Rodrigo Marques
Dimas Macedo, a poesia do Salgado
1. Memórias do Salgado
Era menino
e o Salgado era como um irmão mais velho:
eu ouvia sua voz nas águas
e a correnteza sussurrava-me
palavras tão amáveis.
As águas eram
um veio inesgotável de poesia
e as enchentes do rio
levavam sempre uma saudade
que eu sentia - quando elas iam embora.
O poema transcrito,
em forma de epígrafe, pertence ao livro A distância de todas as
coisas (1980), o segundo de autoria de Dimas Macedo, e aquele
que o projetou na cena literária local e nacional. A distância de
todas as coisas representa um marco primordial para quem deseja
estudar a obra completa do poeta, pois nele estão contidos,
separadamente, em cada uma de suas partes, os temas e as formas
escolhidos pelo escritor para a realização de todo o seu trabalho
poético.
O livro está
dividido em cinco blocos literários distintos: "Discursos sem
métrica", "Canções absurdas", "Poemas sem sombras", "A distância de
todas as coisas" e "Poemas de Lavras". Nos dois primeiros segmentos,
como bem observou José Alcides Pinto, em "O Universo Poético de
Dimas Macedo"[1], estão enfeixados poemas cuja temática principal é
o amor, o que, aliás, podemos comprovar nesse trecho de "Canção
Número Dois":
Ainda que todas as coisas
rolassem por uma escada abaixo,
eu cantaria para ti uma canção com ternura e encanto,
faria com que a minha poesia penetrasse pelos teus poros
e fosse como uma música sonora para os teus ouvidos.
Na terceira parte,
"Poemas sem sombras", o poeta de Lavras questiona o absurdo da
existência humana e a metafísica do ser:
A idéia é o mistério
e as teorias são o que buscamos,
e as coisas são só coisas
e o que pensamos é o além de tudo.
Já no quarto
segmento do livro, o que vemos é um poeta nostálgico, relembrando a
infância em Lavras da Mangabeira, carregado de um telurismo mórbido
e um inconformismo exacerbado pela inevitável passagem do tempo:
Rua da Praia,
transformada e substituída!
Outrora, sossegada
e proprietária
do caminho do rio.
Com gente que ia e vinha
e com um pouco de crepúsculo
em cada tarde.
Quieta entre velhas paredes
onde repousava
o silêncio dos meus segredos.
Em "Poemas de
Lavras", última parte de A distância de todas as coisas,
Dimas Macedo exalta as belezas de sua cidade natal, e nos revela um
poeta de fala insubmissa, sintonizado com os problemas sociais do
seu tempo. Como percebemos nesse trecho de "Poema de Lavras":
pois simplesmente os teus
dirigentes
desprezaram-te
por serem canalhas.
Canalhas de chicote em punho,
sustentando-se nos grilhões da força
e impossibilitados de serem capazes.
Homens de brasões rijos,
que suprimiam a liberdade
e maltratavam a plebe.
De todas as
seqüências do livro, no entanto, a de maior força poética é aquela
em que os poemas telúricos estão mais presentes. Linhares Filho, ao
que parece, foi quem melhor visualizou o assunto:
Talvez o
sentimento mais forte da poesia de Dimas Macedo seja o da terra,
buscando o tempo perdido, o da infância, que tanta legítima poesia
tem feito produzir-se em todo o mundo, e, ao lado do aspecto
elegíaco ligado ao telúrico, encontram-se na obra desse poeta
lavrense os aspectos apologético e reivindicatório, pelos quais
exalta os valores tradicionais de Lavras , e chama a atenção para as
potencialidades de sua cidade no sentido de que sejam devidamente
exploradas.[2]
No poema "O Menino e
o Salgado", inserido no quarto segmento do livro, iremos encontrar
Lavras da Mangabeira, terra natal e musa inspiradora do poeta, como
também a sua infância, que é revivida através da literatura. Além de
estar presente o símbolo mais constante em suas obras: o rio
Salgado.
O poema, a que me
refiro, possui um vocabulário simples, bem de acordo com a temática
da infância, e não possui um modo poemático definido. As vogais
abertas e constantes em cada palavra do poema tornam sua leitura
bastante fluida. O poeta se vale de um recurso bem interessante, que
foi largamente utilizado por Carlos Drummond de Andrade em
Boitempo e Menino Antigo, ao tratar indiferentemente a 1ª e a 3ª
pessoa, o "menino" e o "eu", generalizando o que parecia particular.
