra
R — A sua obra é nordestina por natureza. O nordeste é apenas
pano de fundo e, seriam assim, regionais seus temas, ou não dá para
dissociar o nordeste de sua poesia. Fale um pouco.
GMM — Não sou um poeta nordestino. Sou um nordestino poeta. É outra
coisa. Por isto sou fiel às substâncias líricas de minha tribo e de
minhas ribeiras da Ibiapaba. Com licença dos folcloristas e do
folclore em geral, não estou aqui para fazer folclore. Não sou um
tipo folclórico. Mesmo as letras de Humberto Teixeira, nas
antologias de Luís Gonzaga, ou os poemas de Ascenço Ferreira, não
são propriamente folclóricos, embora não percam nada de sua grandeza
quando a lira do povo (folk-lore) as absorve e elas chegam a ser
repetidas como cantos anônimos. Passam a existir além de seus
autores. Como se dizia da "Ode a uma Urna Grega", de Keats, quando
feito e perfeito, o poema sabe mais do que o poeta. No dia em que
meu poema souber mais do que eu, então sim, terei a glória de ser o
nordestino poeta, isto é, de ter o sopro dos próprios ventos da
terra, de crescer de suas entranhas como um ser que dela recebeu a
vida, uma serpente, um pé de juazeiro.
R — Qual a principal característica de sua obra?
GMM — Uma obra não deve ter caraterísticas. Não deve ter caráter. O
pensamento puro não tem caráter. Nietzsche ensina que o futuro
pertencerá aos países e às pessoas sem caráter. Se minha obra tiver
importância, desejaria que ela tivesse a importância de um sopro
criador, aquele sopro que Deus soprou nas narinas do boneco de
barro, aquele sopro que Sócrates, Platão, Homero, o Dante e o Camões
sopraram sobre suas tribos, dando-lhes uma Paidéia, para que fossem
fiéis à vocação do ser humano. Esta vocação é a beleza, a verdade. É
a verdadeira alegria de viver, a que Santo Agostinho chamava de "gaudium
cum veritate" - o gozo pleno da verdade O orgasmo da verdade.
R — Existe algo que os críticos não viram nos seus versos? Algo
que nunca verão?
GMM — Não sei. Alguns, como Tristão de Athayde, Antônio Olinto, o
saudoso José Geraldo Nogueira Moutinho, Franklin de Oliveira e não
sei quantos mais, como recentemente o crítico Wilson Martins e os
escritores José Nêumanne, Antônio Penteado Mendonça e o poeta César
Leal, e outros, viram generosamente as coisas que tenho escrito.
Ainda agora, o mesmo Wilson Martins, reiterando o que dissera em
artigo sobre meu último livro, "Invenção do Mar", ousou dizer que
entre os poetas brasileiros para o futuro, Gerardo Mello Mourão é o
nome em que ele aposta. Creio que o futuro é a permanência, a
posteridade. Muitos por aí andam em busca de publicidade. Eu não
busco e não quero publicidade. Eu busco a glória. Só Deus e as Musas
sabem se a terei.
Em tempo: o mestre Octavio Paz viu uma coisa em minha trilogia "Os
Peãs", iniciada com "O País dos Mourões": que eu tinha inaugurado o
canto da genealogia da América. E esta é uma velha ambição
cosmogônica: fazer, não a minha genealogia, mas a genealogia do
nosso mundo. Re-criar o mundo em que vivemos, fundando de novo seu
passado, porque, como no verso de Eliot, o tempo presente está no
tempo passado e o tempo passado é o tempo futuro. Creio que é neste
sentido que o Wilson Martins insiste em dizer que eu consegui
reescrever os Lusíadas, de um certo modo para lá dos Lusiadas. Não
haveria glória maior: os Lusíadas fundaram Portugal. Quem me dera
fundar o meu país!
R — Quem são seus seguidores? Nesta trajetória, vasta e fértil,
algum poeta merece o seu legado?
GMM — Eu não sou seguidor de ninguém. Tenho, é claro, referências
fundamentais para meu próprio trabalho. Seria um ato de soberba
imaginar que eu venha a ser referência de algum grande poeta. Aqui
lembro com emoção um poeta jovem que conheci, um poeta inteiro e
imarcescível, parte de cuja obra publiquei em livro. É uma lembrança
sagrada para mm, para alguns amigos e para meus filhos. Suicidou-se
silenciosamente aos 21 anos, no esplendor de sua juventude e de sua
vida, por puros motivos de amor à poesia. Sua morte é o legado mais
pungente que nos resta de uma vida poética.
