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Ronaldo Costa Fernandes




O Ciúme e o Nouveau-Roman, de Alain Robbe-Grillet



 

Potencializando a estética realista, promovendo ao máximo o realismo – ou uma das noções de realismo - , o movimento do nouveau roman pode levar a que se acredite que haveria a possibilidade de descarnar a narrativa de qualquer subjetividade, sem levar em conta que a própria linguagem está contaminada de subjetividade, um labirinto do qual ninguém que escreve está fora dele. O próprio Robbe-Grillet, em crítica de 1961, justamente respondendo a esse tipo de acusação, já registrava:

“É Deus quem pretende ser objetivo. Enquanto que nos livros, ao contrário, é um homem que vê, que sente, que imagina, um homem situado no espaço e no tempo, condicionado por suas paixões, um homem como você e eu. E o livro só tem relação com a experiência, limitada, incerta.”[1]

Basta também observar logo no início do romance O ciúme quando o narrador utiliza a expressão sem dúvida numa das suas longas descrições. Adjetivo, advérbio – nada adjetiva tanto quanto o advérbio porque não dá qualidade a coisas mas dá interpretação à ação – e tantos outros usos da língua vão fazer com que a narrativa fique pejada de olhares pessoais e diferenciadores.

“Ela dá alguns passos no quarto e aproxima-se da pesada cômoda, cuja gaveta superior abre. Mexe nos papéis, na parte direita da gaveta, inclina-se e, para ver melhor o fundo, puxa-a um pouco mais em sua direção. Depois de procurar novamente, ela se ergue e fica imóvel, os cotovelos junto do corpo, os antebraços dobrados e escondidos pelo busto - segurando sem dúvida uma folha de papel nas mãos ( grifo nosso ).” (pg. 10)

Outros usos irão mostrar este homem que vê e sente subjetivamente. Entre vários exemplos, podemos selecionar o uso do verbo parecer, do verbo dever ( no sentido de parecer ), a utilização do comparativo como, a indefinição do narrador quanto à temporalidade, a adjetivação interpretativa e a observação à maneira convencional. Vejamos, em ordem de apresentação acima nomeada:

“A voz de Franck continua a contar os problemas do dia em sua fazenda. A.... parece interessar-se. Estimula-o de tempos e tempos com algumas palavras que mostram sua atenção. Num momento de silêncio, ouve-se o ruído de um copo colocado sobre a mesinha.” ( pg. 13 )

“Ela fez um coque baixo, cujas mexas hábeis parecem estar a ponto de desmanchar; alguns grampos escondidos devem, porém, segurá-lo com mais firmeza do que parece.” ( pg.27 )

“Depois de alguns minutos - ou talvez segundos - continuam ambos na mesma posição. O rosto de Franck, bem como todo o seu corpo, parecem imobilizados.” ( pg. 28 )

“Ele sorri, por sua vez. Depois, lentamente, o sorriso se transforma numa espécie de esgar. Ela, em compensação, conserva seu ar de serenidade divertida.” ( pg. 51 ) ( Todos os grifos são nossos )

Uma reação ao romance de pensamento, principalmente ao romance sartreano ou camuseano que tinha uma idéia ( o existencialismo ) a mover os personagens, o nouveau roman é também uma conseqüência do niilismo, desesperança, crise social e crise da linguagem, daquela mesma linguagem que poderia levar à construção de um mundo melhor ou à barbárie de justificar um genocídio. É a linguagem que cria o mundo. Se a linguagem podia matar, o melhor seria uma linguagem neutra e literária que colocasse a literatura fora do espaço comum e perigoso dos jogos de linguagem da sociedade. Por trás do nouveau roman também está a linhagem da literatura realista que vem mesmo antes de Flaubert, afirma-se no século XIX, e penetra no século vinte com um vigor desconcertante. Misturado ao marxismo e aos novos conhecimentos da psique, o romance tomaria ares de documento. Discutível documento, já que até mesmo o texto histórico, documental, é visto hoje como uma ficção, uma versão da história ou, na melhor das hipóteses, mais um texto. Michel Butor – e é interessante que Butor seja citado justamente nesta observação sobre Joyce, porque Butor é um dos papas do nouveau roman - aponta para um realismo no século XX que estaria mais próximo da unidade aristotélica de tempo e espaço e que torna “Ulisses o representante maior do realismo já que tenta registrar realisticamente as vinte quatro horas de um burguês em Dublin”[2]. Um realismo mental, o fluxo de consciência seria a tentativa realista de fotografar a mente humana.

