Ruy Espinheira Filho
Os novos (poetas) baianos
02.10.2004
Como se sabe - Mário de Andrade, por exemplo, se referiu a isto -,
obra engavetada, impedida de cumprir plenamente seu papel de
comunicação e expressão (porque, sem o leitor ou o ouvinte, sua
função permanece incompleta), faz um grande mal ao autor. E não só
ao autor: também ao público, que não toma conhecimento de tais
obras, o que se configura uma perda. O projeto Poesia na Boca da
Noite, organizado pelo poeta José Inácio Vieira de Melo, tem como
objetivo exatamente combater esse mal de duplo efeito, pois leva ao
público a produção dos novos poetas baianos, quase sempre reduzidos
ao silêncio devido às grandes dificuldades editoriais. Que existem
até mesmo para os poetas que conseguiram superar algumas vezes os
obstáculos, obtendo lugar em catálogos de grandes editoras.
Este é o indiscutível mérito do projeto Poesia na Boca da Noite: dar
voz aos poetas. Ou melhor: abrir espaço para que suas vozes sejam
ouvidas. Vozes díspares, pessoais, individuais, originais - mas
todas vozes da poesia. Da poesia de Kátia Borges, Narlan Matos,
Douglas de Almeida, Vanessa Buffone, Fabrícia Miranda, Goulart
Gomes, Débora Alcântara, João de Moraes Filho, Miguel Carneiro,
Ângela Toledo, Elizeu Moreira Paranaguá, Marcus Vinícius Rodrigues,
Mônica Menezes, Claudina Ramirez, Mayrant Gallo e do próprio José
Inácio Vieira de Melo.
Lembro que minha geração também desenvolveu projetos para enfrentar
a indiferença editorial. Não contando com um dono de restaurante
esclarecido, mas promovendo declamações em faculdades da Ufba, no
Teatro Castro Alves, e fazendo exposições de poemas-cartazes, por
exemplo. E mais: lançando revistas, especialmente Serial, criada e
comandada pelo poeta Antonio Brasileiro, hoje nome nacionalmente
reconhecido. A luta é, portanto, antiga, creio que desde que surgiu
o primeiro poeta no mundo...
Mas, felizmente, os poetas são uma raça obstinada. Mário de Andrade
pagou quase toda a edição de sua obra com seu próprio dinheiro;
Manuel Bandeira, que também teve suas primeiras obras pagas pelo pai
e facilitada por amigos, só conseguiu editor comercial aos 51 anos
de idade; Drummond financiou seus dois primeiros livros - e só
chegou mais facilmente a uma grande editora porque gozava do imenso
prestígio de ser chefe de gabinete do todo-poderoso Gustavo
Capanema, ministro da Educação e Saúde dos tempos de Getúlio
Vargas... E recordemos que Fernando Pessoa publicou apenas um livro
em vida, por ter recebido um prêmio literário.
Enfim, o ofício de poeta nunca foi fácil. Por isso são de altíssimo
valor projetos como Poesia na Boca da Noite. Por isso é preciso
aplaudir os poetas que dele participam. E, em especial, louvar José
Inácio Vieira de Melo, assim como o José Ronaldo, proprietário do
restaurante Grande Sertão, pois estão realizando um trabalho notável
de divulgação - e também estímulo, é claro - de nossa poesia.
Trabalho importante hoje - e que por certo será uma referência na
história da poesia baiana.
Ruy Espinheira Filho é poeta, ficcionista e ensaísta.
Pertence à Academia de Letras da Bahia. Autor de vários livros,
dentre eles Forma e Alumbramento - poética e poesia em Manuel
Bandeira (José Olympio Editora, 2004).
Às vezes o caminho parece longo
e que damos volta ao redor de nós mesmos
então surge o cansaço, o desânimo
e deixamos que pensamentos ruins
freqüentem nossa mente
mas Deus é rocha e borboleta
e a fé é como uma rocha
e é nela que estou abraçada
Ângela Toledo
Asas
O que me prende à cultura
são as asas.
Mas de algo me resguardo:
da sede incontrolável de saber
o que não é vital
e assim perder
a difícil capacidade de embriagar-me
da alegria que vive
entre as coisas simples.