O Presente
R — Quando liguei para você, estava se preparando para uma
conferência. Como é a vida de poeta consagrado?
GMM — Tenho viajado muito. Menos do que mereço. No princípio
acreditei em Rilke, quando dizia que para escrever um só verso é
preciso viajar cidades e cidades e cidades. Todas as cidades. Mas
depois fica aquela fadiga de Mallarmé, para quem era preciso também
ler todos os livros. Leu todos, e depois ficou triste, como está no
verso famoso: "la chair est triste, helàs! et j'ai lu tous les
livres". Por outro lado, o solitário poeta português Antônio Nobre,
exclamava: - "viajar, viajar, todo o planeta é zero". Mas acho que
viajei todas as cidades dos continentes e li todos os livros. É como
o coito sexual. O pai da medicina, Hipócrates, dizia que "depois do
coito, todo animal entristece". Depois de todas as viagens e depois
de ler todos os livros, resta uma tristeza, mas uma tristeza
voluptuosa, uma espécie de cio a que a memória volta de vez em
quando. Não sei como é a vida de um poeta consagrado, e desconfio de
todas as consagrações.
R — O exterior o reverência mais do que o Brasil?
GMM — Desdenho todas as reverências. Venham de onde vierem.
R — Quem é o maior poeta brasileiro vivo?
GMM — Tive um amigo poeta, que traiu sua vocação e acabou
Desembargador. Na juventude ele escrevera um poema que começava
assim: "Eu sou o maior poeta do mundo - eu sou o maior poeta do meu
mundo". Ele morreu há alguns anos, e só por isso não digo que ele é
o maior poeta brasileiro vivo. Fiz o prefácio de seu único livro
póstumo.
R — Qual o maior poeta de todos os tempos?
GMM — O poeta não é um atleta, um jogador de tênis, para se
estabelecer este tipo de competição. Não são muitos. Mas há vários
maiores em todos os tempos. De Homero a Píndaro, a Virgílio, ao
Dante, a Hoelderlin, e assim por diante. Não são muitos. É preciso
ser exigente nesta brincadeira. Para mim, as mais altas referências
do século seriam Ezra Pound, que já morreu, e Godofredo Iommi, que
está vivo numa praia do Pacífico, em Viña del Mar. Mas é uma tolice
dizer que este é maior do que aquele. É uma coisa que não se mede,
nem mesmo com o metro do gosto pessoal.
R — Quais são as suas influências?
GMM — Não tenho influências. Tenho freqüências assíduas de leitura.
Além dos já citados, os textos do Livro. O Livro é a Bíblia, o
Antigo e o Novo Testamento. Os poetas do Livro, os judeus, depois os
gregos, depois meia dúzia de descendentes culturais de judeus e de
gregos, como todos nós.
O Passado
R — Sua ligação com o integralismo, no passado, impediu o senhor
de galgar um espaço maior na literatura?
GMM — Marinetti que, por sinal, era senador do Partido Fascista,
como Pirandello e D'Annunzio e tantos outros, advertia que os poetas
dignos deste nome não procuram "galgar espaços na literatura". "Só
os cretinos fosforescentes lutam para aparecer". Eu não sou cretino
fosforescente e não quero galgar espaços, muito menos nesta coisa
menor que é a literatura institucional em nosso pobre país e em
outros países.
O integralismo foi uma fecunda experiência cultural e uma aventura
moral e espiritual dos melhores brasileiros de minha geração. Mesmo
sem esforços para isto, os integralistas que o quiseram, galgaram
todos os espaços de
que você fala. Quatro deles chegaram à Presidência da República nas
duas últimas décadas, sem falar em outros postos altamente
representativos da vida nacional. As Universidades, as Academias
Científicas, os Ministérios, os postos diplomáticos, as Academias de
Letras, inclusive a do Machado de Assis, honraram-se com incontável
número de integralistas, sem falar nas dezenas de generais,
almirantes, brigadeiros das Forças Armadas, nos comandos das maiores
empresas industriais e bancárias do país, tanto no setor público
como no setor privado. Haver pertencido ao integralismo é um título
que me tem proporcionado os melhores momentos de minha vida social,
profissional, política, cultural, cordial e afetuosa. Este título me
tem ajudado muito e tem constituido motivo de respeito e divulgação
de minha obra de escritor.
