Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Raul de Leôni


 

Cristianismo


Sonho um cristianismo singular
Cheio de amor divino e de prazer humano;
O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,
A beatitude com mais luz e com mais ar...

 

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,
Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano.
Num misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida e azul de um lago italiano...

 

Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos lírios.
Temperado na graça natural...

 

Cristianismo de bom humor, que não existe,
Onde a Tristeza fosse um pecado venial,
Onde a Virtude não precisasse ser triste...


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1928). Poema integrante da série Poemas Inacabados.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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De um fantasma


Na minha vida fluida de fantasma
Sou tão leve que quase nem me sinto.
Nem há nada mais leve nem tão leve.
Sou mais leve do que a euforia de um anjo,
Mais leve do que a sombra de uma sombra
Refletida no espelho da Ilusão.

 

Nenhuma brutal lei do Universo sensível
Atua e pesa e nem de longe influi
Sobre o meu ser vago, difuso, esquivo
E no éter sereníssimo flutuo
Com a doce sutileza imponderável
De uma essência ideal que se volatiza...

 

Passo através das cousas mais sensíveis
E as cousas que atravesso nem se sentem,
Porque na minha plástica sutil
Tenho a delicadeza transcendente
Da luz, que flui través os corpos transparentes.
Sou quase imaterial como uma idéia...

 

E da matéria cósmica que tem
Tantos e variadíssimos estados
Eu sou o estado-alma, quer dizer
O último estado rarefeito, o estado ideal:
Alma, o estado divino da matéria!...


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1928). Poema integrante da série Poemas Inacabados.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Decadência


Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

 

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

 

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

 

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1928). Poema integrante da série Poemas Inacabados.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Ironia!


Ironia! Ironia!
Minha consolação! Minha filosofia!
Imponderável máscara discreta
Dessa infinita dúvida secreta,
Que é a tragédia recôndita do ser!
Muita gente não te há de compreender
E dirá que és renúncia e covardia!
Ironia! Ironia!
És a minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito, sorrindo!
O pudor da Razão diante da Vida!


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1922). Poema integrante da série Felicidade.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Raul de Leôni


 

Para a vertigem!


Alma em teu delirante desalinho,
Crês que te moves espontaneamente,
Quando és na Vida um simples rodamoinho,
Formado dos encontros da torrente!

 

Moves-te porque ficas no caminho
Por onde as cousas passam, diariamente:
Não é o Moinho que anda, é a água corrente
Que faz, passando, circular o Moinho...

 

Por isso, deves sempre conservar-te
Nas confluências do Mundo errante e vário.
Entre forças que vem de toda parte.

 

Do contrário, serás, no isolamento,
A espiral, cujo giro imaginário
É apenas a Ilusão do Movimento!...


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1922). Poema integrante da série Felicidade.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959
 

 

 

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Raul de Leôni


 

Pórtico


Alma de origem ática, pagã,
Nascida sob aquele firmamento
Que azulou as divinas epopéias,
Sou irmão de Epicuro e de Renan,
Tenho o prazer sutil do pensamento
E a serena elegância das idéias...

 

Há no meu ser crepúsculos e auroras,
Todas as seleções do gênio ariano,
E a minha sombra amável e macia
Passa na fuga universal das horas,
Colhendo as flores do destino humano
Nos jardins atenienses da Ironia...

 

(...)

 

Meu pensamento livre, que se achega
De ideologias claras e espontâneas,
É uma suavíssima cidade grega,
Cuja memória
É uma visão esplêndida na história
Das civilizações mediterrâneas.

 

Cidade da Ironia e da Beleza,
Fica na dobra azul de um golfo pensativo,
Entre cintas de praias cristalinas,
Rasgando iluminuras de colinas,
Com a graça ornamental de um cromo vivo:
Banham-na antigas águas delirantes,
Azuis, caleidoscópicas, amenas,
Onde se espelha, em refrações distantes,
O vulto panorâmico de Atenas...

 

Entre os deuses e Sócrates assoma
E envolve na amplitude do seu gênio
Toda a grandeza grega a que remonto;
Da Hélade dos heróis ao fim de Roma,
Das cidades ilustres do Tirreno
Ao mistério das ilhas do Helesponto...

 

Cidade de virtudes indulgentes,
Filha da Natureza e da Razão,
— Já eivada da luxúria oriental, —
Ela sorri ao Bem, não crê no Mal,
Confia na verdade da Ilusão
E vive na volúpia e na sabedoria,
Brincando com as idéias e com as formas...

 

(...)

 

Revendo-se num século submerso.
Meu pensamento, sempre muito humano,
É uma cidade grega decadente,
Do tempo de Luciano,
Que, gloriosa e serena,
Sorrindo da palavra nazarena,
Foi desaparecendo lentamente,
No mais suave crepúsculo das coisas...


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1922). Poema integrante da série Luz Mediterrânea.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Raul de Leôni


 

Pudor


Quando fores sentindo que o fulgor
Do teu Ser se corrompe e a adolescência
Do teu gênio desmaia e perde a cor,
Entre penumbras e deliquescência,

 

Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!

 

Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver

 

E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer...


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1922). Poema integrante da série Felicidade.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959
 

 

 

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Unidade


Deitando os olhos sobre a perspectiva
Das cousas, surpreendo em cada qual
Uma simples imagem fugitiva
Da infinita harmonia universal

 

Uma revelação vaga e parcial
De tudo existe em cada coisa viva:
Na corrente do Bem ou na do Mal
Tudo tem uma vida evocativa.

 

Nada é inútil; dos homens aos insetos
Vão-se estendendo todos os aspectos
Que a idéia da existência pode ter;

 

E o que deslumbra o olhar é perceber
Em todos esses seres incompletos
A completa noção de um mesmo ser...


Publicado no livro Luz Mediterrânea (1922). Poema integrante da série Felicidade.
In: LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Pref. Rodrigo Mello Franco de Andrade. 10.ed. São Paulo: Liv. Martins, 1959

 

 

 

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