Por certo Butor fugiu desse realismo de Joyce que o levaria a outras experiências formais diferentes do rigor cartesiano do nouveau roman. Parecia que o nouveau roman queria declarar era o fim das experiências formais com a palavra em si, o abismo em que havia caído a linguagem joyceana, mas o mesmo Robbe-Grillet afirmava ser o movimento dele uma continuação do passado, “a evolução não parou de se acentuar ( ... ), longe de fazer tabula rasa do passado, é em nome dos predecessores que nós estamos de acordo e nossa ambição é somente de continuá-los”.[3]

De qualquer modo, o nouveau roman se aproximaria mais do teatro do absurdo de Ionesco ou de Beckett, onde as palavras haviam perdido tanto o sentido que tinham que ser repetidas ou, num diálogo, cada um monologava sua história particular, a linguagem então, desfeita de seu propósito de aproximação, isolava o personagem.

O discurso se faz no tempo, na História – não se pode negar que o nouveau roman correspondia à sua época. E que respondia a uma angústia de uma linhagem narrativa que estava se esgotando. ( Embora até hoje existam herdeiros do nouveau roman sob uma capa pós-modernista e de uma pretensiosa literatura do olhar que redutoramente é filha direta das experiências francesas de Butor e Robbe-Grillet, talvez muito possivelmente através do cinema, já que o último escritor também é cineasta ou teve seus livros filmados como o Ano passado em Marienbad).

O nouveau roman vai se opor frontalmente à produção da literatura que chamo dos fabulistas. A literatura dos fabulistas é aquela literatura que está mais próxima do fantástico, do mágico e do surreal. Não pertence propriamente às vanguardas do século XX. Pelo contrário, está aí há muito tempo. Não é apenas Kafka e Orwell mas Cervantes, Defoe, Swift, Rabelais e dezenas de outros. O nouveau roman pertence à família da literatura da Razão: Balzac, Stendhal, Laclos, Flaubert, Champfleury e Zola, também entre inúmeros outros. Não é apenas a oposição entre literatura barroca, medieval ou romântica versus a literatura de análise comportamental ou psicológica ou ainda de conflitos sociais. Trata-se de uma visão de mundo através da linguagem e da imaginação, da criação romanesca através do personagem e trama exorbitados em contraposição à contenção e à idéia da literatura como documento.

Muitos argumentariam que o nouveau roman é a expressão de um cansaço do racionalismo europeu, os últimos suspiros de uma conduta cartesiana ao mesmo tempo que procurava anular esse passado de pensamento, de razão, de concepção fina e intelectual do mundo através de uma nadificação da narrativa. O espaço do nada não é o espaço do vazio ou do espaço do zero. O espaço do nada é o espaço da ausência: ausência de interpretação. Ao não interpretar, o romancista passa a ser apenas um espectador que não julga. Como uma foto não fala, não se move, não expressa uma história. No máximo, a foto terá movimento, e será um fragmento de uma narrativa que não se pode mais compor de maneira ampla e completa. Limitados pela gnose, os romancistas passam a fotografar a narrativa. Curiosa é a intenção de objetividade que acaba se aproximando de uma das expressões pictóricas mais subjetivas: o impressionismo. No impressionismo, cor, luz e olhar constituem o triângulo da expressão artística. Momento, descrição e olhar constituem o elemento narrativo do nouveau roman. O romancista pode mudar de ângulo, de hora, de luz e verá, sem comentários – embora o impressionismo seja exageradamente comentário – a mesma peça ou a mesma construção com olhos diferentes.

