Rodrigo de Souza Leão
Gilberto Mendonça Teles
Há pouco do que falar sobre esta entrevista com Gilberto Mendonça
Telles. Sempre digo que quem faz a entrevista é o entrevistado. O
entrevistador pode ter um repertório de perguntas incomum, estupendo
ou inaudito, mas, se o entrevistado não quiser, não há como faze-lo
escrever ou falar. É muito mais fácil ter uma boa entrevista com um
entrevistador medíocre do que com um entrevistado medíocre. Ambos
medíocres é o fim da picada.
Gilberto é grande figura da poesia brasileira. Figurinha carimbada.
De certo que é um dos grandes escritores goianos de todos os tempos.
Dono de uma capacidade de fazer sonetos estupenda e também militante
da poesia visual.
Esta entrevista foi publicada no Rascunho também - jornal do Paraná
que divulga literatura.
rsl - Como foi o primeiro contato com a literatura? Quais sensações
tinha ou tem ao lembrar da infância. Há algo especial, como quando
Marcel comia biscoitos, no Em Busca do Tempo Perdido, de Proust?
Escrever é lidar com o lúdico?
— O primeiro contato foi na escola primária, numa cidadezinha do
interior goiano. A partir do terceiro ano, comecei a me interessar
pelo livro de leitura, com muitos poemas infantis do famoso Poesias
Infantis, de Olavo Bilac. Vejo hoje, recolhendo emoções na
tranqüilidade, alguns elementos que devem ter concorrido para o meu
gosto pela Poesia. Coisas que eu percebia, como o anoitecer; ou que
eu era levado a sentir (pela guerra, pela propaganda do Estado Novo
ou por um sentimento inato de nacionalismo), como uma vaga idéia de
pátria; coisas que imaginava, como o bonde, ou que eu conhecia de
perto, como o rio, tudo isso vinha nos poemas que éramos obrigados a
ler na escola. E essa “obrigação” é importantíssima na formação do
gosto literário.
Vejo-me com nove anos, diante da professorinha que me mandava ler em
voz alta o poema “A Pátria”, de Bilac. Ouço-a me corrigindo a
pronúncia e ainda sinto a vergonha das suas correções diante da
turma, sobretudo diante de uma certa menina que me olhava de vez em
quando. Mas o que mais me agradava era algo mágico, indefinível, que
eu ia percebendo na música das palavras, possivelmente no ritmo que
ia descobrindo na leitura em voz alta de versos como “Ama com fé e
orgulho a terra em que nasceste!” ou “Esbraseia o Ocidente na agonia
/ O sol...”.
No alexandrino de Bilac, o encantamento tinha algo a ver com o
conteúdo do verso: o orgulho de haver nascido em Goiás de Pedro
Ludovico e no Brasil de Getúlio Vargas, tanto que, quando este
morreu, eu escrevi-lhe um soneto encomiástico, que aparece agora na
quarta edição de Hora Aberta (poemas reunidos). No decassílabo de
Raimundo Corrêa havia outra espécie de encantamento, melhor, de
enigma e de curiosidade. A ordem inversa e o enjambement me faziam
olhar várias vezes para o texto, tentando compreender porque o sol
vinha lá no fim, como se estivesse mesmo se pondo entre as nuvens
vermelhas dos céus de Goiás. E isso me agradava. Eu sabia o que era
brasa por causa das fogueiras de São João, mas não sabia bem o que
era Ocidente e aquele “na agonia o sol” me estimulava a imaginação.
Hoje vejo que a sucessão de vogais tônicas (eia, ente, ia e ol) deve
ter atuado como uma melopéia nos meus ouvidos e no meu espírito que
se ia abrindo para a linguagem e para a poesia.
