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Raymundo Netto


 


Uma baladeira para escrever um poema

 


José Netto (escritor e poeta cearense)

 

O seu rosto é a mais pura impaciência. Certo, sei que a frase não é lá muita coisa. Eu também não. Me arruma um cigarro? Não meu caro, dinheiro é coisa que eu queria possuir, mas perdoe-me, acho que ele não gosta lá muito de mim: de tanto ouvir falar de grana, quase perdi minha poesia. Quase meu velho. Eu disse, quase. Não, na verdade não gosto de arrotá-la por aí. Tudo tem sua hora. Queria mesmo era devorar todos os livros como quem transa ou uma baladeira para que saiba você escrever um poema de Pássaro. Ainda não entendeu? Não, não sou um terrorista. Sei da subida, com tudo vou subindo sem o menor medo da queda. Sou completamente doido. Escritor, poeta, são sinônimos que massageiam o espírito dos que querem um lugar ao sol. Merda! Queria dizer esse nome toda vida que vejo aquela coruja velha, bem velha e corcunda, sentada sobre minha fotografia 3X4. Quando eu acordar vou xingá-la de burra. Tu não passas de uma estátua. Cuidado com o poema dos pombos. Creio que de tanto, meu caro, você cultuar a Padaria Espiritual, o pão já azedou. Antônio Sales deu dez voltas no caixão. Essa é a nova maneira de vaiar o sol. Calma não estou escrevendo com raiva. Rir é a melhor maneira de escrever. Não! Não gosto muito de Neruda. Penso que todo exagero na palavra amor é um princípio de ódio. Quero um horizonte bem calmo e menos metafísico. Vê se não me impregna. Detesto falar de Sócrates em época de copa. Vamos indo. Caminhemos de mãos dadas. Espero que Drummond não te escute. E se escutar? Bom, que nos abrace com seu verso de cristal:

"Não recomponhas
tua sepultura e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era."

 

O quê? Eu sou um cara o quê? Não, toda palavra escrita às avessas tem cheiro de amor e se chama ficção. Já sei. É o seu aniversário. Parabéns para você meu caro cronista. A melhor coisa daquela tarde de velazinhas foi ver uma máscara interpretar 20 vezes uma vovozinha a beira da loucura esperando por Moacir e Dante. O que penso eu da política do país? Um solo de piano será sempre, para confortar os corações, da esquerda para direita: a esquerda fazia um solo vermelho e arrogante, a direita quer impeachment. Calma, eu sei que digo um amontoado de coisas confusas, ridículas. Mas se são coisas ridículas e confusas é porque é assim que sol bate à minha porta e é assim que me sinto feliz. O quê? O que é o poema pra mim? Nem ligo pra ele, quando digo que "ando noites procurando versos pelo chão/ rebuscando no mar estrelas de papel" é por que eu não o procuro, ele é impertinente, um velho egoísta (tenho dito) que sempre me pega pelo pé quando estou de cabeça baixa. Mas te pergunto: você já viu um menino com fome gritando versos em um prato vazio?

É! A poesia pode ser tudo até mesmo um prato vazio. É isso mesmo, enquanto uns riem outros choram.
 


 

 

 


 

30/05/2006