“A sombra retorcida da coluna que sustenta o ângulo do telhado projeta-se sobre as lajes da varanda em direção à primeira janela, a da empena; mas está longe de alcançá-la, pois o sol ainda permanece muito alto. A empena da casa está toda à sombra do telhado; quanto ao segmento oeste da varanda, ao longo dessa empena, uma faixa ensolarada de um metro mal se intercala entre a sombra do telhado e a sombra da balaustrada, não interrompida neste momento por nenhum corte.”( pg. 40 )

O nouveau roman tocava em vários mitos da narrativa, entre outros, a análise da psicologia do personagem ( na análise e não na psicologia ) e a trama intrincada. Antônio Callado, no Brasil, comentava da assepsia européia que não nos dizia respeito: país de natureza exuberante, histórias fabulosas, rico folclórico e, principalmente, com conflitos sociais agudos que deviam ser denunciados. Mas a Europa, embora envelhecida e sofrida, também exibia o mesmo quadro, guardadas as devidas proporções: fabulação, conflitos, discursos narrativos populares.

O personagem do nouveau roman
 

Outra das dificuldades do nouveau roman foi a concepção do personagem na narrativa. Para que se desse todo o contexto descarnado da narração era necessário que o personagem estivesse também despido de suas roupagens tradicionais. Ele será mais um objeto em cena. Um objeto como uma parede, uma mesa, um quadro. Sem precisar exatamente dessa maneira, o nouveau roman estava propondo o antipersonagem ou o anti-herói. Primeiro destituiu-lhe de um ambiente com significados. Os ambientes passaram a ser neutros. Passíveis de descrições enxutas e exatas, rigorosas como um traço de compasso. Deu-lhe um tempo – geralmente presentificação – para anular uma memória. O tempo preferido pela narrativa é o passado, fruto da concepção do relato como uma experiência vivida. E por fim, esvaziou-lhe a trama. Retiraram do personagem sua genealogia e seus traços únicos:

“ter um nome próprio, duplo se possível: nome de família e prenome. Deve ter parentes, uma genealogia. Deve ter uma profissão. Se tiver bens, melhor ainda. Enfim, deve possuir um caráter, um rosto que exprima esse caráter, um passado que tenha modelado tanto este como aquele. Seu caráter dita suas ações, faz com que reaja de uma determinada maneira a cada acontecimento. Seu caráter permite que o leitor o julgue, que goste dele ou o odeie. Graças a esse caráter é que ele legará um dia seu nome a um tipo humano, que esperava, por assim dizer, a consagração desse batismo.

Pois é necessário ao mesmo tempo que o personagem seja único e que se eleve à altura de uma categoria. Precisa de um grau suficiente de particularidades para permanecer insubstituível, e um grau suficiente de generalidade para se tornar universal”[4]

No nouveau roman o personagem é o objeto da ação e não sujeito da ação narrativa. Como em toda narrativa o personagem é objeto de um narrador na predicação narrativa. Está do outro lado do verbo, ele é criado por um discurso. A partir daí, passa a atuar, dialogando com tempo, cena e ação. E é na ação que o personagem se faz personagem. Age, reage, grita, se conflita ou compactua com outros personagens, ama, viaja, mata ou morre em ambientes fechados, em campos de batalha, em jardins, em torres de castelo ou casas burguesas. O personagem não pode ser sujeito da narração pois aí deixa de ser personagem para se tornar narrador, como nos casos dos narradores em primeira pessoa que relatam suas aventuras. Ao mesmo tempo o personagem não pode ser objeto da ação narrativa pois é ele que se movimenta e se situa nas ações. Ele não pode ser uma ação em si mesma, objeto e sujeito, o personagem não pode se transformar num ente desprovido de vida. Caso contrário cairá no vazio narrativo, onde não se conta nada de uma história que não precisa de gente para vivê-la. O nouveau roman inverte o teorema da narração: em vez de o personagem ser objeto da narração e sujeito da ação, ele passa a ser objeto da ação.