Aos quatorze anos aprendi a metrificar, lendo Gonçalves Dias,
Álvares de Azevedo e Olavo Bilac. Começava a compreender o segredo
do ritmo na poesia. Era tão difícil no início que eu às vezes
passava uma semana para endireitar os versos de um poema. E devo ter
comido também os meus biscoitos, madeleines, roscas e pamonhas, pois
as imagens da infância me vêm nítidas, espontâneas sem precisar que
eu lute com le temps perdus. A única luta (ou lide) que se conta — e
que é também proustiana — é com o lúdico: apreendendo a brincar, a
jogar com as palavras, o homem aprende também a jogar com o mundo. E
é sem dúvida desse jogo que provém a poesia. A melhor poesia, pois
escrever é mesmo (como você pergunta afirmando) lidar com o lúdico,
com a alegria, com a vida. Todo poeta é também um opó-rapá-cupu-lopó
alguém que saiba brincar com a linguagem para descobrir / revelar o
outro lado das coisas.
rsl - Dizem que livros são como filhos, gosta-se igualmente de
todos. Há algum (livro de sua autoria) predileto?
— Pode ser, mas não deixa de haver preferência por um (filho),
incompatibilidade com outro e até compaixão por um terceiro. Se a
palavra gostar pode sintetizar essas diversidades, muito bem. Com os
livros se passa de maneira análoga, mas com uma diferença
fundamental: à medida que vão sendo publicados vai-se formando na
cabeça do autor uma [auto]consciência crítica sobre o valor deles, a
não ser que se trate de um escritor cabotino, para o qual tudo é
obra-prima... Nas duas linhas de minha produção — de poesia e de
crítica — há alguns livros por que tenho maior simpatia. Talvez
porque sofri mais a sua escritura ou ela se deu numa época mais
difícil, tanto para o homem como para o escritor. Ou quem sabe a
consciência crítica se dá melhor com a sua “estrutura”, com os seus
temas, com o seu título, etc. É neste sentido que, como poeta, gosto
de livros como Planície (1958), Pássaro de Pedra (1962), Sintaxe
Invisível (1967), A Raiz da Fala (1972), Arte de Armar (1977),
Plural de Nuvens (1984) e o recente Álibis (2000). Creio que eles
são pontos sustenidos na minha série de poesia, o que não impede de
achar que Plural de Nuvens seja talvez o meu predileto. Quanto à
linha de crítica, há livros como A Poesia em Goiás, de 1964, que
representa o meu primeiro grande esforço de pesquisa e de pensamento
crítico; o Drummond — A Estilística da Repetição (1970), análise
aprofundada de um recurso estilístico [4ª edição]; Vanguarda
Européia e Modernismo Brasileiro [17ª edição], o que mais me rende
em direitos autorais; Camões e a Poesia Brasileira [1973], cuja 4ª
edição acaba de sair em Portugal; e, ainda, Retórica do Silêncio
(1979) e A Escrituração da Escrita (1996). São livros de que gosto,
onde exprimi meu conhecimento de cultura literária. Acho que o
predileto pode ser A Escrituração da Escrita, no qual me sinto
maduro e à vontade, a ponto de contornar os cacoetes da linguagem
universitária.
rsl - Para o texto ser revolucionário, deve haver conteúdo e forma
revolucionários, ou com apenas um dos ingredientes, a revolução pode
ser feita? Existe novidade hoje em dia?
— Um dia me dei conta (na Retórica do Silêncio) de que há duas
espécies básicas de vanguarda: uma, que se diz e se quer
revolucionária, que faz manifestos e que vem por fora da literatura
estabelecida e que eu chamei de provocante, pregando a destruição e
anunciando uma literatura nova, que não se sabe bem como é; e outra,
natural e por dentro da linguagem literária. A primeira se refere a
movimentos como o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo e o
concretismo brasileiro; e a segunda se aplica a todos os poetas como
Bandeira, Oswaldo, Drummond e Cabral, os quais foram vanguardistas
no sentido de que tiveram ousadia, originalidade e virtuosidade na
produção de seus poemas, na criação de sua poesia, isto é,
conheceram a fundo a sua arte/ciência de fazer versos.