Observamos no poema
a proximidade entre o menino e o rio; a relação de ternura e
respeito que o ser humano deve ter para com a natureza ( "Era
menino/ e o Salgado era como um irmão mais velho"). O Eu poético
reconhece a superioridade da natureza, permanecendo inerte,
deslumbrado diante da beleza e da força das águas do rio. Apenas
dois verbos dão ação ao menino, mas, mesmo assim, são verbos que
dependem da ação do rio para ganharem plena significação:
Eu ouvia sua voz nas águas
E a correnteza sussurava-me
Palavras tão amáveis.
................................................
................................................
levavam sempre uma saudade
que eu sentia - quando elas iam embora.
O permanente
movimento do Salgado, na concepção de Macedo, representa a vida e
sua agitação e tem como sentido a poesia ("As águas eram/ um veio
inesgotável de poesia"). Sânzio de Azevedo por ocasião da posse de
Dimas Macedo, na Academia Cearense de Letras, afirmou que, "na
verdade, o rio Salgado na vossa obra poética não representa morte,
mas vida. É da energia dinâmica de sua torrente que se nutrem os
vossos versos, muitos dos quais refletem o ritmo ora calmo ora
turbulento daquelas águas que banharam vossa infância." [3]
O rio Salgado é uma
presença constante, expressa ou implícita, nas obras poéticas de
Dimas Macedo. O rio habita o poeta e move a sua poesia, despertando
o menino que teima em acompanhar o adulto. Qualquer fato pode
liberar a memória, fazendo com que todo o passado em Lavras da
Mangabeira se transforme em vida. Portanto, é através da memória
involuntária que o poeta ameniza a dor provocada pela passagem do
tempo e reanima a sua infância tão querida. Disso ele nos fala na
linguagem condensada da poesia:
Remiro a sombra
sufoco os passos
torvo a distância.
Cavalgo trôpego
no caos, e lacerado
galopo em dorso.
Pouso na estrada
reclino a face
miro o labirinto.
No absurdo
retorno lúcido
consumo a infância.
Não podemos deixar
de perceber a influência de Fernando Pessoa na obra do escritor
lavrense, influência essa percebida também por José Alcides Pinto.
Por isso transcreveremos um poema sem título do poeta português,
onde é visível a proximidade simbólica e temática com "O Menino e o
Salgado":
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto
Os símbolos da
infância de cada poeta permanecem vivos e sempre estão a reclamar um
poema e a despertar eternas saudades e lembranças. Isto pode ser
observado com nitidez quando Fernando Pessoa, incorporando Alberto
Caeiro, eleva o rio de sua aldeia acima das glórias do Tejo. O mesmo
faz o poeta cearense no poema intitulado "Lavras":
Lavras é a cidade
mais bela do mundo
pois em cada rua
nasce uma saudade
que termina em meu corpo.
Celina Fontenele Garcia em seu estudo sobre Pedro Nava,
assim define o gênero literário memória: "Um ajuste de contas, que
consiste em repensar o passado, para escapar do peso do presente,
para encontrar-se consigo mesmo e com o outro e para estabelecer uma
comunicação externa que preencha o vazio da sua vida (do escritor)."[4]
Dimas Macedo, em A distância de todas as coisas, consegue vencer o
tempo e escapar "do peso do presente". Faz isso com muita maestria e
consciência literária, tornando a sua poesia universal, mesmo
utilizando símbolos regionais e tão particulares.
2. Poesia Insubmissa
A metáfora
fluiu do sonho
e o sopro revolucionário
invadiu os espaços
da esperança
E as multidões
sedentas de justiça
exigiram a renúncia
da opressão
e hastearam a bandeira
da vitória
no coração da praça
E vieram os pássaros
no escuro da noite
bicar o coração dos opressores
e celebrar com seu canto
um futuro de luz que se anuncia
O ser da poesia insubmissa nunca foi devidamente estudado pela
Poética, embora desde Arquíloco até os dias presentes inúmeros
poetas tenham se dedicados a ela. No entanto, com a publicação de
Poesia insubmissa afrobrasilusa (1999), de autoria Roberto Pontes,
os contornos da poesia insubmissa ganharam mais nitidez e concretude.
E é com base nesse estudo que podemos afirmar com toda convicção:
Dimas Macedo é um poeta insubmisso.