O narrador de O ciúme é também personagem, é quem vê e conta o que vê, mas não o sentimos, não o vemos - a idéia é fazer com que vejamos através da lente dos seus olhos, criando um embate entre impessoalização narrativa e temática candente: a impessoalidade do narrador e o homem tomado por um sentimento dos mais arrebatadores.[5]

É comum na história da literatura, o narrador em primeira pessoa afastar-se por um momento e narrar com a impessoalidade da terceira pessoa. Em O Ateneu, Raul Pompéia utiliza-se deste recurso que tem várias virtudes como descansar o leitor de uma personalização excessiva, dar-lhe um tom documental, criar um ambiente de neutralidade ou verticalidade que a voz pessoal e única, horizontal, não poderia expressar. Mas em O ciúme, o narrador-personagem é uma exceção dentro da galeria dos personagens que contam sua história. Essa transformação do eu em ele gera no leitor dois conflitos: primeiro o fato de o personagem nunca colocar-se em cena, já que na vida real o que mais fazemos é darmos uma versão do fato e, segundo, esvazia o personagem de uma total atuação dentro da trama. Ou melhor, sua atuação restringe-se aos detalhes, à descrição. O narrador é narrador de uma cena ou descrição. O personagem é personagem de uma visão de uma cena ou de uma descrição.

É o momento de colocar o deslocamento que O ciúme promove. Em lugar da análise psicológica, subvertendo o ato narrativo, Robbe-Grillet prioriza a descrição do exterior: fachadas, plantação, penteadeira, mesa de jantar, janela, lacraia esmagada na parede, em lugar da descrição interior, ou seja, o comentário do psiquismo do personagem. Mesmo opondo-se ao romance tradicional do século XIX, Robbe-Grillet pertence, como já assinalamos, a uma linhagem do romance flaubertiano: o uso da razão, a contenção de emoção, a descrição exaustiva e minudente, a concepção cartesiana do mundo. Negar a análise psicológica[6] do personagem é negar Flaubert, é negar certa paternidade, certa filiação, é no mínimo curioso Robbe-Grillet recusar o pai da linhagem a qual seu romance pertence.

Esse deslocamento é, na verdade, o deslocamento que existe na sociedade da época já ameaçada - desde muito já vinha o processo de massificação, a produção em série data da Revolução Industrial - pelo processo de mass midia. Andy Warhol irá pintar as latas de Coca-Cola, o retrato seriado de Marilyn Monroe e Lichtenstein irá reproduzir modelos de revistas em quadrinhos. Robbe-Grillet se adiantaria a essa produção descarnada buscando na repetição, no gesto de descrever exaustivamente a mesma cena, o mesmo resultado de crítica de uma sociedade que estava perdendo a alma para dar lugar aos objetos seriados.

Neste sentido a troca do eu pelo ele narrativo é ainda conseqüência do mesmo fenômeno. Não só o personagem é desprovido de análise psicológica mas também o narrador é esvaziado em sua capacidade de emocionar, emocionar-se e, finalmente, de interpretar a realidade. Cabe a ambos, narrador e personagem, serem elementos de uma série como uma lata de sopa Campbell. Há diferenças brutais entre Andy Warhol, com seu colorido desbordante, com o cinzento ato narrativo de Robbe-Grillet. Em Andy existe a crítica mas existe a paixão: o quadro de Marilyn não é somente crítica mas absorção, endeusamento, criador e criatura estão irmanados pelo mito.

A circularidade de O ciúme nos leva a pensar sobre a circularidade do personagem do mesmo romance. Preso à descrição, preso às mesmas cenas, preso ao tempo, os personagens também são prisioneiros de si mesmos. O romance é construído sobre um quarteto falho. Trata-se da história de A....[7] e de Franck, que vivem um encontro difícil e frio - do ponto de vista do narrador, também personagem, suposto marido de A.... O quarto elemento, sempre ausente, é a mulher de Franck, que sob o argumento de doença da filha e de seu mal estar, nunca se encontra na casa de A.... e muito menos vai com o marido até a cidade para compras. O romance todo praticamente passa-se dentro da casa de A..., onde o narrador descreve exaustivamente o ambiente.

