Ronaldo Costa Fernandes
O Ciúme e o Nouveau-Roman, de
Alain Robbe-Grillet
Potencializando a estética realista, promovendo ao
máximo o realismo – ou uma das noções de realismo - , o movimento do
nouveau roman pode levar a que se acredite que haveria a
possibilidade de descarnar a narrativa de qualquer subjetividade,
sem levar em conta que a própria linguagem está contaminada de
subjetividade, um labirinto do qual ninguém que escreve está fora
dele. O próprio Robbe-Grillet, em crítica de 1961, justamente
respondendo a esse tipo de acusação, já registrava:
“É Deus quem pretende ser objetivo. Enquanto que nos
livros, ao contrário, é um homem que vê, que sente, que imagina, um
homem situado no espaço e no tempo, condicionado por suas paixões,
um homem como você e eu. E o livro só tem relação com a experiência,
limitada, incerta.”[1]
Basta também observar logo no início do romance O
ciúme quando o narrador utiliza a expressão sem dúvida numa das suas
longas descrições. Adjetivo, advérbio – nada adjetiva tanto quanto o
advérbio porque não dá qualidade a coisas mas dá interpretação à
ação – e tantos outros usos da língua vão fazer com que a narrativa
fique pejada de olhares pessoais e diferenciadores.
“Ela dá alguns passos no quarto e aproxima-se da
pesada cômoda, cuja gaveta superior abre. Mexe nos papéis, na parte
direita da gaveta, inclina-se e, para ver melhor o fundo, puxa-a um
pouco mais em sua direção. Depois de procurar novamente, ela se
ergue e fica imóvel, os cotovelos junto do corpo, os antebraços
dobrados e escondidos pelo busto - segurando sem dúvida uma folha de
papel nas mãos ( grifo nosso ).” (pg. 10)
Outros usos irão mostrar este homem que vê e sente subjetivamente.
Entre vários exemplos, podemos selecionar o uso do verbo parecer, do
verbo dever ( no sentido de parecer ), a utilização do comparativo
como, a indefinição do narrador quanto à temporalidade, a
adjetivação interpretativa e a observação à maneira convencional.
Vejamos, em ordem de apresentação acima nomeada:
“A voz de Franck continua a contar os problemas do dia em sua
fazenda. A.... parece interessar-se. Estimula-o de tempos e tempos
com algumas palavras que mostram sua atenção. Num momento de
silêncio, ouve-se o ruído de um copo colocado sobre a mesinha.” (
pg. 13 )
“Ela fez um coque baixo, cujas mexas hábeis parecem estar a ponto de
desmanchar; alguns grampos escondidos devem, porém, segurá-lo com
mais firmeza do que parece.” ( pg.27 )
“Depois de alguns minutos - ou talvez segundos - continuam ambos na
mesma posição. O rosto de Franck, bem como todo o seu corpo, parecem
imobilizados.” ( pg. 28 )
“Ele sorri, por sua vez. Depois, lentamente, o sorriso se transforma
numa espécie de esgar. Ela, em compensação, conserva seu ar de
serenidade divertida.” ( pg. 51 ) ( Todos os grifos são nossos )
Uma reação ao romance de pensamento, principalmente ao romance
sartreano ou camuseano que tinha uma idéia ( o existencialismo ) a
mover os personagens, o nouveau roman é também uma conseqüência do
niilismo, desesperança, crise social e crise da linguagem, daquela
mesma linguagem que poderia levar à construção de um mundo melhor ou
à barbárie de justificar um genocídio. É a linguagem que cria o
mundo. Se a linguagem podia matar, o melhor seria uma linguagem
neutra e literária que colocasse a literatura fora do espaço comum e
perigoso dos jogos de linguagem da sociedade. Por trás do nouveau
roman também está a linhagem da literatura realista que vem mesmo
antes de Flaubert, afirma-se no século XIX, e penetra no século
vinte com um vigor desconcertante. Misturado ao marxismo e aos novos
conhecimentos da psique, o romance tomaria ares de documento.