Lavoura úmida (1990) é o terceiro livro do poeta de Lavras, e ainda
que se possa ver o lírico, o filosófico e o telúrico, é a temática
social que se sobrepõe, como escreveu Sânzio de Azevedo no prefácio:
"O poeta social está mais forte e presente em Lavoura úmida do que
em qualquer dos livros anteriores do poeta".
Dimas Macedo planta
a sua poesia em terreno fértil, e dela faz brotar o desejo de uma
sociedade mais justa e humana. A palavra ganha a força de uma arma
com o empenho de modificar as estruturas sociais vigentes. "Com
efeito, em razão de seus fins, a palavra e, portanto, a poesia,
podem ser usadas como arma, empregado este termo tanto com o
significado de recurso, meio, expediente, quanto de ataque e
defesa".[5]
O poeta tem a consciência da força modificadora da palavra, pois em
"Teoria do Poema" nos fala:
Do ventre do poema
explode a solidão
Do rosto do poema
sangra a utopia
que apunhala
o coração trôpego do mundo
O escritor toma uma atitude no mínimo ousada para um poeta erudito:
alguns poemas, principalmente na segunda parte do livro, contêm a
fórmula do cordel, como observou Sânzio de Azevedo, e imagens pouco
utilizadas pelos poetas acadêmicos, como estas de "Jangurussu"[6]:
No Jangurussu
os herdeiros da fome
demarcam
os limites obtusos do ócio
Sócios
da esperança e da miséria
os catadores de lixo
do Jangurussu
alimentam a servidão
Soterrados
pelos exploradores
encerram suas dores
no pântano
dos objetos desbravados
Despossuidos e espoliados
sonham
com o verde da vida.
e ruminam o sobejo da usura
O compromisso do poeta com as causas sociais, principalmente
as do
seu país e mais especificamente as da região Nordeste, não compromete, como vimos, o artesanato dos poemas, que permanecem com
a mesma qualidade que é peculiar ao autor.
" Os poemas da
primeira parte do volume, de evidente conotação social, não
descambam, todavia para o discurso ideológico desprovido de
tratamento estético relevante. O artesanato dos seus poemas está
seguramente comprometido com as exigências formais da modernidade
literária". [7]
Outro ponto que confirma a atitude política assumida pela poesia de
Dimas Macedo está na presença dos chamados poemas de circunstância,
que foram utilizados largamente por Manuel Bandeira. A poesia de
circunstância é dita muitas vezes pelos críticos elitistas, que
querem ferir com um golpe fatal um aspecto essencial da poesia
política, como sendo uma poesia menor. Mas versos como estes de " O
corpo do Frei Tito" desmentem esse comentário, por serem universais
e atemporais:
Morreu o Frei Tito
apunhalado pela traição
mas com ele ressuscita
a fome insaciável
de liberdade e de justiça
pois o povo ainda teima
em cultivar a resistência
e em sonhar com a vanguarda
de um tempo menos nebuloso.
Essas atitudes revelam a fala insubmissa de seus textos poéticos.
Pois como escreveu Roberto Pontes:
A poesia
insubmissa, portanto, lida com os temas mais diversos, inclusive, os
mais rechaçados. O poeta insubmisso tem consciência de que a
burguesia no poder não admite o conúbio da poesia com a realidade,
por ser este enlace muito perigoso para os usufrutuários do poder
exercido pelas classes dominantes. Há, portanto, necessidade de
manter certa imagem de poeta que se confunda com a do demiurgo.
Assim neutralizado, o referido poeta ajuda a embair as massas, mas é
bom lembrar que o poeta insubmisso é justamente o contrário deste. É
a voz que lança claridade e distinção; denuncia e guia.[8]
No poema "Utopia", que nos serve de exemplo, o poeta projeta em
versos a concretização do desejo de uma sociedade sem opressão, mais
humana e justa. O autor vai descrevendo os passos a ser seguidos
para a implantação de um novo mundo, desde a idéia, o sonho, até a
anunciação de uma realidade social mais adequada à dignidade da
pessoa humana.
O processo de renovação social se inicia através da poesia ("A
metáfora/ fluiu do sonho"). A partir daí, desencandeia o processo
revolucionário, ou seja, a palavra, usada como arma, trará uma nova
consciência aos povos, que dessa forma conquistarão a sua própria
liberdade.
