Rafael Montandon
Invocação aos
prédios
I
Ó prédios altos, prédios gigantescos,
Íd’los grandiosos de vidro e concreto,
Colossos rígidos, titãs grotescos,
Cujo perfil, tão laminar e reto,
A natureza tumultuária insulta,
Na vossa inércia indiferente aos anos,
Que a minha lira digital exulta,
Compadecei-vos, ó deuses urbanos,
Dos órfãos tristes do Sol e da Lua,
Dos que, descrendo de hóstias e de salmos,
Têm de invocar os prédios frios da rua.
Podeis ouvir meus gritos, monstros calmos?
Do alto, escutais criatura tão pequena?
A vossa face, grito algum conturba,
Lúcida e plana, austera mas serena,
Nem mesmo o intenso murmurar da turba -
Permaneceis impávidos, terríveis;
Que a minha súplica, com esta cantiga,
Possa ascender través os vossos níveis
Mais elevados, que o olho não lobriga:
Ah! Apiedai-vos, grandes edifícios,
Dos aborígenes dos precipícios!
Subi, subi, mais alto que a montanha
Mais colossal que os horizontes risca,
Do Olimpo audaz que o firmamento arranha,
Ultrapassai a culminância prisca,
Ide atingir além dos próprios astros,
De onde se avista a Sina dos mortais,
E iluminai, de lá, os nossos rastros,
Com as vossas luzes artificiais!
II
Prédio que irrompe da aridez da rua,
Para obstruir do sol os mornos brilhos,
Cuja alta antena, ultrapassando a lua,
Vai lancetar os astros nos fundilhos,
Babel de vidro audaz que os céus perscruta,
E as altitudes desta Terra apouca,
Bastante inerte p’ra ser absoluta,
Bastante lúcida para ser oca,
Prédio, a ti rogo, tu que fende os ares,
Da pequenez que habito, me captura,
Rapta-me, eleva-me, por teus andares,
Até a tua supra-empírea cobertura,
Onde não se ouça o ronco das buzinas,
Ou os motoristas trovejando acintes,
Onde não se hauram mestas fedentinas,
Onde não soe a nênia dos pedintes...
Lá, erguer-se-ão marmóreos chafarizes,
Árvores, plantas, flores, cogumelos,
Que eu povoarei de dríades felizes,
Faunos flautistas, duendes amarelos -
Uma abundância de fantasmas fúteis.
E os dias correrão sem empecilho...
Absolver-se-ão os telefones, úteis
Para pedir comida a domicílio.
O Feio abolir-se-á da minha ermida,
Com ele a Dúvida e a Destemperança,
Tudo será sossego e paz... e a Vida,
Hei de assisti-la, externo e em segurança,
Devidamente aplainada e angular
Por trás do vidro da televisão,
E quando o sono vier, basta apertar,
Como num anti-Fiat!, um botão.
Faz com que eu possa, Prédio sobranceiro,
Alçado à tua culmíada medonha,
Fugir da Luta, que eu não sou guerreiro,
Eu sou um poeta, que não se envergonha
De sua fraqueza e falta de coragem,
Que o impediria mesmo de matar-se;
Lá, viverei, mas de ócio e de miragem,
E, cá embaixo, o mundo que se esgarce.
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