Discutível documento, já que até mesmo o texto histórico,
documental, é visto hoje como uma ficção, uma versão da história ou,
na melhor das hipóteses, mais um texto. Michel Butor – e é
interessante que Butor seja citado justamente nesta observação sobre
Joyce, porque Butor é um dos papas do nouveau roman - aponta para um
realismo no século XX que estaria mais próximo da unidade
aristotélica de tempo e espaço e que torna “Ulisses o representante
maior do realismo já que tenta registrar realisticamente as vinte
quatro horas de um burguês em Dublin”[2]. Um realismo mental, o
fluxo de consciência seria a tentativa realista de fotografar a
mente humana.
Por certo Butor fugiu desse realismo de Joyce que o levaria a outras
experiências formais diferentes do rigor cartesiano do nouveau roman.
Parecia que o nouveau roman queria declarar era o fim das
experiências formais com a palavra em si, o abismo em que havia
caído a linguagem joyceana, mas o mesmo Robbe-Grillet afirmava ser o
movimento dele uma continuação do passado, “a evolução não parou de
se acentuar ( ... ), longe de fazer tabula rasa do passado, é em
nome dos predecessores que nós estamos de acordo e nossa ambição é
somente de continuá-los”.[3]
De qualquer modo, o nouveau roman se aproximaria mais do teatro do
absurdo de Ionesco ou de Beckett, onde as palavras haviam perdido
tanto o sentido que tinham que ser repetidas ou, num diálogo, cada
um monologava sua história particular, a linguagem então, desfeita
de seu propósito de aproximação, isolava o personagem.
O discurso se faz no tempo, na História – não se pode negar que o
nouveau roman correspondia à sua época. E que respondia a uma
angústia de uma linhagem narrativa que estava se esgotando. ( Embora
até hoje existam herdeiros do nouveau roman sob uma capa
pós-modernista e de uma pretensiosa literatura do olhar que
redutoramente é filha direta das experiências francesas de Butor e
Robbe-Grillet, talvez muito possivelmente através do cinema, já que
o último escritor também é cineasta ou teve seus livros filmados
como o Ano passado em Marienbad).
O nouveau roman vai se opor frontalmente à produção da literatura
que chamo dos fabulistas. A literatura dos fabulistas é aquela
literatura que está mais próxima do fantástico, do mágico e do
surreal. Não pertence propriamente às vanguardas do século XX. Pelo
contrário, está aí há muito tempo. Não é apenas Kafka e Orwell mas
Cervantes, Defoe, Swift, Rabelais e dezenas de outros. O nouveau
roman pertence à família da literatura da Razão: Balzac, Stendhal,
Laclos, Flaubert, Champfleury e Zola, também entre inúmeros outros.
Não é apenas a oposição entre literatura barroca, medieval ou
romântica versus a literatura de análise comportamental ou
psicológica ou ainda de conflitos sociais. Trata-se de uma visão de
mundo através da linguagem e da imaginação, da criação romanesca
através do personagem e trama exorbitados em contraposição à
contenção e à idéia da literatura como documento.
Muitos argumentariam que o nouveau roman é a expressão de um cansaço
do racionalismo europeu, os últimos suspiros de uma conduta
cartesiana ao mesmo tempo que procurava anular esse passado de
pensamento, de razão, de concepção fina e intelectual do mundo
através de uma nadificação da narrativa. O espaço do nada não é o
espaço do vazio ou do espaço do zero. O espaço do nada é o espaço da
ausência: ausência de interpretação. Ao não interpretar, o
romancista passa a ser apenas um espectador que não julga. Como uma
foto não fala, não se move, não expressa uma história. No máximo, a
foto terá movimento, e será um fragmento de uma narrativa que não se
pode mais compor de maneira ampla e completa. Limitados pela gnose,
os romancistas passam a fotografar a narrativa. Curiosa é a intenção
de objetividade que acaba se aproximando de uma das expressões
pictóricas mais subjetivas: o impressionismo. No impressionismo,
cor, luz e olhar constituem o triângulo da expressão artística.
Momento, descrição e olhar constituem o elemento narrativo do
nouveau roman. O romancista pode mudar de ângulo, de hora, de luz e
verá, sem comentários – embora o impressionismo seja exageradamente
comentário – a mesma peça ou a mesma construção com olhos
diferentes.