As idéias vão ganhando mais concretude na medida em que o poema
evolui, e, através da repetição da aditiva ( e o sopro
revolucionário/ e as multidões/ e hastearam a bandeira/
e vieram os
pássaros/ e celebrar com seu canto), o poeta vai criando um clima de
tensão, que é próprio das agitações sociais, além de enumerar as
várias etapas de uma revolução.
Na segunda estrofe ("E as multidões/ sedentas de justiça/ exigiam a
renúncia/ da opressão/ e hastearam a bandeira/ da vitória/ no
coração da praça") , vemos o agir de toda a sociedade com o intuito
de sepultar de vez o terror da opressão. O poema valoriza o homem
simples, que faz parte da grande massa de excluídos e o recoloca
como sujeito ativo e modificador da sociedade. O que confirma mais
uma vez a nossa afirmativa inicial, pois como disse Pablo Neruda em
Confesso que vivi: "devemos exigir ao poeta lugar na rua e no
combate, assim como na luz e na sombra. Talvez os deveres do poeta
fossem sempre os mesmos na história. O valor da poesia foi sair à
rua, foi tomar parte num e noutro combate".[9]
Na última estrofe,
observamos um nuance da poesia insubmissa: a palavra usada com
leveza, mas carregada de indignação e revolta. "A poesia insubmissa
pode emprestar às coisas uma feição de primavera ou de batalha,
enviar flores, ou projéteis."[10]
Uma outra característica da poesia de fala insubmissa é o fato de
ela corrigir o ensimesmamento, ou seja, achar um ponto de equilíbrio
entre o subjetivo e o real. O poeta que pratica tal poesia não
descamba para o puro subjetivismo, nem o despreza, tornando seus
poemas líricos e ao mesmo tempo universais e relevantes para a
sociedade. Parece que esse equilíbrio foi preciosamente encontrado
por Dimas Macedo em Lavoura Úmida.
3. Criação e Existência
A tarde cai
e em mim
a magia do tempo se irrompe
eis o futuro: ontem.
Corre no meu corpo agora
o vento
que em mim muito embora distrai
o pensamento.
Estou exposto à sorte
e a chuva
me anuncia a morte
e me turva
Me mito é o Santo Graal
E o poema é estranho,
Insisto,
e no poema me banho,
eis tudo: a vida é um absurdo.
O poeta lírico é capaz de tingir os sentimentos, tornando-os
visíveis e vibrantes através da palavra. Por isso, a poesia lírica
transpõe os limites da racionalidade, transcende o cotidiano e nos
dá a medida exata da condição humana. Estrela de pedra (1994), o
terceiro livro de Dimas Macedo, traz um eu lírico agitado, em uma
luta constante com o cosmos.
O pequeno volume reúne vinte e cinco textos poéticos distribuídos
uniformemente em três blocos: “Leveza”, “Gravidade” e “Orfeu de
mim”. Trata-se de um fruto amadurecido pelos anos de convivência do
autor com a palavra. Dimas Macedo encontra em Estrela de Pedra a
forma poemática que melhor acomoda seus transbordamentos líricos.
Cada poema é tecido por uma linguagem extremamente condensada; cada
verso oferece uma enorme variedade semântica. O próprio
sintagma-título nos traz inúmeras sugestões: estrela (vida, luz,
agitação) – de pedra (morte, inutilidade, inércia). Em algumas
passagens, observamos construções sintáticas singulares, que
confudem o leitor e acrescentam novas possibilidades ao nosso
idioma. Perceba o sentido incomum dado aos verbos em “Magia”
Estrangulo-me nas mãos da primavera.
Dilacero-me na dor
Das sombras que ensagüento.
...............................................................
..............................................................
Preciso-me de sentimentos
raros e impuros.
A infância, tema corrente nas obras anteriores, volta a habitar
alguns versos, não com o mesmo vigor, mas apenas com símbolos e
imagens que ilustram e aprofundam o mistério dos poemas. Novamente o
rio Salgado:
Na pedra
Está a fúria do enigma.
No mármore
Está a lâmina do efêmero.