R — O passado, esta zona de tempo que é quase imodificável, pesa
sobre os seus ombros. Mudaria algo na sua história?
GMM — A única coisa que pesa sobre meus ombros são meus longos anos
de vida. Não permito que ninguém mude uma vírgula na história de meu
passado. Minha história pessoal é um patrimônio de que me orgulho. A
história de meu passado é uma história de honra pessoal, política,
moral e cultural, cuja memória é o melhor conforto de minha vida.
Nunca fui escravo ou servidor de ideologias, de quaisquer
ideologias. A ideologia é a impostura com que os tolos esterilizam
seu pensamento, sua inteligência e sua honra. Quem se rege por uma
ideologia, não tem idéias. A ideologia é a depravação maior do
pensamento e da inteligência, dos indigentes mentais ou dos
impostores que têm uma idéia única. A idéia única seca a fonte das
idéias. Por ter idéias e por abominar as ideologias, ainda este mês
fui homenageado num dos mais importantes centros universitários do
país, onde minha limpa verticalidade foi destacada sobretudo pelas
prisões que sofri nas duas ditaduras impostas a este país - a do
Estado Novo de Getúlio Vargas e a do governo militarista. Preso,
exilado e cassado em meu mandato de deputado federal por esta
última, na primeira delas fui condenado por decreto, isto mesmo, por
decreto, já que não havia qualquer lei que eu tivesse infringido, e
sem jamais comparecer à presença de um juiz, sem ter sequer um
processo formalizado. Condenado por decreto, juntamente com uma
centena de outros brasileiros, é um caso único na história do
direito ocidental.
Nunca fui condenado por uma lei ou por um Tribunal ordinário. Vivi a
fecunda experiência de seis anos de cárcere, num campo de
concentração da ditadura em Dois Rios, onde pude escrever meu
romance "O Valete de Espadas" e as dez elegias de "Cabo das
Tormentas", além de um diário que se publicará depois de minha
morte. Só não fiquei preso mais tempo, porque a ditadura foi
derrubada e minha prisão foi revogada por unanimidade pelo Supremo
Tribunal Federal, bem como a das outras cento e tantas vítimas.
Algumas insignificantes e desinformadas patrulhas ideológicas se
serviram desta monstruosa infâmia da ditadura, não sei se por
inveja, por torpe ressentimento, ou por burrice mesmo, para tentar
silenciar minha obra. Não o conseguiram. Não odeio esse tipo de
gente. Desprezo olimpicamente. Desprezo e ignoro. E acho que esse
pobres diabos carregam nos ombros — eles sim — o peso incômodo da
inveja e do ressentimento.
B – Como é sua relação com a imprensa?
GMM — Minha relação com a imprensa brasileira é excelente. Como
jornalista profissional, trabalhei em vários jornais e revistas. O
maior jornal em que trabalhei, e do qual ainda sou colaborador há
cerca de trinta anos, é a "FOLHA DE S. PAULO". Além das boas e
limpas relações profissionais, tenho merecido páginas inteiras de
críticas de minha obra em todos os grandes jornais do país, e tenho
freqüentado como colaborador as páginas mais nobres que quase todos
eles, no Rio, em S. Paulo e nos diversos Estados. Se eu quisesse,
publicaria artigos diariamente em vários deles. Mas não tenho tempo
e não tenho muita coisa a dizer. Acho que nenhum outro poeta
brasileiro recebeu, em quantidade e qualidade como eu, número tão
grande e tão respeitável de artigos sobre sua obra. Terão mais do
que eu resenhas, notícias, badalações. Artigos, ensaios, críticas
mesmo, nenhuma outra obra de escritor brasileiro terá recebido tão
generosamente como a minha. São mais de trezentos artigos guardados
nos arquivos de minha mulher. Injúrias? De vez em quando uma espuma
amarelada e suja, repetida e fatigada, uma provação, de resto, a que
estão sujeitos os homens públicos, os políticos, coisa que não sou
mais. Recebi na prisão da ditadura a visita do romancista Albert
Camus, que me disse: "saia deste negócio de política. Os poetas, os
artistas não têm que fazer a história. Têm apenas que sofrer a
história. Esses supostos poetas e escritores engajados em defesas
partidárias ou ideológicas, não escrevem poesia nem romance. Não
são poetas nem romancistas. São funcionários de partidos, e o que
apresentam como poesia ou como romance é apenas uma impostura. São
autores de panfletos, em prosa ou verso, mas apenas panfletos. E
panfletos ruins".
