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Rafael Montandon


 


Análise do poema “Dizer”, de Augusto de Campos
 


 

É preciso forçar a vista para ler “Dizer”. Olhando as letras amarelas escritas sobre um fundo branco, tem-se a impressão de que todo o texto, seguindo a sugestão de que se compõe a 1ª estrofe, resolveu “desaparecer”, refundindo seu corpo à página. Três palavras, entretanto, saltam aos olhos pelo tamanho de seus caracteres: ser, sem e dizer. Lidas nessa seqüência, pervertendo a linearidade do poema, elas sugerem a pretensão concretista de transcender os limites da linguagem para produzir o poema-coisa, isto é, aquele que supera a mera representação, atingindo a apresentação. E se formos mais longe em nossa perversão (a que o próprio texto nos convida), e invertermos a ordem das três palavras, lendo-as de baixo para cima, chegaremos a uma espécie de máxima da poesia moderna: dizer sem ser. Prefigura-se aqui a segunda estrofe do poema; a criação poética desvinculada da crença mística no Eu absoluto, a desilusão religiosa e a decadência da Metafísica.

A terceira estrofe aponta para a mesma direção: qualquer que seja a ordem em que se escolha ler os três versos, percebe-se a oposição estabelecida entre a eficácia do dizer e o “nível de presença”, por assim dizer, do poeta. Novamente, é o conselho da primeira estrofe que parece ser acatado; o poeta deve subtrair sua subjetividade do texto, dessa forma “desaparesendo”, isto é, parando de ser.

O jogo com as palavras é envolvente. O modo como elas se repartem e se fundem autônoma e expressivamente, a liberdade do leitor em relação à ordem da leitura, a frieza mesmo com que são maquinalmente enunciadas, sem um ponto ortográfico sequer que sugira emoção, tudo concorre para que nós nos convençamos de que estamos diante de um objeto puro, e, por alguns momentos, nos esquecemos da inteligência minuciosa que selecionou e organizou aqueles vocábulos, de modo a expressarem a sua perspectiva particular das coisas. Mas eis que o segundo verso trai o transe a que o poema nos seduz: Pare. Trata-se de um verbo como que gritado no modo imperativo, comando que denuncia o forte caráter de programa do texto.

 



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