Na ponte sobre o rio
as estacas de sol dos teus cabelos. (...) (p. 26)
Aura de fogo adejo
O Salgado é a espuma
E as asas do desejo
E o rito e a miçanga (...) (p.28)
O lirismo não afasta os temas sociais, ao contrário, faz deles
matéria poética. Consciente disto, Macedo intitula o poema de maior
insubmissão do livro de “Lírica”. Uma bela peça, onde o eu poético
se confunde com as massas e a angústia dos oprimidos:
Reina a indefinição dos dias
E a agonia do caos é o meu instante
Revejo o vento por perto
E no entanto para você,
Ele me olha nos olhos, proclamo:
Minha solidão não tem causa.
......................................................
......................................................
Estou com frio e com fome
não tenho pátria nem nome
e eis que todo o passado não mente:
eu tenho a morte cravada nos dentes.
Como observou Paulo de Tarso Pardal (in
Dimas Macedo e a poética da
dor. Inédito), “o lirismo de Dimas Macedo se elabora através de
vários elementos semânticos. O afã, a desilução, o desejo, a dor, o
caos, a tragicidade, a sensualidade, a efemeridade e o telúrico são
alguns desses elementos, que em alguns poemas, aparecem num todo
harmônico.”
Há no livro, no entanto, uma constante ou
leit motiv que constrói o
que podemos denominar de poética da dor. O eu lírico, dotado de uma
sensibilidade sem igual, convive intimamente com o “sopro dos
contrários”, ou seja, com a presença inevitável da morte na vida.
Sem soluções racionais ou espirituais para o conflito, resta ao
poeta cantar a própria dor:
Para isto a vida:
o sopro dos contrários.
O fogo dos presságios
Queimando as nossas mãos.
Para isto o corpo:
O dorso maduro dos afagos
O mar. O impossível
Oceano no qual nos afogamos
Para isto a morte:
o ócio das palavras
A paixão. O desejo
E o conflito de quem sentiu o beijo.
Evitar a morte do desejo; prolongar ao máximo a dor existencial, eis
a forma encontrada pelo poeta para estancar o tempo e criar a partir
do caos. É por esta fenda que podemos enxergar no livro a relação
entre a arte e o amor. O amor liberta o Eu, ao mesmo instante que
intensifica neste a consciência de sua finitude. Temeroso pela
satisfação do desejo, pelo aniquilamento de Eros, o Eu grava na
“pedra” da linguagem o momento de sua liberdade, ou seja, eterniza a
paixão nas palavras. Dessa forma, amor e arte se complementam, e
contraditoriamente só se tornam possíveis com a certeza da morte. O
poema “Linguagem” nos serve de exemplo:
A emoção de segurar uns seios
de apertar um rosto
de solfejar um beijo
e depois despir
do corpo a repressão
para poder nascer
em nós a doação
até onde o querer
a plenificação
se possa permitir
e o amor
se possa traduzir
nas dobras do olhar
eis o meu jeito
novo de amar,
eis a paixão
que em mim quer explodir,
posto que transgredir
a convenção
é o meu plural,
posto que é natural
em mim
essa fascinação.
Em “Lavragem”, o autor declara a sua condição de poeta. A condição
de um ser que se esconde entre metáforas e não se conforma apenas
com o olhar opaco da razão, procurando outros pontos de observação
do mundo e da vida:
Saber para si basta ao mistério:
Eis-me tudo e o sonho que é tudo.
A arte é a dor
e a vida pela vida é o escárnio
posto que a metafísica
é sempre a liturgia do dilúvio.
Não me deixem confessar
o sonho que borbulha
e o drama que me parte
pois a lâmina da razão é a inverdade
e a dúvida é a certeza que reparte a dúvida.
O mito de toda a existência é sempre a arte.
Interessante é o poema “Ortônimo”, onde o escritor presta homenagem
aos vários heteronônimos de Fernando Pessoa. Como que em um jogo de
espelhos, o poeta identifica as várias facetas do seu Eu na poesia
múltipla de Pessoa. As rimas sofisticadas contrastam com o ritmo,
que se aproxima do popular. “Ortônimo” é singular e nos lembra o
estilo de Francisco Carvalho:
Quando lavro um poema
Me louvo e me alquebranto
Eu me apodero do espírito
De Álvaro de Campos
Em mim boiam detritos
Do sangue português
E o transe mediúnico
De Antônio Mora
Em Rafael Baldaia
Me vejo por inteiro
A voz e o coração
De Alberto Caeiro.