Depois desta “introdução”, pego a sua pergunta e junto “conteúdo e
forma” num só termo — forma —, sem pensar em separá-los. Quando
Maiacoviski disse que “sem forma revolucionária não há arte
revolucionária”, ele não está separando forma de conteúdo, pois ele
sabia (ou intuía) que na linguagem tudo é forma. Há, portanto, uma
forma do conteúdo e uma forma da forma: esta se manifesta, aquela
fica latente, mas de tal maneira que uma alteração numa repercute na
outra. Por exemplo: é muito difícil que num soneto, poema fechado
nos seus catorzes versos, se possa exprimir o sentido revolucionário
das duas formas de vanguarda. A forma da forma não encontra
liberdade para expressar a forma do conteúdo novo, literário, social
ou político. Não sei se ficou claro, mas é assim que penso.
No meu livro A Escrituração da Escrita (Vozes, 1996), no capítulo “O
Processo da Moderna Poesia Brasileira”, faço uma síntese dos
procedimentos da “Nova Vanguarda Européia”, citando, dentre outros,
os seguintes movimentos: o poema visual, o sonoro ou fonético, o
multidimensional, o semântico, enfim, uma série de recursos de que
se valem para vender um produto poético (ou não) como novo. Todo
tipo de apelação possível e impossível. Aparentemente, novidades.
rsl - Você tem a versatilidade dos tempos pós-modernos. Escreve
poemas concretos, metrificados, sonetos, verso livre? O poeta é um
camaleão?
— Acho que a sua pergunta atinge aqui a força de uma bela definição
teórica: ser pós-moderno é misturar tudo, mas sem eliminar a
autonomia de cada forma poética. É o camaleão brincando de poeta e
lambendo as astúcias miméticas de Aristóteles. Ou do Teles, que
mantém a tradição do aristos [aristoz], isto é, de querer o melhor,
o excelente. Se essa mistura é mesmo pós-moderna, estou feliz. No
Brasil o “pós-moderno” foi uma onda que passou pela universidade,
arrastando todos os que só vivem do novo: ser inteligente é citar o
último tango de Paris... Aliás, estou falando de barriga cheia, pois
um professor da UFRJ, num livro sobre épica, estudou a minha
Saciologia Goiana como épica pós-moderna. Nunca tinha pensado nisto.
Mas concordei com ele: o meu livro era mesmo uma mistura de todas as
formas e movimentos literários.
Penso, entretanto, que não escrevo poema concreto coisa alguma:
escrevo poema visual, que é outra coisa. Tanto que os concretos se
valeram dos poemas visuais, que são tão antigos como a escrita.
Veja-se o livro de José Fernandes, O Poema Visual, publicado pela
Vozes, creio que em 1996. A minha “versatilidade” (pena que não é
versutilidade) me faz ser ou pretender ser um “camaleão”: daí a
minha língua comprida, língua de sogra / língua de sabre / língua de
sobra / língua demais [...] a língua oca / que pende langue / do céu
da boca.
rsl - Você é angustiado por alguma influência?
— Li o livro de Harold Bloom (The Anxiety of Influence / A Theory of
Poetry), quando trabalhei como professor na Universidade de Chicago,
no fim da década de 1980, depois de haver escrito A Retórica do
Silêncio, que é de 1979 (Cultrix) e possui um subcapítulo denominado
“A Influência”. É claro que já sabia do nome do autor mas ainda não
o havia lido, embora o seu livro tenha saído em 1973. Como a sua
pergunta intertextualiza o título do crítico norte-americano, vi-me
na obrigação de citar a sua obra, antes de tocar no problema da
“influência”. Levantei a história desse termo e terminei o meu
estudo dizendo que, hoje, em face de uma obra com que o espírito do
escritor encontra identificação estética, “o novo escritor, em vez
de imitar, como nos tempos clássicos, procura conscientemente
atualizar os elementos que lhe parecem importantes na estruturação
de sua obra. Mas não resta dúvida de que à margem de sua consciência
fluem imagens, construções estilísticas e até traços do assunto de
obras literárias que o tenham impressionado. Mas sempre de maneira
parcial, nunca total. Senão seria o plágio”.