As mesmas cenas se repetem com pequenas variações - esta talvez seja a grande contribuição do nouveau roman à narrativa. A possibilidade de várias opções ou a variedade de diversas expressões para o mesmo fenômeno narrativo. Uma cena exclui várias versões estilísticas da mesma cena. O que Robbe-Grillet inclui são as reescrituras das mesmas cenas como a dizer que a literatura não é o que se conta, a trama, nem os personagens que nela se encontram, mas a forma de escrever. O que interessa é a maneira de dizer, uma e outra vez, nada mais.[8] Desta maneira, o personagem de Robbe-Grillet passa a ser um personagem subsidiário da informação da cena. A ação já não importa. E, se a ação já não importa, importa menos o personagem que atua na cena, logo a cena em si é mais importante e significa pelo todo o resto.[9]

“Ela acabava de retornar à posição normal e olhava diretamente para a frente, em direção à parede nua, onde uma mancha escura marca o lugar da lacraia esmagada na semana passada, no início do mês, no mês anterior talvez, ou mais tarde.” ( pg.17 )

“Para ver o detalhe dessa mancha com clareza, a fim de distinguir-lhe a origem, é preciso aproximar-se muito de perto da parede e voltar-se para a porta da copa. A imagem da lacraia esmagada desenha-se então, não integral, mas composta de fragmentos bastante precisos para não deixar qualquer dúvida. Várias partes do corpo, ou dos apêndices, deixaram ali seus contornos, sem borrões, e ficaram reproduzidos com uma fidelidade de um desenho anatômico: uma das antenas, duas mandíbulas curvas, a cabeça e o primeiro anel, a metade do segundo, três patas de grandes proporções. Vêm, em seguida, restos mais imprecisos: pedaços de patas e a forma parcial de um corpo dobrado em ponto de interrogação.” ( pg. 34 )

“No final dessa ala oeste da varanda abre-se a porta externa da copa, que dá acesso em seguida à sala de refeições, onde o frescor se conserva durante toda a tarde. Sobre a parede nua, entre a porta da copa e o corredor, a mancha formada pelos restos da lacraia mal se vê, sob a incidência horizontal da luz.” ( pg. 41 )

“A... quer tentar ainda algumas palavras. Mas não descreve o quarto onde passou a noite, assunto pouco interessante, diz ela, voltando a cabeça: todo o mundo conhece esse hotel, seu desconforto e seus mosquiteiros remendados.

É nesse momento que ela vê o escutígero sobre a parede nua à sua frente. Como uma voz contida, como para não assustar o animal, diz:

- Uma lacraia!” ( pg. 57 )

A linearidade já havia sido rompida há muitos séculos - Sterne já tinha se incumbido de introduzi-la antes mesmo dos modernos. A emotividade controlada também já havia sido posta em prática por Flaubert. O que Robbe-Grillet traz é o desconcerto de romper a Física da narrativa. Porque mesmo o flashback e os fluxos de consciência e os jogos temporais, cortes narrativos, etc., tudo isso não eliminava a temporalidade narrativa que era reconstituída na cabeça do leitor. Com Robbe-Grillet, o tempo não é a dureé proustiana, mas uma invocação estilística, um remanejar dos jogos de cena, a influência brutal da montagem cinematográfica. Não mais a montagem de cortes do modernismo à John dos Passos e repetida pelos pós-modernos como Cortázar, mas como se todas as cenas filmadas - e sabemos que uma cena é filmada duas, três, cinco vezes - fossem aproveitadas e montadas ao longo do filme.