“A sombra retorcida da coluna que sustenta o ângulo do telhado
projeta-se sobre as lajes da varanda em direção à primeira janela, a
da empena; mas está longe de alcançá-la, pois o sol ainda permanece
muito alto. A empena da casa está toda à sombra do telhado; quanto
ao segmento oeste da varanda, ao longo dessa empena, uma faixa
ensolarada de um metro mal se intercala entre a sombra do telhado e
a sombra da balaustrada, não interrompida neste momento por nenhum
corte.”( pg. 40 )
O nouveau roman tocava em vários mitos da narrativa, entre outros, a
análise da psicologia do personagem ( na análise e não na psicologia
) e a trama intrincada. Antônio Callado, no Brasil, comentava da
assepsia européia que não nos dizia respeito: país de natureza
exuberante, histórias fabulosas, rico folclórico e, principalmente,
com conflitos sociais agudos que deviam ser denunciados. Mas a
Europa, embora envelhecida e sofrida, também exibia o mesmo quadro,
guardadas as devidas proporções: fabulação, conflitos, discursos
narrativos populares.
O personagem do nouveau roman
Outra das dificuldades do nouveau roman foi a concepção do
personagem na narrativa. Para que se desse todo o contexto
descarnado da narração era necessário que o personagem estivesse
também despido de suas roupagens tradicionais. Ele será mais um
objeto em cena. Um objeto como uma parede, uma mesa, um quadro. Sem
precisar exatamente dessa maneira, o nouveau roman estava propondo o
antipersonagem ou o anti-herói. Primeiro destituiu-lhe de um
ambiente com significados. Os ambientes passaram a ser neutros.
Passíveis de descrições enxutas e exatas, rigorosas como um traço de
compasso. Deu-lhe um tempo – geralmente presentificação – para
anular uma memória. O tempo preferido pela narrativa é o passado,
fruto da concepção do relato como uma experiência vivida. E por fim,
esvaziou-lhe a trama. Retiraram do personagem sua genealogia e seus
traços únicos:
“ter um nome próprio, duplo se possível: nome de família e prenome.
Deve ter parentes, uma genealogia. Deve ter uma profissão. Se tiver
bens, melhor ainda. Enfim, deve possuir um caráter, um rosto que
exprima esse caráter, um passado que tenha modelado tanto este como
aquele. Seu caráter dita suas ações, faz com que reaja de uma
determinada maneira a cada acontecimento. Seu caráter permite que o
leitor o julgue, que goste dele ou o odeie. Graças a esse caráter é
que ele legará um dia seu nome a um tipo humano, que esperava, por
assim dizer, a consagração desse batismo.
Pois é necessário ao mesmo tempo que o personagem seja único e que
se eleve à altura de uma categoria. Precisa de um grau suficiente de
particularidades para permanecer insubstituível, e um grau
suficiente de generalidade para se tornar universal”[4]
No nouveau roman o personagem é o objeto da ação e não sujeito da
ação narrativa. Como em toda narrativa o personagem é objeto de um
narrador na predicação narrativa. Está do outro lado do verbo, ele é
criado por um discurso. A partir daí, passa a atuar, dialogando com
tempo, cena e ação. E é na ação que o personagem se faz personagem.
Age, reage, grita, se conflita ou compactua com outros personagens,
ama, viaja, mata ou morre em ambientes fechados, em campos de
batalha, em jardins, em torres de castelo ou casas burguesas. O
personagem não pode ser sujeito da narração pois aí deixa de ser
personagem para se tornar narrador, como nos casos dos narradores em
primeira pessoa que relatam suas aventuras. Ao mesmo tempo o
personagem não pode ser objeto da ação narrativa pois é ele que se
movimenta e se situa nas ações. Ele não pode ser uma ação em si
mesma, objeto e sujeito, o personagem não pode se transformar num
ente desprovido de vida. Caso contrário cairá no vazio narrativo,
onde não se conta nada de uma história que não precisa de gente para
vivê-la. O nouveau roman inverte o teorema da narração: em vez de o
personagem ser objeto da narração e sujeito da ação, ele passa a ser
objeto da ação.
