Rafael Montandon
Análise do Poema “Bio”, de Augusto
de Campos
A rigor, não é preciso ler “Bio” para avaliar a importância de sua
materialidade em seu conjunto. O mais fugaz vislumbre será capaz de
revelar a radical inversão da “relação cromática”, por assim dizer,
tradicionalmente estabelecida entre letras e área vazia da página,
realizada pelo poema. Aqui, as palavras compõem-se de finas linhas
brancas, com as quais o preto predominante da folha contrasta,
recheando os espaços vagos por elas delimitados. Em breve, ficará
demonstrado como é significativo para o poema esta idéia de
vacuidade, transmitida, sob a forma de sensação, pelas suas palavras
translúcidas.
“Dark Dark Dark” - o primeiro verso reforça a impressão visual
produzida pelo negrume da página. Esta reiteração vagamente
obsessiva da idéia de escuridão ganha certa conotação melancólica
quando a palavra “Vazio” surge desacompanhada no segundo verso, como
que dita em tom definitivo. “Do quasar ao quark” possibilita o
início de uma análise semântica mais sólida. Tais termos
científicos, introduzidos e separados respectivamente por “do” e
“ao”, evocam o escrutínio minucioso da física quântica, que se
estende às mínimas e mais tênues partículas do cosmos, esmiuçando
seus íntimos desvãos. O poema aparenta ter se lançado a vasculhar o
universo, esforço que resultou tristemente infrutífero. Sua
investigação revelou o universo oco, preenchido pelo escuro Nada,
desde o quasar até o quark. Já aqui sentimos o cheiro de desilusão
metafísica.
Na estrofe seguinte, segunda e última do poema, tal olhar
investigativo redireciona-se para (ou atinge) o “Eu”, habitante
solitário do décimo verso. Os resultados parecem ser semelhantes, já
que, “deslido”, o “Eu” revela-se “Sombra” e “Simulacro”, termos
platônicos aqui impossibilitados, por efeito de adjacência, de
inferir a existência de um “Modelo”. Antes de mais nada, “Eu” é um “Bio”,
palavra-título que sugere carnalidade e organicidade. Resta saber
sobre suas proporções, relativisadas pela perspectiva; e se trata-se
de um palhaço, vítima, talvez, de alguma piada cósmica, ou de mera
reprodução padronizada de algum original obscuro.
A ausência de pontuação, regra geral no poema, impede-nos, contudo,
de saber se o “Que” do oitavo verso tem sentido interrogativo ou
explicativo; se, por conseguinte, os termos “Micro” e “Macro”, e
“Clown” e “Clone”, se opõem numa dúvida, ou complementam-se numa
afirmação. Seja como for, o ser a que se referem desconfia
profundamente de si mesmo. Com efeito, é incorrer em erro chamá-lo
de ser, já que nem ele nem nós sabemos ao certo se ele de fato “é”.
Tudo que sabemos é que ele sonha, e que o faz insone. Talvez, não
passe de um produto de seu próprio sonho acordado.
Tal incerteza, tão velha quanto Platão, Descartes ou Sartre,
constitui a problemática central do poema. Mesmo que, no nono verso,
possamos ler o verbo Ser afirmativamente conjugado na primeira
pessoa, constatamos que ele se encontra indissosciado do predicativo
“Bio”. De que o “Eu” está vivo, não resta dúvida; o que gera
inquietação é a pergunta: qual é o sentido profundo de tal coisa? Ou
pior: tal coisa tem mesmo algum sentido profundo? O poema parece
tender à resposta negativa, se é que não opta por ela em definitivo.
É o que indica a recorrente idéia de vazio que permeia o texto,
assim como os termos “Sombra” e “Simulacro”, utilizados para
caracterizar o “Eu”.
É de se notar em “Bio”, uma intensa preocupação com a elaboração
formal do texto. É como se o poeta quisesse imprimir à sua obra, o
sentido e a lógica que não encontra em si mesmo e no universo. Daí o
esquema de rimas rigoroso e a alta disciplina rítmica, a despeito da
metrificação irregular. Além disso, constata-se a presença ostensiva
de aliterações e assonâncias ao longo de todo o corpo do texto.
Chega-se mesmo a adotar termos em inglês em nome do efeito sonoro.
Podemos identificar “Bio” como a expressão de uma angústia
existencial antiga, que, todavia, dispensando pontos de exclamação e
interjeições, manifesta-se através da simetria objetiva e friamente
moderna do poema concreto.
Dito isso, a análise dá a impressão de estar feita, e este estudo
parece desejar concluir-se. Há um dado extratextual, entretanto, que
nos sugere que o trabalho ainda não terminou. Não extraímos este
poema direto de algum livro de Augusto de Campos, mas o encontramos
em uma coletânea onde, supõe-se, todos os poemas versam sobre o
fazer poético. Mas onde estaria o elemento metalinguístico em “Bio”?
Vimos que, na segunda estrofe, um certo olhar escrutinador que
caracteriza o poema desvia-se para o “Eu”, ali desmascarado em seu
caráter de simulacro. Poderia aquele “Eu” solitário do décimo verso
referir-se ao “Eu poético”? Neste caso, o organismo aqui chamado
“Bio” seria o próprio todo orgânico do texto, construção artificial,
sombra ou clone de seu autor. Dão suporte a esta tese o termo
“simulacro”, que originalmente designava as obras de arte miméticas,
e o verbo “ler”, acrescido do prefixo “des”.
Não se trata aqui, no entanto, de estabelecer duas possibilidades de
leitura excludentes para o poema, e sim de reconhecer que o sentido
profundo deste advém precisamente da coexistência simultânea destas
duas possibilidades. Aplicável tanto ao “Eu poético” quanto ao “Eu
real”, por assim dizer, o poema termina por denunciar, em tom de
desilusão, a artificialidade de qualquer “Eu” . Sua ambigüidade
não-excludente atesta, em vez de apenas sugerir, ser a subjetividade
não uma emanação absoluta de algum modelo ideal ou de alguma alma
individual, mas algo que se constrói, de forma análoga à que se
constrói um poema. Na violência de tal blasfêmia, e, principalmente,
em ser ela, ao mesmo tempo, tese e evidência de si mesmo, é que
reside a força de “Bio”.
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