O personagem da circularidade temporal, da montagem de todas as cenas, imprestáveis ou não, o personagem da descrição excessiva, este personagem é o personagem múltiplo do círculo. Ele está ali para servir às cenas. Importante: ele age mas não transforma. A dona da casa ordena para seu copeiro, o carro é dirigido por Franck e por aí vai. Os personagens estão prisioneiros do tempo de Robbe-Grillet, que não custa repetir, é diferente do tempo bergsoniano ou do tempo proustiano.

“O tempo clássico só encontra o objeto a fim de ser, para ele, catástrofe ou deliqüescência. Robbe-Grillet dá a seus objetos outro tipo de mutabilidade. É uma mutabilidade cujo processo é invisível: um objeto, descrito uma primeira vez em um momento do contínuo romanesco, reaparece mais tarde, dotado de uma diferença quase imperceptível. Essa diferença é de ordem espacial, situacional ( por exemplo, o que estava à direita se encontra à esquerda ). O tempo desencaixa o espaço e constitui o objeto como uma série de fatias que se recobrem quase completamente umas às outras: é nesse “quase” espacial que jaz a dimensão temporal do objeto. (... ) Os objetos de Robbe-Grillet nunca corrompem, mistificam ou desaparecem: o tempo nunca é aí degradação ou cataclismo: é somente troca de lugar ou ocultamento de elementos.”[10]

A idéia de sufocamento e de impossibilidade de fugir daquele espaço narrativo é constante no texto. O círculo não tem saída, até porque nele não há entrada. O círculo, contudo, não é o labirinto, o círculo é a impossibilidade de escapar do controle, da repetição, do fatalismo e da recorrência. O personagem do círculo está preso - mais do que todos os outros na história literária - à voz do narrador. Ele, o narrador, o submete a seu universo fechado e à roda da narrativa. O que dá no leitor uma sugestão de aprisionamento também dele, leitor, que não consegue sair daquele mundo reduzido a uma casa de fazenda num país tropical.

A ironia da narração
 

Em O ciúme, o narrador não apenas despreza a prosa convencional como também instaura a ironia não na enunciação mas na desconfiança do ato mesmo de narrar. A ironia não pertence só ao narrador nem aos comentários e falas dos personagens. A ironia, dentro do romance, está na construção em variações. A variação é a descrença numa fixidez ou “verdade” unívoca. Fora, coloca-se na ilusão de óptica do leitor. Quando o leitor acredita numa cena ou possibilidade de trama, o narrador a desfaz.

Muito significativo é o ato de descrédito do narrador de O ciúme que, ao resumir a história do livro que A.... e Franck estão lendo, desmonta a trama, desconfia dela, reduz a mesma a variantes e, por fim, desacredita todas. Ou seja, o romance não é a possibilidade de várias versões como pode parecer mas o olhar indiferente à trama alheia:

“O personagem principal do livro é um funcionário da alfândega. O personagem não é um funcionário, mas um empregado superior de uma velha companhia comercial. Os negócios dessa companhia são suspeitos, evoluem rapidamente para a trapaça. Os negócios da companhia são muito bons. O personagem principal - sabe-se - é desonesto. Ele é honesto, procura reparar uma situação comprometida pelo seu antecessor, morto num acidente de carro. Mas ele não teve antecessor, pois a companhia é de criação bem recente; e não foi um acidente. Trata-se, aliás, de um navio ( um grande navio branco ) e não de um carro.” ( pg. 125 )

O narrador mesmo equipara-se a objetos. Só se sente sua presença, por exemplo, quando o copeiro coloca o terceiro copo ou prato na mesa. E só ocorre sua visibilidade na cena quando sua mulher coloca água no terceiro copo. Em nenhum momento o narrador demonstra ciúme. Nem mesmo quando da preocupação com a demora da sua esposa e de Franck que foram à cidade e não retornam pela noite. É outra ironia: entre título e comportamento do narrador. Esse contraste entre título e conteúdo do romance instaura também a possibilidade de várias outras formas da mesma maneira que criou variações para as mesmas cenas: a viagem à cidade, as conversas em volta da mesa, a descrição da plantação, a morte da lacraia esmagada na parede.