O narrador de O ciúme é também personagem, é quem vê e conta o que
vê, mas não o sentimos, não o vemos - a idéia é fazer com que
vejamos através da lente dos seus olhos, criando um embate entre
impessoalização narrativa e temática candente: a impessoalidade do
narrador e o homem tomado por um sentimento dos mais
arrebatadores.[5]
É comum na história da literatura, o narrador em primeira pessoa
afastar-se por um momento e narrar com a impessoalidade da terceira
pessoa. Em O Ateneu, Raul Pompéia utiliza-se deste recurso que tem
várias virtudes como descansar o leitor de uma personalização
excessiva, dar-lhe um tom documental, criar um ambiente de
neutralidade ou verticalidade que a voz pessoal e única, horizontal,
não poderia expressar. Mas em O ciúme, o narrador-personagem é uma
exceção dentro da galeria dos personagens que contam sua história.
Essa transformação do eu em ele gera no leitor dois conflitos:
primeiro o fato de o personagem nunca colocar-se em cena, já que na
vida real o que mais fazemos é darmos uma versão do fato e, segundo,
esvazia o personagem de uma total atuação dentro da trama. Ou
melhor, sua atuação restringe-se aos detalhes, à descrição. O
narrador é narrador de uma cena ou descrição. O personagem é
personagem de uma visão de uma cena ou de uma descrição.
É o momento de colocar o deslocamento que O ciúme promove. Em lugar
da análise psicológica, subvertendo o ato narrativo, Robbe-Grillet
prioriza a descrição do exterior: fachadas, plantação, penteadeira,
mesa de jantar, janela, lacraia esmagada na parede, em lugar da
descrição interior, ou seja, o comentário do psiquismo do
personagem. Mesmo opondo-se ao romance tradicional do século XIX,
Robbe-Grillet pertence, como já assinalamos, a uma linhagem do
romance flaubertiano: o uso da razão, a contenção de emoção, a
descrição exaustiva e minudente, a concepção cartesiana do mundo.
Negar a análise psicológica[6] do personagem é negar Flaubert, é
negar certa paternidade, certa filiação, é no mínimo curioso
Robbe-Grillet recusar o pai da linhagem a qual seu romance pertence.
Esse deslocamento é, na verdade, o deslocamento que existe na
sociedade da época já ameaçada - desde muito já vinha o processo de
massificação, a produção em série data da Revolução Industrial -
pelo processo de mass midia. Andy Warhol irá pintar as latas de
Coca-Cola, o retrato seriado de Marilyn Monroe e Lichtenstein irá
reproduzir modelos de revistas em quadrinhos. Robbe-Grillet se
adiantaria a essa produção descarnada buscando na repetição, no
gesto de descrever exaustivamente a mesma cena, o mesmo resultado de
crítica de uma sociedade que estava perdendo a alma para dar lugar
aos objetos seriados.
Neste sentido a troca do eu pelo ele narrativo é ainda conseqüência
do mesmo fenômeno. Não só o personagem é desprovido de análise
psicológica mas também o narrador é esvaziado em sua capacidade de
emocionar, emocionar-se e, finalmente, de interpretar a realidade.
Cabe a ambos, narrador e personagem, serem elementos de uma série
como uma lata de sopa Campbell. Há diferenças brutais entre Andy
Warhol, com seu colorido desbordante, com o cinzento ato narrativo
de Robbe-Grillet. Em Andy existe a crítica mas existe a paixão: o
quadro de Marilyn não é somente crítica mas absorção, endeusamento,
criador e criatura estão irmanados pelo mito.
A circularidade de O ciúme nos leva a pensar sobre a circularidade
do personagem do mesmo romance. Preso à descrição, preso às mesmas
cenas, preso ao tempo, os personagens também são prisioneiros de si
mesmos. O romance é construído sobre um quarteto falho. Trata-se da
história de A....[7] e de Franck, que vivem um encontro difícil e
frio - do ponto de vista do narrador, também personagem, suposto
marido de A.... O quarto elemento, sempre ausente, é a mulher de
Franck, que sob o argumento de doença da filha e de seu mal estar,
nunca se encontra na casa de A.... e muito menos vai com o marido
até a cidade para compras. O romance todo praticamente passa-se
dentro da casa de A..., onde o narrador descreve exaustivamente o
ambiente.