Inúmeras leituras podem ser feitas do terceiro trabalho poético de
Dimas Macedo. A contenção de linguagem alcançada oferece ao leitor
um livro completamente novo a cada dia. Estrela de Pedra continuará
brilhando, como disse José Alcides Pinto, por muito tempo em nossos
pensamentos
4. Estética do Caos
Que desça sobre mim a noite
e em mim habite o vento
renovando as pedras da linguagem
Que sobre mim se instaure
o sopro da memória
e o mistério dos astros
e tudo o mais que eu possa suportar.
Que chova sobre mim
espadas de dilúvio.
Que caiam sobre mim escuridões.
Sou claridade dissipada
em tarde de amor e liturgia.
O poeta que não
cantar o seu tempo está condenado a desaparecer. A melhor poesia
sempre foi aquela que conseguiu refletir e recriar o momento
histórico vivido pelo artista. "Um poeta ou procura impregnar-se da
alma do seu tempo ou passará ignorado como o vento que se dispersa
numa planície devastada pelo fogo".[11] Liturgia do
Caos (1996), o mais recente trabalho de Dimas Macedo, traduz a
angústia pela qual passa o homem nesse final de milênio, vivendo em
um mundo sem sentido e sem perspectivas. Trata-se, pois, de um livro
atual, tanto no que diz respeito à matéria quanto ao artesanato dos
poemas.
A linguagem concisa, objetiva, que vinha sendo construída ao longo
da trajetória poética do autor, culminando com Estrela de Pedra
(1994), é consolidada em Liturgia do Caos. Ela reflete o
amadurecimento e a atitude endurecida de um homem que não se deixa
iludir diante da possibilidade de modificar o mundo caótico que o
cerca. Exemplo dessa linguagem está em "Salitre", poema
completamente nominal, não fosse o neologismo "ressangrar":
Não obstante
a vontade amofinada,
a tarde assim selvagem
a ressangrar as pompas.
Roupas colantes,
o corpo e seu salitre
e a navalha da língua
sobre a carne.
O paletó no armário
e a ressaca da nuvem nos meus olhos.
O livro se divide em três fragmentos: "Vertigem", "Voragem" e
"Outros poemas". A investigação sobre o fazer poético é a temática
de maior destaque. A arte é vista como uma clareira de paz e
harmonia em meio a uma desordem geral. É através dela que o poeta
tenta organizar o caos em que vive.
A poesia social está presente em alguns textos do volume. Dimas
Macedo comprova mais uma vez estar comprometido com as causas
sociais. "Legenda" é um belo exemplo de poesia insubmissa:
Vou sair por aí
com um lenço nas mãos
enxugando o suor
na testa dos que sofrem,
agitando a bandeira da paz
como uma taça,
erguendo entre os homens
a lenda da concórdia.
Iremos encontrar, também, versos carregados de erotismo, que revelam
a busca da plenitude, como observou Lourdinha Leite Barbosa:
"O erotismo, presente em alguns poemas, revela um ser em busca de um
estado de comunicação. O poema "Casulo", cujo título já indica o
isolamento do ser, a sua descontinuidade, é um exemplo da forma de
erotismo que Georges Bataille denomina erotismo dos corpos. Nele, o
discurso poético revela o desejo do "eu lírico" de substituir a
individualidade descontínua que está em nós, por um sentimento de
continuidade profunda, através da fusão de dois seres que ao final
chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução".[12]
O poeta telúrico, nostálgico, aparecerá com maior intensidade no
último segmento de Liturgia do Caos. "Balada", poema construído em
redondilha maior, com rimas abraçadas, lembra a poesia popular do
Nordeste, e nos mostra o laço indissolúvel que prende o escritor a
sua terra natal:
Trago das ruas de Lavras
uma saudade infinita:
não é a minha desdita,
são as lembranças de Lavras.
Minha infância lá em Lavras
sempre foi cheia de mitos.
O maior dos meus conflitos
é ver a morte de Lavras.
O amor que dedico a Lavras
é feito de labirintos.
Sinto meus olhos famintos
pelos encantos de Lavras.
O traço mais marcante da obra, no entanto, é a investigação sobre o
papel do artista e o que deve representar o seu trabalho nos dias
correntes. O autor explora o "eu", buscando compreender as
contradições que tanto o afligem. Nesse mergulho interno, ele nos
traz imagens surrealistas de um mundo que anseia traduzir:
Esses cavalos
sobre os edifícios
pastando sonhos
sãos os objetos
com que distraio
a dor dos meus conflitos.