Bibliografia

BARTHES, Roland. “Literatura objetiva”. In Crítica e Verdade. Col. Debates. São Paulo, Perspectiva, 1970.

BERSANI, J. et alii. La littérature en France depuis 1945. Paris, Bordas, 1970.

BRES, Jacques. La narrativité. Paris, Editions Duculot, 1994.

BUTOR, Michel. “Joyce e o romance moderno”, in Joyce e o romance moderno. São Paulo, Documentos, 1969.

PATRIOTA, Margarida. Romance de vanguarda: Alain Robbe-Grillet. Brasília, Thesaurus, 1980

REY, Pierre-Louis. Le roman. Col. Contours Litteraires. Paris, Hachette, 1992.

RICARDOU, Jean. Le nouveau roman. Col. Écrivains de toujours. Paris, Seuil, 1978.

ROBBE-GRILLET, Alain. O ciúme. Tradução de Waltensir Dutra. Rio, Nova Fronteira, 1986.

-----------. Pour un nouveau roman. Col. Critique. Paris, Minuit, 1986.

[1] ROBBE-GRILLET ( 1986 ). No sub-item “Le nouveau roman ne vise qu´à une subjectivité totale”, In Nouveau roman, homme nouveau, pg. 117-118.

[2] BUTOR ( 1969 ), pg. 15.

[3] ROBBE-GRILLET ( 1986 ), pg. 115.

[4] PATRIOTA ( 1980 ), pg. 15.

[5] Vimos como pensa Robbe-Grillet a respeito da subjetividade do narrador. Robbe-Grillet, reafirmamos, é consciente de toda a problemática da impessoalização dos seus textos e ele mesmo afirma que o homem em seu romance é o menos neutro possível, “le moins impartial des hommes: engagé au contraire toujours dans une aventure passionnelle des plus obsédantes, au point de déformer souvent sa vision et de produire chez lui des imaginations proches du délire.” Robbe-Grillet, pg. 118.

[6] Barthes ( 1970 ) comenta “as variações e as complexidades do ponto de vista narrativo, as distorções impostas por Robbe-Grillet à cronologia e sua recusa da análise psicológica ( mas não da psicologia ) e de um material, senão simbólico, pelo menos referencial...” pg. 106. Ou ainda, na pg. 100, quando escreve que “ele deseja levantar radicalmente as hipotecas de um psicologismo burguês”. E mais ainda: Bruce Morrissette, em La littérature en France depuis 1945, afirma “Créer, au lieu d´analyser, la psychologie des personnagens, voilá l´essentiel de l´art robbe-grilletien”, pg. 593.

[7] “As tentativas modernas para subverter a forma romanesca liberando o actante de sua ideologização em personagem, em herói que se reduz a uma inicial ( K. em O Castelo, de Kafka, ou A. de O Ciúme, de Robbe-Grillet ) ou a um pronome de 3ª pessoa não eliminam contudo o seu estatuto tradicional.” Bres, pg.115.

[8] Ricardou fala de micro-similitudes que o nouveau roman constrói e, dentro da idéia bartheana do efeito do real, ele afirma que “l´événement narré n´est pas seule succession des mots alignés par l´écrivain sur la feuille, ni davantage l´événement, réel ou imaginaire, auquel il s´est référé en écrivant. Il est l´effet de l´agencement scriptural en réference à tel événement, réel ou imaginaire: ce que nous appellerons une fiction.” pgs. 27 e 77.

[9] “O realismo tradicional adiciona qualidades em função de um julgamento implícito: seus objetos têm formas, mas também odores, propriedades táteis, lembranças, analogias, em resumo pululam de significações; têm mil modos de serem percebidos, e nunca impunemente, já que acarretam um impulso humano de repulsa ou de apetite. Em face desse sincretismo sensorial, ao mesmo tempo anárquico e orientado, Robbe-Grillet impõe uma única ordem de apreensão: a visão.” BARTHES ( 1970 ) pg. 83.

[10] BARTHES, Roland, pgs. 89-90.