As mesmas cenas se repetem com pequenas variações - esta talvez seja
a grande contribuição do nouveau roman à narrativa. A possibilidade
de várias opções ou a variedade de diversas expressões para o mesmo
fenômeno narrativo. Uma cena exclui várias versões estilísticas da
mesma cena. O que Robbe-Grillet inclui são as reescrituras das
mesmas cenas como a dizer que a literatura não é o que se conta, a
trama, nem os personagens que nela se encontram, mas a forma de
escrever. O que interessa é a maneira de dizer, uma e outra vez,
nada mais.[8] Desta maneira, o personagem de Robbe-Grillet passa a
ser um personagem subsidiário da informação da cena. A ação já não
importa. E, se a ação já não importa, importa menos o personagem que
atua na cena, logo a cena em si é mais importante e significa pelo
todo o resto.[9]
“Ela acabava de retornar à posição normal e olhava diretamente para
a frente, em direção à parede nua, onde uma mancha escura marca o
lugar da lacraia esmagada na semana passada, no início do mês, no
mês anterior talvez, ou mais tarde.” ( pg.17 )
“Para ver o detalhe dessa mancha com clareza, a fim de
distinguir-lhe a origem, é preciso aproximar-se muito de perto da
parede e voltar-se para a porta da copa. A imagem da lacraia
esmagada desenha-se então, não integral, mas composta de fragmentos
bastante precisos para não deixar qualquer dúvida. Várias partes do
corpo, ou dos apêndices, deixaram ali seus contornos, sem borrões, e
ficaram reproduzidos com uma fidelidade de um desenho anatômico: uma
das antenas, duas mandíbulas curvas, a cabeça e o primeiro anel, a
metade do segundo, três patas de grandes proporções. Vêm, em
seguida, restos mais imprecisos: pedaços de patas e a forma parcial
de um corpo dobrado em ponto de interrogação.” ( pg. 34 )
“No final dessa ala oeste da varanda abre-se a porta externa da
copa, que dá acesso em seguida à sala de refeições, onde o frescor
se conserva durante toda a tarde. Sobre a parede nua, entre a porta
da copa e o corredor, a mancha formada pelos restos da lacraia mal
se vê, sob a incidência horizontal da luz.” ( pg. 41 )
“A... quer tentar ainda algumas palavras. Mas não descreve o quarto
onde passou a noite, assunto pouco interessante, diz ela, voltando a
cabeça: todo o mundo conhece esse hotel, seu desconforto e seus
mosquiteiros remendados.
É nesse momento que ela vê o escutígero sobre a parede nua à sua
frente. Como uma voz contida, como para não assustar o animal, diz:
- Uma lacraia!” ( pg. 57 )
A linearidade já havia sido rompida há muitos séculos - Sterne já
tinha se incumbido de introduzi-la antes mesmo dos modernos. A
emotividade controlada também já havia sido posta em prática por
Flaubert. O que Robbe-Grillet traz é o desconcerto de romper a
Física da narrativa. Porque mesmo o flashback e os fluxos de
consciência e os jogos temporais, cortes narrativos, etc., tudo isso
não eliminava a temporalidade narrativa que era reconstituída na
cabeça do leitor. Com Robbe-Grillet, o tempo não é a dureé
proustiana, mas uma invocação estilística, um remanejar dos jogos de
cena, a influência brutal da montagem cinematográfica. Não mais a
montagem de cortes do modernismo à John dos Passos e repetida pelos
pós-modernos como Cortázar, mas como se todas as cenas filmadas - e
sabemos que uma cena é filmada duas, três, cinco vezes - fossem
aproveitadas e montadas ao longo do filme.