Agora, pessoalmente posso dizer que tenho algumas influências
palpáveis na minha poesia, possivelmente nesta ordem: Bilac, Cruz e
Sousa, Raul de Leôni, Paulo Bonfim, Bandeira, Mário de Andrade,
Drummond, João Cabral e Lêdo Ivo. Na poesia brasileira, são os
autores que mais leio. De fora, devo consciente a Lorca, Jorge
Guillén, Vicente Aleixandre, Reverdy, Aragon e mais proximamente
Raymond Queneau. Nunca o havia lido, mas um crítico brasileiro,
também romancista e tradutor, me disse: Puxa! Como a sua poesia se
parece com a de Queneau. Achei graça, mas na primeira viagem a Paris
saí procurando obras de Queneau. Hoje penso que ele devia ler bem
português e acabou me descobrindo...
rsl - Harold Bloon aponta Shakespeare como o inventor da
modernidade. Concorda?
— No Jornal do Brasil (Idéias), de 2 de setembro do ano passado,
falo do Shakespeare: a invenção do humano, de Harold Bloon, como o
livro mais importante que eu estava lendo. A tese central do crítico
norte-americano é a de que Shakespeare “nos explica” porque “nos
inventou”. Ele é o “inventor do humano” e não, como você está
dizendo, “da modernidade”. A não ser que o “humano” tenha aí algo de
“humanismo” e, portanto, de modernidade avant la lettre. Para Bloon,
a arte de Shakespeare é tão infinita que nos contém e há de
continuar abraçando os que vierem depois de nós. “As [suas] peças
nos lêem de maneira definitiva”. E não é à toa, portanto, que
“Depois de Jesus, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente”.
rsl - Walter Benjamin erra quando hierarquiza a arte dizendo que o
cinema é a maior delas?
— Acho que sim, que erra. A começar com a comparação entre as artes.
Cada uma tem sua matéria própria, sua forma específica e seu
universo especial. Destacar uma em detrimento da outra não me parece
metodologicamente correto. No seu conhecido artigo “A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica” [estou citado pela tradução
francesa da Denoël, de 1971], Benjamin diz que pela primeira vez — e
isto no cinema — “o homem deve agir, com toda a sua personalidade
viva e segura, e entretanto privada da aura. Porque sua aura depende
do seu aqui e agora. Ela não sofre nenhuma reprodução”. Compara
depois o cinema ao esporte e diz que nos dois casos os espectadores
são semiconhecedores e chega à conclusão, aliás verdadeira, de que o
desenrolar de um filme “fornece um espetáculo que não se teria
jamais podido imaginar no pasado”. Enfim, coloca o cinema como uma
super-arte, em vez de vê-la como uma reunião de artes, cada uma com
a sua característica, mas concorrendo todas para um sentido coletivo
que tem no movimento o seu ponto culminante.
rsl - Com quantas metáforas se faz um poema?
— Eu poderia começar citando uma estrofe do meu poema “Na língua do
povo” (de Álibis), onde digo que Que tudo começa em mim. Até o caos
de outro universo com estrofe e rima.
E eu quero te mostrar com quantos paus
se faz um bote com mulher por cima.
Um poema pode se fazer sem nenhuma metáfora e sem nenhuma figura:
pode ser apenas o registro lingüístico de um momento, de um fato,
como em alguns poemas de Bandeira. Houve até quem falasse em
antimetáfora nesses casos. O problema maior é achar que metáfora é
qualquer figura ou a figura dominante. Os dois lados do signo,
significante e significado, criam dois planos no discurso: o da
“expressão” e o do conteúdo” e cada um deles gera uma cadeia de
imagens que vão num crescente, por um lado, do nível do fonema ao da
sílaba, ao da palavra, ao da frase, ao da oração e finalmente ao do
discurso em si; e, por outro lado, do nível do sema ao da raiz, ao
do semema e às signmificações da palavra, da frase e do discurso.