Esses monstros
pintados de concreto
são os tecidos de linho
com que visto
a solidão de um drama
que carrego.
Esses gatos alados
são terríveis
revelações
do que ficou oculto
e reprimido
em meu destino incerto.
Em "Poética", Dimas Macedo expressa um dos conflitos que tanto o
consome. Consciente de que a conseqüência inevitável de toda criação
poética é a pequena morte do sujeito que escreve, angustia-se ao
perceber que aquilo que mais teme, a morte, é a razão da sua própria
existência, pois esta só se realiza com a poesia. O poema tem a
forma de um silogismo: o primeiro verso representa a premissa maior,
o segundo e terceiro versos a premissa menor e os dois últimos a
conclusão. Se não vejamos:
O aprendizado da morte é a existência.
A experiência da morte é o meu aprendizado
e o meu permanente vir a ser.
A inspiração da morte me faz compreender
a relação do artista com o mundo.
A eternidade da morte
é o meu sentimento mais profundo
assim como o absoluto da vida
é o desejo de produzir a arte.
Como uma obsessão que dói e me reparte
a volúpia da morte
é o eterno delírio que me espreita.
Para mim o sentido da vida é a suspeita
de que a morte é a simetria da minha liberdade.
O aprendizado da morte é a existência; a experiência da morte, ou
seja, o fazer poético, é o aprendizado; logo, o fazer poético é a
própria existência, a liberdade. Eis aí o pensamento que move toda a
obra, influenciado pela filosofia heideggeriana, que nos fala que "a
poesia é a casa do ser; só através dela é possível comemorá-lo sem
perdê-lo de vista; só ela é capaz de evocá-lo em seu momento
fulgurante. O ser é uma surpresa que os poemas ajudam a
vislumbrar."[13] O "vir a ser" do poeta, a sua existência, só se
realiza enquanto ele estiver exercitando a imaginação.
A força modificadora da imaginação e a esperança na juventude
indicam o caminho para uma nova realidade, bem diferente da atual,
formada por mitos em plena decomposição:
Talvez tenha dito o Eclesiastes
que nada de novo existe sob o sol,
mas pouco falou da Lua e quase não falou
do sonho que reside em cada um de nós.
A tarde preguiçosa também se levanta
e dengosa é a canção do vento que remove
o lixo da história e a Torre de Babel.
O sal do tempo se renova e passa,
assim as escrituras todas passarão,
deixando sobre a terra a crença na expressão
e sob os raios do sol a arte da palavra.
Dimas Macedo, em
Liturgia do Caos, expõe os problemas existenciais
que afligem o homem moderno. Partindo dos seus conflitos internos,
dilui-se no caos vivido pelo mundo, pois, como afirmou Mário Quintana, "o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois
cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época,
só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano".
[1] PINTO, José Alcides. In A distância de todas as
coisas. Fortaleza: Livraria Gabriel Editora, 1987, 2ª edição, pags.83-86.
[2] LINHARES FILHO, José. In A distância de todas as coisas.
Fortaleza: Livraria Gabriel Editora, 1987, 2ª edição, p. 81.
[3] AZEVEDO, Sânzio de; "Saudação a Dimas Macedo", in Discursos
Acadêmicos. Fortaleza: Imprensa oficial do Ceará: 1990.
[4] GARCIA, Celina Fontenele. A escrita Frankenstein de Pedro Nava.
Fortaleza: Edições UFC, 1997.p.27.
[5] PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa. Fortaleza:
Edições UFC/ Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1999. p.39
[6] Bairro pobre de Fortaleza, onde se situa a principal rampa de lixo
da cidade.
[7] CARVALHO, Francisco in Estrela de Pedra; Brasília, Editora Códice.
1994. P.46
[8] Ibidem, p. 35-36
[9] NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. Trad Olga Savary. Rio de
Janeiro: Difel 1974. p. 295
[10] PONTES, Roberto, Op. cit, p.34.
[11] CARVALHO, Francisco. Textos e contextos. Fortaleza: Casa de José
de Alencar/ Programa Editorial, 1995. p.127.
[12] BARBOSA, Lourdinha Leite. O percurso de um poeta. Inédito.
[13] BORGES, Contador. A surpresa do ser, in Cult -Revista brasileira
de literatura- n.28. São Paulo: Lemos Editorial Gráficos Ltda.p.38
Leia obra poética de Dimas Macedo
|