O personagem da circularidade temporal, da montagem de todas as
cenas, imprestáveis ou não, o personagem da descrição excessiva,
este personagem é o personagem múltiplo do círculo. Ele está ali
para servir às cenas. Importante: ele age mas não transforma. A dona
da casa ordena para seu copeiro, o carro é dirigido por Franck e por
aí vai. Os personagens estão prisioneiros do tempo de Robbe-Grillet,
que não custa repetir, é diferente do tempo bergsoniano ou do tempo
proustiano.
“O tempo clássico só encontra o objeto a fim de ser, para ele,
catástrofe ou deliqüescência. Robbe-Grillet dá a seus objetos outro
tipo de mutabilidade. É uma mutabilidade cujo processo é invisível:
um objeto, descrito uma primeira vez em um momento do contínuo
romanesco, reaparece mais tarde, dotado de uma diferença quase
imperceptível. Essa diferença é de ordem espacial, situacional ( por
exemplo, o que estava à direita se encontra à esquerda ). O tempo
desencaixa o espaço e constitui o objeto como uma série de fatias
que se recobrem quase completamente umas às outras: é nesse “quase”
espacial que jaz a dimensão temporal do objeto. (... ) Os objetos de
Robbe-Grillet nunca corrompem, mistificam ou desaparecem: o tempo
nunca é aí degradação ou cataclismo: é somente troca de lugar ou
ocultamento de elementos.”[10]
A idéia de sufocamento e de impossibilidade de fugir daquele espaço
narrativo é constante no texto. O círculo não tem saída, até porque
nele não há entrada. O círculo, contudo, não é o labirinto, o
círculo é a impossibilidade de escapar do controle, da repetição, do
fatalismo e da recorrência. O personagem do círculo está preso -
mais do que todos os outros na história literária - à voz do
narrador. Ele, o narrador, o submete a seu universo fechado e à roda
da narrativa. O que dá no leitor uma sugestão de aprisionamento
também dele, leitor, que não consegue sair daquele mundo reduzido a
uma casa de fazenda num país tropical.
A ironia da narração
Em O ciúme, o narrador não apenas despreza a prosa convencional como
também instaura a ironia não na enunciação mas na desconfiança do
ato mesmo de narrar. A ironia não pertence só ao narrador nem aos
comentários e falas dos personagens. A ironia, dentro do romance,
está na construção em variações. A variação é a descrença numa
fixidez ou “verdade” unívoca. Fora, coloca-se na ilusão de óptica do
leitor. Quando o leitor acredita numa cena ou possibilidade de
trama, o narrador a desfaz.
Muito significativo é o ato de descrédito do narrador de O ciúme
que, ao resumir a história do livro que A.... e Franck estão lendo,
desmonta a trama, desconfia dela, reduz a mesma a variantes e, por
fim, desacredita todas. Ou seja, o romance não é a possibilidade de
várias versões como pode parecer mas o olhar indiferente à trama
alheia:
“O personagem principal do livro é um funcionário da alfândega. O
personagem não é um funcionário, mas um empregado superior de uma
velha companhia comercial. Os negócios dessa companhia são
suspeitos, evoluem rapidamente para a trapaça. Os negócios da
companhia são muito bons. O personagem principal - sabe-se - é
desonesto. Ele é honesto, procura reparar uma situação comprometida
pelo seu antecessor, morto num acidente de carro. Mas ele não teve
antecessor, pois a companhia é de criação bem recente; e não foi um
acidente. Trata-se, aliás, de um navio ( um grande navio branco ) e
não de um carro.” ( pg. 125 )
O narrador mesmo equipara-se a objetos. Só se sente sua presença,
por exemplo, quando o copeiro coloca o terceiro copo ou prato na
mesa. E só ocorre sua visibilidade na cena quando sua mulher coloca
água no terceiro copo. Em nenhum momento o narrador demonstra ciúme.
Nem mesmo quando da preocupação com a demora da sua esposa e de
Franck que foram à cidade e não retornam pela noite. É outra ironia:
entre título e comportamento do narrador. Esse contraste entre
título e conteúdo do romance instaura também a possibilidade de
várias outras formas da mesma maneira que criou variações para as
mesmas cenas: a viagem à cidade, as conversas em volta da mesa, a
descrição da plantação, a morte da lacraia esmagada na parede.