O Futuro
R — Wilsom Martins considera seu novo livro "Os Lusíadas"
brasileiro. Qual a sua opinião? Fale sobre seu novo livro?
GMM — Respeito muito a crítica e a dignidade de escritor do sr.
Wilson Martins. Não tenho a honra de conhecê-lo pessoalmente. Espero
ir em breve ao Paraná, e ali baterei à sua porta para cumprimenta-lo
e agradecer sua atenção com minha obra. O que posso dizer sobre meu
último livro é que está sendo traduzido em Paris e na Romênia, creio
que sairá também em espanhol e já corrigi as primeiras provas de uma
edição em Portugal.
R — O que vem por aí?
GMM — Não sei. Talvez o Apocalipse. Talvez mais uma novela ruim, de
televisão.
R — Quem é o novo poeta brasileiro? Em que mundo viverá?
GMM — Não sei.
Nordeste
R — Qual a explicação para o nordeste, uma região pobre
economicamente, ser tão rica culturalmente?
GMM — No Nordeste fundamos este país. Os governos da república
praticam um crime continuado contra o Nordeste. Como Unamuno dizia
"me duele España", a mim me dói o Nordeste. A minha terra.
R — Tem saudade de sua terra natal?
GMM — Saudade muita. Não concordo com a tese de que o
desenvolvimento cultural das pessoas esteja vinculado ao
desenvolvimento econômico. Nem das pessoas nem das regiões, nem das
épocas. Uma vez, ao meu lado, o Osvaldo Peralva perguntou ao
Gilberto Amado, que era um típico representante do humanismo
universal e também um cosmopolita, no bom sentido da palavra, em que
país desejaria ter nascido, se lhe tivesse sido dada a escolha: -
"em qualquer um, desde que em tempo de decadência". Os tolos, isto
é, os sociólogos e os que escrevem crítica sociológica, vinculam o
desenvolvimento industrial ao florescimento das letras e das artes.
Ora, é uma redonda e enfatuada burrice de escritores que se tornam
cortesãos e funcionários da burguesia capitalista. O capital, aliado
da tecnologia, sabe como produzir um bom médico, um bom engenheiro,
um bom automóvel. Mas não sabe produzir um poeta, um músico, um
pintor. Se fosse assim, as escolas e as fábricas de Tóquio, dos
Estados Unidos, da Alemanha e até de São Paulo e da Coréia estariam
produzindo Homeros, Shakespeares, Dantes, Rembrandts, Bachs e
Picassos. E não estão, não é? Os sociólogos, como ensinava meu
mestre Unamuno são os sujeitos que não sabem nada, e quando sabem,
sabem a posteriori. Os filósofos, os poetas, os artistas, como a
própria arte, não são fruto da civilização industrial. São mesmo, de
um modo geral, os marginais dessa civilização e desse tipo de
progresso, desse poder de produção de riqueza. Honro-me de ser um
marginal desse processo, como foram Homero e Dante, Hoelderlin e Van
Gogh, Rimbaud e Baudelaire, os grandes filósofos e os grandes
reitores do saber e do espírito.
Dessa saudade vivo e morro. Cada um de nós nasceu amarrado a seu
umbigo. A outra ponta do umbigo, do qual fomos cortados, é a nossa
terra. O homem grego, criação de Apolo Délfico, tinha seu umbigo em
Delfos. Era o "o òmphalós" do mundo , o umbigo do mundo. Para mim,
minha aldeia é minha pólis genesíaca, núcleo do meu DNA, meu umbigo
- "òmphalós". O nordeste é meu umbigo e por isto é o umbigo do
mundo, de meu mundo. "Òmphalos tes gés" - o umbigo da terra.
Internet
R — Desde de 1994, você vem tentando entrar na era da
informática. Infelizmente fizemos esta entrevista via fax. O que
falta para cair de vez nesta rede?