Daí as famílias de figuras — os metaplasmos, as metataxes; os
metassememas e os metalogismos. Isto pode ser visto claramente na
p.24 do meu livro A Escrituração Escrita, citado acima. Ao pé da
letra, não se pode dizer que o poema é como uma metáfora, pois esta
figura se dá no nível da palavra, no seu plano de conteúdo, no dos
metassememas. Não metáfora de frases: a figura aí ganha outro nove,
alegoria, por exemplo. Todo professor analfabeto em poesia diz que o
poema é uma “vasta metáfora”. Burrice. Mas a sua pergunta é quanto
ao número de metáforas num poema. Quanto mais melhor, mas o acúmulo
delas pode levar ao hermetismo, à obscuridade, uma vez que o ritmo
do poema perde o seu fundo de realidade convencional (o cotidiano)
para apontar com mais insistência no sentido da abstração. O certo é
o equilíbrio, a dosagem certa que só o tempo e muito exercício de
escrita nos acaba ensinando.
rsl - Quem é o escritor brasileiro?
— É como qualquer escritor em qualquer país do mundo. É muito raro
que ele seja somente escritor. É sempre uma mistura de médico e
poeta, advogado e romancista, professor e crítico. Enfim, um sujeito
que estuda pouco a sua arte, pois tem de estudar a sua profissão
para sobreviver. Isto é o comum. Mas é também um sujeito, no Brasil
e no exterior, que tem de lutar para aprender a escrever, para
escrever, para publicar, para distribuir o seu livro, para obter
reconhecimento e para receber o pouco que lhe toca de direito
autoral. Mas ele possui ainda a “aura”, a sua arte de poesia ou
prosa não a perdeu não. E é ela que lhe dá uma espécie de salário
indireto, de estima e de admiração que acaba lhe rendendo alguns
trocados.
rsl - Qual uso faz da internet?
— Muito pouco. Gosto imenso do computador: ele adiantou minha vida
útil em mais de dez anos. Gosto também do e-mail, mas não gosto da
maioria das coisas que me mandam. Acho que quando passar esta fase
de “instalação”, quando ele se tornar normal e perder um pouco do
seu ar de burguês, o seu uso se disciplinará automaticamente e se
tornará o que já é: um notável meio de comunicação. Não tenho muito
tempo e paciência com a internet. Mas visito de vez em quando algum
site.
rsl - Como é o seu trabalho acadêmico?
— Sou professor universitário desde 1958. Há trinta anos trabalho na
PUC-Rio. Sou professor titular e leciono literatura brasileira e
teoria literária. Já lecionei no Uruguai, em Portugal, na França
(duas universidades), nos Estados Unidos (Chicago) e na Espanha (Salamanca).
Pelo meu Curriculum Vitae, que vai anexo a seu pedido, pode-se
documentar outras coisas, como antologias de poemas meus no
estrangeiro. Gosto de dar aula, mas me irrita o aluno que não sabe e
dá a entender que sabe, sobretudo nos cursos de pós-graduação. Nunca
deixo de preparar as minhas aulas. Como escrevo muito (estou falando
de crítica literária), meus cursos têm sido leitura e debates de
artigos meus. Claro, e leitura de textos literários, nunca meus. Sou
pontual e exijo a pontualidade.
rsl - O livro acaba? O desmatamento também?
— Em A Escrituração da Escrita trato do mito da morte da poesia, do
romance, do livro. É um mito antigo. Quando Jesus nasceu se ouviu
numa das margens do Mediterrâneo a voz que dizia que o Grande Pã
morreu, como se toda a cultura antiga fosse desaparecer. Mas o
interessante é que algo realmente mudou, mas não morreu. Tudo
continua vivo. Logo que passar a moda do computador, da internet,
etc. vai-se ver que o livro continuará vivo, ocupando o seu espaço.
Se o governo ajudar, o desmatamento vai acabar mesmo. Por que você
não passa para o seu site o meu poema “O Matro Grosso Goiano”, de
Saciologia Goiana, um poema visual que mostra o desmastamento e o
critica. Se não puder encontrá-lo, me diga, por favor.
rsl - Qual epígrafe personifica você e sua obra?
— Vou juntar duas numa só, para responder. A primeira, uma epígrafe
que tirei de Raymond Queneau, do livro L’Instant Fatal. Aí se diz,
num poema, que “ça a toujours kékchose déxtreme / un poème”. A
segunda, tirei do livro Lettres en Folie, de A. Duchesne e Th.
