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Rodrigo Marques


 

Milagre revisitado

 

“Toda a natureza está cheia de milagres. Não nos assombramos com eles, porque estamos habituados a vê-los; sua repetição os opaca aos nossos olhos calejados. É por isto que Deus nos reserva milagres inesperados, além dos que se operam no curso da natureza, para que eles nos espantem pela surpresa” .

                                 Santo Agostinho


 

Manuel Bandeira, que nunca foi santo, parece que chegou à mesma conclusão de Agostinho em Preparação para a morte: “A vida é um milagre/ Cada flor, / com sua forma, sua cor seu aroma/ cada flor é um milagre (...)”. Há, portanto, dois tipos de milagre: o dia-a-dia e o impossível.

Colemos, antes de tudo, o poema inteiro:

Preparação para a morte

A vida é um milagre.
Cada flor,
com sua forma, sua cor, seu aroma,
cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
o espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
o tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Do milagre maior, milagre-vida, o poeta parte para definir uma flor: cor, forma, aroma; como se quisesse habitar a vida mínima.

Já guardar as linhas de uma flor num livro é diferente de guardar uma flor para marcar leitura: é mantê-la mais viva, é a todo instante poder montá-la.

Mais à frente, o poeta-milagreiro vê também as linhas de um pássaro pousar próximo das linhas de cada flor: Cada pássaro, / com sua plumagem, seu vôo, seu canto, / cada pássaro é um milagre - dizemos linhas em virtude do poeta indicar cada, numa totalidade que só a metafísica, talvez, possa compreender.

Elementar é o pássaro de Bandeira – vôo, pluma, canto – e mais nada, que mais nada é pássaro. A qualquer instante podemos montá-lo, revivendo talvez os dias da criação: o Criador, quem sabe, teria encontrado no chão as linhas de tudo e daí, muito mais fácil, montado o resto.

O milagreiro, no entanto, vê os traços de cada pássaro alçarem vôo, e, por estar lá, no céu, as linhas são os pássaros inúmeros: O espaço, infinito, / o espaço é um milagre.

Vê-se, pois, que Manuel Bandeira opera neste poema as duas categorias do assombroso: a vida e o impossível; com a naturalidade de quem entende que a vida é um impossível que se repete todos os dias.

E de falar assim as linhas de um pássaro voando, por fora, não se pode esquecer o curso, o tempo, que dele nenhuma linha-viva escapa: O tempo, infinito, / o tempo é um milagre.

A linha que compõe o tempo é o próprio tempo, apenas um traço invisível, que sabemos e não podemos explicar. Pode-se pensar o mesmo do espaço, que, por mais que dê voltas, não sai de si, de sua própria linha de planos.

Depois do frágil, do pássaro, do espaço e do tempo, o poeta chega à memória, e assim como no primeiro verso o milagreiro não pôde mais que uma sentença: A memória é um milagre. A memória lembra a sentença primeira, lembra o poema completo, lembra a vida, lembra o título, lembra entre outras coisas o tempo, o espaço e o infinito, ou ainda, lembra o milagre que poderia ter sido e que não foi.

Só as linhas ficam.

E o que assusta é que tudo é memória e milagre, tudo é linha e frágil. A reflexão, o próprio olhar que agora se afasta do poema, chega à conclusão irrenunciável: A consciência é um milagre/ Tudo é milagre.

Tudo, menos a morte.

A morte é o oposto do milagre-vida: - Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres. Em outras palavras: bendita é a morte que contorna, define o milagre-vida, traça suas linhas-limites. Sem ela não havia o milagre maior. E se ela é o fim dos milagres, ela é o mais estúpido e o mais impossível deles.

A mesa está posta, as coisas no lugar.

 



 

Em frente ao espelho

 


"A realidade e a imagem

O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
e desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
quatro pombas passeiam".
 


 

O poema está guardado no livro Belo Belo e não pode passar despercebido pelo leitor de Bandeira. O próprio poeta avisa: “Pergunto eu agora: não haverá poesia quando realizo em palavras uma transposição da realidade, sem inventar nada, sem “fingir” nada? (...) Poema que é uma simples reprodução por imitação, para empregar as velhas palavras de Aristóteles”. (Seleta em prosa e verso – 4ª edição José Olympio Editora – p. 29).

Sem dúvida o poema retrata uma paisagem urbana muito comum - talvez o poeta estivesse numa praça, lendo jornal, os olhos um pouco acima das notícias: um prédio refletido numa poça d’água e entre a poça e o arranha-céu, quatro pombas ciscando.

O olhar míope do poeta, no entanto, refez, viu demais: o arranha-céu brota do chão duro, vegetal que insiste na calçada depois de um dia chuvoso, ou ainda, e o que é mais grave, escala o céu, arranha-o, numa tentativa de superar a própria estrutura, as próprias pilastras, a alvenaria, num gesto heróico - O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva. Ao mesmo tempo, desce e se encolhe ao tamanho de uma poça de pátio - e desce refletido na poça de lama do pátio. Não é a poça que reflete o prédio – não! - é o prédio que desce à poça. Pra se refrescar? Talvez. Ou talvez para se ver traduzido, interpretado em uma imagem, em um poema, em outro olhar, para compreender a sua insuperável altura, para ver onde vai parar o seu resto.

Mestre Bandeira chamou de realidade este arranha-céu insatisfeito, e à sua imagem na pocinha d’água, chamou fantasia, arte. O reflexo na água acompanha o real (já que o prédio não pára de subir), ou seja, o reflexo é sincero e está em paz consigo, não é ele que se desespera em esticar o pescoço, apenas espelha o absurdo das coisas sem fim. E olhar a imagem é bem mais fácil do que olhar pra cima, arriscando um torcicolo.

Já a pocinha d’água – que também é real – deve estar se aprofundando para receber a imagem interminável do arranha-céu. Insatisfeita com o seu tamanho e com o prédio que teima em lhe descer, encontra no esforço de suportar a imagem sua função, sua razão de ser.

E o que está entre a poça e o prédio? Quer dizer, o que está entre as realidades possíveis? Quer dizer, e o que ainda não foi refletido? Acho que o real ainda não refletido, ainda não interpretado, não faz sentido, é seco, à espera de reflexo, é como quatro pombas estúpidas rodando num pátio - Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa/ quatro pombas passeiam.

Manuel Bandeira não reproduziu o real, interpretou-o, como todo tocar humano. E o mundo que está aí, que vemos quando nos espreguiçamos, só ganha sentido e existência com as nossas interpretações, jamais vemos as coisas, a história, a vida, a morte, as pedras, a sociedade, a paz, a guerra, vemos o reflexo de tudo isso na pocinha d’água, bem mais fácil e sincero de olhar.

 

Manuel Bandeira

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