Claudina Ramirez
Excêntrica
Não vou mais ser a boneca
que fizestes de mim
Não entrarei na porta
que abristes para mim
Serei assim: absurdo
Ao fogo todas as receitas de ser.
Débora Menezes Alcântara
Liberdade
Me perguntaram
o que era liberdade
e eu pude responder
Liberdade é transcender
é ter opção e não escolher
é sorrir sem precisar mentir
é ter por poder querer
Me perguntaram
onde existia esta Liberdade
e eu pude responder
nas páginas de um
DICIONÁRIO
Douglas de Almeida
Poema do coração
Eu sempre fico
nu para Deus,
mas ele nunca
ficou nu para
o sentido terrível
do meu ser.
Elizeu Moreira Paranaguá
Universal
o cinema virou igreja
só restou a bilheteria
templo é dinheiro
Goulart Gomes
Caixa de guardados I
Deixo a quem interessar
toda boca que não beijei
que tanta sorte de beijo já dei.
Deixo a mancha de batom que não apaga
no teu copo de vinho seco.
Deixo um nome secreto para cada amigo
um sorriso sobre a testa envelhecida de minha mãe
e um espelho em que meu irmão se veja belo.
Fabrícia Miranda
Testamento
As mulheres que eu amo
nada querem comigo.
Fico feito carta de um baralho avulso,
meio russo,
onde meu caralho repousa murcho,
entre as pernas do meu fim.
Vou buscando nessas mulheres,
sem exatidão de carinho,
tentando em seus naipes
mais uma jogada ruim.
As mulheres que eu amo
não dão a mínima bola pra mim.
Miguel Carneiro
De volta à caixa de abelhas
Com zelo e alguma tristeza, guardo coisas:
cartas antigas, fotos antigas, calendários.
Se me perguntarem a razão, direi que sei, direi que um dia
saberei...
Há quase um ano aguardo notícias importantes,
dentro desta caixa de abelhas.
Todas as noites, o carcereiro chega,
põe sua cabeça na pequena grade e ri.
Amanhã mesmo deixo esta coisas, esta caixa.
É algo que assumo cuidadosa, como se soubesse que não vou voltar,
como se conhecesse o rosto que se oculta,
ou como se mentisse, quando sinto que sei.
Ontem mesmo o carcereiro esqueceu-se de vir.
Minhas lembranças zuniram tontas,
entre as paredes desta caixa,
doloridas de saudade.
Kátia Borges
Máscara
Para Tânia Nolasco
Atrás da minha casa
há um poço
No fundo do poço
todas as máscaras.
Meu rosto é um abismo...
Mônica Menezes
Cartago
Caro Tomaz Salamun,
em vez de dois olhos
tenho dois punhais afiados
que rasgam a vida como duas panteras
ensandecidas e famintas
rasgam o que encontram pela frente para se alimentarem
para se manterem vivas
Narlan Matos
O poeta
Para Alex Simões
O poeta me diz
a certeza da forma
e de como escreve
a regra imposta.
Ele sabe a métrica
e o ritmo
e todos os ritos
de ser poeta.
Seduzido,
aprendo,
meus olhos repousados em sua íris verde água.
E em cada seu decassílabo,
um silvo
escondido
e uma alma exposta.
Marcus Vinícius Rodrigues
O universo
Olhei hoje
Uma mosca
Sobre o açúcar...
Olhei-a
Por longo tempo...
Estava morta.
Mas num dos seus olhos
Netuno...
E no outro
Vênus.
Mayrant Gallo
O amor das bestas feras
Fera só ama fera, só deseja fera:
Ildásio Tavares
Sou besta fera que caminha à tua boca,
és o perigo a que chamo de lar,
jamais me senti tão segura.
Em teu leito, deito-me com os segredos que persigo,
com os dentes a que chamo abrigo.
Tua força violenta-me as idéias,
e estupra o mal que insiste em mutar.
Feridas me revelam o aprendizado da dor,
o amor que humilha.
Que Deus abençoe estes pobres amantes,
servos da violência divina!
Vanessa Buffone
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