Leguay. E diz simplesmente isso: “En nous incitant à jouer avec eux
les mots nous invite à juer avec le monde”. A primeira é a prática
da segunda e ambas nos põem no sentido do ludismo: brincar ou jogar
com as palavras, com a linguagem. A primeira abre o livro L’Animal,
publicado em Paris, numa edição bilíngüe, em 1990; a segunda abre o
Álibis, do ano passado. Elas personificam a minha concepção de
poesia, percebida por alguns críticos, como Paulo Rónai e como
Péricles Eugênio da Silva Ramos que escreveu o seguinte na Revista
de Poesia e Crítica, de 1985:
Duas coisas chamam a atenção, liminarmente, neste Plural de Nuvens
de Gilberto Mendonça Teles: em primeiro lugar, mostra-se com toda a
clareza o virtuose do verso [...]. E tudo isso casado com estilo por
vezes sério, mas freqüentemente lúdico ou zombeteiro: Tudo o que
escrevo / tem algo de travesso — assevera Mendonça Teles. [...] A
faceta bem humorada do poeta e o modo como a lapida situam-no em
posto perfeitamente dele, pessoal, inconfundível, apesar das raízes
longínquas que possa ter de escassos mestres. Na verdade, ninguém
desenvolveu, como ele, em nossa poesia moderna, essa feição alegre,
foliona, mas completamente destituída de ferrão, satírico ou mordaz,
de qualquer ofensa ou maldade. O poeta brinca, como escrevia Mário
de Andrade transcrevendo Pallazeschi: Lasciatemi divertire! E,
brincando ou divertindo-se, realiza-se numa poesia de presença
marcante. Plural de Nuvens não é livro que possa passar sem que se
assinale seu lugar de realce em nossa poesia: chega a redmi-la de
torrenciais mesmices e da obnubilação dos que pensam que cantam, mas
na verdade coaxam.
Aliás, o humor constitui o tema da dissertação de mestrado de
Marília Núbile, A Carnavalização na Poesia (Estudo da poesia de
Gilberto Mendonça Teles), defendida na Universidade Federal de Goiás
e publicada pela Universo em 1998.
rsl - O papel do escritor na sociedade é ser, como diria Erza Pound,
antena da raça?
— É coisa demais, Seomario; prefiro brincar por agora e responder
com um poema que está em Plural de Nuvens. Mas diria antes que o
papel do escritor, a sua função social, é escrever e, assim,
descrever com a sua observação e com a sua imaginação tudo o que lhe
parece “escrevível”, revelar o irrevelado, mostrar o invisível do
visível. Captar, com a antena da raça ou da roça, a sua maneira
especial de ver a vida e o mundo. Mas veja o meu poema brincalhão:
TEATRO DE ARENA
Estou desempenhando o meu papel-
carbono: aqui está o seu nome
como uma tatuagem no meu peito.
Aqui, o acetinado para as suas mãos
e o aéreo para uma viagem clandestina.
Já fui como um papel almaço
muito bem pautado e com margens
para as emendas e correções.
Amanhã serei algum papel de embrulho
se não for um desses papéis de oficio
com timbre e protocolo para comunicar
oficialmente a seu marido
que entrei em gozo de férias
ou de licença-prêmio com você.
Hoje eu sei me transformar
nos papéis mais difíceis:
ser bufão como um papel bouffant,
faminto como um papel de arroz,
discreto como um papel de alcova,
fino como um papel de linha,
sensual como um papel de rolo
para as nossas abluções.
Mas também um autêntico linha-d’água
só para ver você na contraluz.
Já representei papéis estrangeiros:
China, Índia, Holanda, Japão.
Você pode fazer de mim o seu correio,
o seu papel-moeda ou papelão.
Quando você me receber, não me olhe de soslaio,
apesar de ser muito bonita esta palavra.
Me olhe de banda, que é a coisa mais linda,
e me guarde no bolso da calça, bem em cima
daquele sinal na coxa esquerda.
Depois, antes que alguma coisa aconteça,
me tire da cabeça.
Um dia,
quando a roupa voltar da tinturaria
e este poema perder seu significado,
você me encontrará todo enrugado:
—Que papel será este? E por capricho
me deitará no lixo.
Leia Gilberto
Mendonça Teles
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