Bibliografia
BARTHES, Roland. “Literatura objetiva”. In Crítica e Verdade. Col.
Debates. São Paulo, Perspectiva, 1970.
BERSANI, J. et alii. La littérature en France depuis 1945. Paris,
Bordas, 1970.
BRES, Jacques. La narrativité. Paris, Editions Duculot, 1994.
BUTOR, Michel. “Joyce e o romance moderno”, in Joyce e o romance
moderno. São Paulo, Documentos, 1969.
PATRIOTA, Margarida. Romance de vanguarda: Alain Robbe-Grillet.
Brasília, Thesaurus, 1980
REY, Pierre-Louis. Le roman. Col. Contours Litteraires. Paris,
Hachette, 1992.
RICARDOU, Jean. Le nouveau roman. Col. Écrivains de toujours. Paris,
Seuil, 1978.
ROBBE-GRILLET, Alain. O ciúme. Tradução de Waltensir Dutra. Rio,
Nova Fronteira, 1986.
-----------. Pour un nouveau roman. Col. Critique. Paris, Minuit,
1986.
[1] ROBBE-GRILLET ( 1986 ). No sub-item “Le nouveau roman ne vise
qu´à une subjectivité totale”, In Nouveau roman, homme nouveau, pg.
117-118.
[2] BUTOR ( 1969 ), pg. 15.
[3] ROBBE-GRILLET ( 1986 ), pg. 115.
[4] PATRIOTA ( 1980 ), pg. 15.
[5] Vimos como pensa Robbe-Grillet a respeito da subjetividade do
narrador. Robbe-Grillet, reafirmamos, é consciente de toda a
problemática da impessoalização dos seus textos e ele mesmo afirma
que o homem em seu romance é o menos neutro possível, “le moins
impartial des hommes: engagé au contraire toujours dans une aventure
passionnelle des plus obsédantes, au point de déformer souvent sa
vision et de produire chez lui des imaginations proches du délire.”
Robbe-Grillet, pg. 118.
[6] Barthes ( 1970 ) comenta “as variações e as complexidades do
ponto de vista narrativo, as distorções impostas por Robbe-Grillet à
cronologia e sua recusa da análise psicológica ( mas não da
psicologia ) e de um material, senão simbólico, pelo menos
referencial...” pg. 106. Ou ainda, na pg. 100, quando escreve que
“ele deseja levantar radicalmente as hipotecas de um psicologismo
burguês”. E mais ainda: Bruce Morrissette, em La littérature en
France depuis 1945, afirma “Créer, au lieu d´analyser, la
psychologie des personnagens, voilá l´essentiel de l´art
robbe-grilletien”, pg. 593.
[7] “As tentativas modernas para subverter a forma romanesca
liberando o actante de sua ideologização em personagem, em herói que
se reduz a uma inicial ( K. em O Castelo, de Kafka, ou A. de O
Ciúme, de Robbe-Grillet ) ou a um pronome de 3ª pessoa não eliminam
contudo o seu estatuto tradicional.” Bres, pg.115.
[8] Ricardou fala de micro-similitudes que o nouveau roman constrói
e, dentro da idéia bartheana do efeito do real, ele afirma que
“l´événement narré n´est pas seule succession des mots alignés par
l´écrivain sur la feuille, ni davantage l´événement, réel ou
imaginaire, auquel il s´est référé en écrivant. Il est l´effet de
l´agencement scriptural en réference à tel événement, réel ou
imaginaire: ce que nous appellerons une fiction.” pgs. 27 e 77.
[9] “O realismo tradicional adiciona qualidades em função de um
julgamento implícito: seus objetos têm formas, mas também odores,
propriedades táteis, lembranças, analogias, em resumo pululam de
significações; têm mil modos de serem percebidos, e nunca
impunemente, já que acarretam um impulso humano de repulsa ou de
apetite. Em face desse sincretismo sensorial, ao mesmo tempo
anárquico e orientado, Robbe-Grillet impõe uma única ordem de
apreensão: a visão.” BARTHES ( 1970 ) pg. 83.
[10] BARTHES, Roland, pgs. 89-90.
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