GMM — Não quero ser escravo dessa engenhoca diabólica. Tenho dois
equipamentos dela instalados em casa, com e-mail, com todas essas
coisas. Mas não tenho tempo para isso. Nunca ocupei meu e-mail e uso
o velho fax. Sirvo-me do computador apenas como uma máquina de
escrever de luxo e para ler diariamente alguns artigos de jornais
franceses, alemães, ingleses, espanhóis e italianos: artigos
culturais. Antes eu comprava estes jornais na esquina. Agora sai
mais barato e ocupa menos espaço físico. Pois leio e apago e só de
vez em quando imprimo para guardar algum artigo. Nem sequer sei
mexer no e-mail e no negócio do som.
R — Como vê a internet em comunhão com a poesia?
GMM — No tempo de Homero não havia internet.
Teoria e Afins
R — Ninguém mais lê teoria literária. É algo ultrapassado?
GMM — Um poeta não se rege por teorias literárias. Isto é coisa de
literatos e de literatura, não de poetas e da poesia. O que a poesia
pede ao poeta é que tenha um conhecimento profundo de cada letra e
de cada palavra, e com a letra e a palavra conheça os músculos, os
ossos, o pulmão e o sangue de sua língua. Mas é preciso distinguir a
língua da linguagem. A língua é o campo de trabalho da comunhão dos
homens. O poeta, o escritor, é aquele que inventa, não uma língua,
equívoco de Guimarães Rosa, mas uma linguagem. Lembro sempre Borges:
"minha língua é a língua de Góngora, Cervantes e Quevedo, mas minha
linguagem é a linguagem dos compadritos dos arrabaldes de Buenos
Aires." Pois assim minha língua: é a língua de Camões e de Vieira;
mas minha linguagem é a linguagem dos plantadores de cana e de
mandioca no pé-da-serra da Ibiapaba. O escritor que não tem sua
própria linguagem, sua linguagem crônica - telúrica e pessoal, não é
um escritor. Vira um acadêmico. E quando tenta forjar uma língua ou
mesmo uma linguagem artificial, também deixa de ser escritor e cai
na mediocridade do texto acadêmico. O texto acadêmico é o texto que
obedece a uma fôrma preestabelecida. Por exemplo: os concretistas.
Criaram um molde, uma fôrma, uma fórmula. Isto é: fazem exatamente o
que faz o acadêmico.
R — O que é necessário para o fênomeno poético?
GMM — A inocência, a graça de Deus. É preciso repetir sempre a
inocência da infância. Leia o ensaio de Heidegger — meu mestre —
sobre Hoelderlin e a essência da poesia. Aí você ficará sabendo o
que quer dizer inocência. O inocente é aquele ou aquilo que não é
nocivo - in-nocens. In-nocivo. É preciso não ser nocivo à palavra,
matéria-prima da poesia. E só não se é nocivo quando se expressa os
seres, as coisas, os lugares com uma palavra que é seu próprio nome.
Se eu chamar Manuel de cavalo, estou sendo nocivo à palavra, ao
nome, nocivo a Manuel e ao cavalo. Esta é a inocência da poesia. Não
confundir poesia com poema. A poesia não está em qualquer artefato
que se chama de poema. É preciso, para que o poema incorpore a
poesia, dar a cada palavra seu próprio som e ao texto sua própria
sintaxe. O lugar-comum desgastou as conexões vocabulares. Por isto,
a força e o segredo do poeta é saber, pronunciar, escrever a palavra
inesperada. As palavras já esperadas levam ao lugar-comum.
R — Com quantos conotativos e metáforas se faz um poema?
GMM — Com um único ou com milhões. É uma coisa infinita. E como na
matemática de Boole, o 1 pode valer tanto como os quilômetros de
algarismos que exprimem bilhões e zilhões.
R — Em sua poesia, que questão técnica lhe agrada mais?
GMM — A técnica de não fazer prosa. Não se deve vender prosa por
verso nem gato por lebre. O sopro rege a composição. O primeiro
autor de uma Gramática no mundo, Dionísio da Trácia, um século ou
dois antes de nossa era, chamava seu livro de "Techne"- a arte, a
arte da língua, e indicava o que devia ser a crítica da poesia: o
trato com o sopro.
R — Qual o poema seu que mais o personifica? E a sua obra?
GMM — Não sei. Isto implicaria em conhecer-me a mim mesmo, o "Gnoti
seauton" (conhece-te a ti mesmo), a inscrição suprema que está no
frontispício do templo délfico, cunhada pelo próprio Apolo e tomada
por Sócrates como a meta do saber. Talvez alguns textos em que mais
tentei este conhecimento estejam em meu romance "Dossiê da
Destruição".
Leia Gerardo Mello Mourão
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