Rafael Montandon
Análise do Poema Vôo Noturno, de
Heitor Gentil Montandon
Retirado de: GOMES, Abeylard Pereira (et al.), A Toga e a Lira; 1ª
Edição; RJ: Editora Record, 1985
Vôo Noturno
[1] Outra vez estive lá fora,
[2] outra, tantas outras vezes
[3] e a noite estendia sobre mim
[4] seu mistério estelar.
[5] Nada mais que a noite eu vi.
[6] Estrelas, satélites,
[7] brilhos no silêncio sideral.
[8] Soltei os braços no espaço
[9] e os pés de chumbo negaram-me a fuga.
[10] Outra vez estive tão próximo
[11] da liberdade total
[12] e sobre o cricrilar de grilos indiferentes
[13] eu ouvi minha pulsação jugular
[14] Blum! Blum! Blum! Blum! Blum! Blum!
Vôo Noturno é um poema narrativo, escrito na segunda metade do
século XX, em quatorze versos livres e brancos. Nele, conta-se uma
pequena estória, em primeira pessoa, dentro do consagrado modelo do
“Passeio Noturno”. A cadeia dos eventos e sua narração, entretanto,
são completamente determinadas pelo filtro da experiência íntima, o
que confere ao texto um forte caráter lírico. O que a análise
subseqüente pretende explicitar é a tragicidade pertinente à obra em
estudo, menos que evidente, talvez, à primeira leitura. Para isso,
será explorada a idéia de que o trágico, em Vôo Noturno, liga-se à
impossibilidade de superação dos limites individuais, na tradição do
romantismo alemão.
O poema se inicia fornecendo dados importantes para sua leitura: por
um lado, o verbo conjugado no pretérito nos informa que estamos
diante de uma narrativa e a expressão “lá fora” estabelece o cenário
aberto em que a ação deverá transcorrer (verso 1); por outro, “outra
vez (...) outra, tantas outras vezes” transmitem a idéia de que o
que está sendo narrado tem se repetido constantemente ao longo do
tempo (verso 2). Mais adiante, o verso 10 virá emprestar um certo
sentimento de esforço frustrado a esta repetição.
Do verso 3 ao 7, o eu lírico se vê diante do que poderíamos chamar
de “Grande Noite”, figura cheia de reminiscências míticas,
recorrente na poesia chamada “de tendência mística”, que evoca as
idéias de infinito, mistério, grandiosidade e unidade original. As
imagens com que tal encontro é descrito são reveladoras quanto à
relação estabelecida entre eu lírico e noite. Silenciosa como a
temível Nyx grega, ela o encobre inteiro com seu mistério (versos 3
e 4), num movimento tão maternal quanto devorador. Todo o seu campo
de visão fica, assim, dominado (verso 5), o que compõe uma paisagem
una e totalizadora. Ele se perde na contemplação dos corpos astrais:
atingi-los representaria conquistar a “liberdade total”, da qual se
sente próximo (verso 10).
É neste ponto que a sua Hybris, por assim dizer, se manifesta. Até
aqui, sua relação com a noite se dera exclusivamente pelo olhar e
pelo devaneio. A desmesura, porém, faz com que ele se acredite capaz
de transpor a barreira entre fantasia e ação, erguida entre o seu
sonho de liberdade e um autêntico “vôo noturno”. Esquecido das
próprias limitações, ele tenta abandonar o solo, lugar natural do
homem, e elevar-se até o corpo ubíquo da noite.
É interessante reparar como tal empreitada tem caráter escapista,
como deixa bastante claro a palavra “fuga”, usada para
caracterizá-la. A realidade terrestre parece não satisfazer o eu
lírico pela falta de “liberdade”. Esta imagem divinizante e
totalizadora da noite, associada à altura e ao espaço ilimitado, se
lhe apresenta, então, como possibilidade de evasão para os limites
em que se circunscreve. Seus “pés de chumbo”, entretanto, emblema
perfeito da intransponibilidade destes mesmos limites, frustram seus
esforços (uma vez mais, como ele dá a entender). É de se notar a
dualidade quase barroca deste eu lírico, dividido entre os próprios
membros superiores e inferiores: se tenta alcançar o céu, esticando
os braços em direção ao espaço, a terra lhe é inescapável, pela
atração gravitacional que exerce sobre seus pés.
Súbito, seu transe extático se desfaz. O solene “silêncio sideral”
que o envolvia é quebrado por dois ruídos, que são os clarins da sua
derrota: primeiro, o “cricrilar” dos grilos, como que a voz da
realidade, completamente alheia ao seu delírio; depois, sua própria
“pulsação jugular”, testemunho irrevogável de sua carnalidade, marca
da sua condição de humano, incapaz de se imiscuir aos astros
imateriais. Os pontos de exclamação, colocados após cada “Blum”,
explicitam a dramaticidade de que se imbui, neste poema, o ritmo do
sangue na veia.
O arquétipo do “Passeio Noturno”, mencionado anteriormente,
manifesta-se em variados tipos de poesia e é capaz dos mais diversos
desdobramentos. Parece se distinguir, entretanto, por retratar um
protagonista solitário, que, errando por uma paisagem noturna,
encontra-se como que apartado do restante do mundo, experimentando,
assim, com intensidade inusitada, o próprio caráter individual. Tal
situação favorece reflexões sobre a solidão da condição humana e a
pequenez do homem diante do universo, reflexões que podem suscitar
tanto maravilha quanto angústia, mas parecem provir sempre do
contraste entre a universalidade da treva indiferenciada (ou do
espaço que se desvela, longínquo) e a individualidade estreita do
passeante.
O poema em estudo não é exceção para o que foi dito acima: sua
problemática central é o confrontamento entre o indivíduo e a
“Grande Noite”, que o fascina e sobrepuja. Seu título, entretanto,
conduz a primeira impressão do leitor na direção oposta à do seu
desenvolvimento. O desenrolar da estória confere um sentido irônico
à expressão Vôo Noturno, revelando o fracasso do protagonista em sua
tentativa de “fugir” pelos ares. O desenlace daquele confrontamento
não se dá pela fusão extática entre indivíduo e totalidade, mas pela
reiteração trágica dos limites da condição humana. O único vôo
efetivamente realizado pelo eu lírico é o do desejo e da imaginação,
através do qual, aventurando-se até a altura do “mistério estelar”,
nada mais faz que preparar a própria queda icárica. Mas não é
adequado falar em “queda” para descrever o desfecho desta
desventura. De fato, o eu lírico nem chega a alçar os “pés de
chumbo” do solo que os aprisiona. Não há aqui qualquer suntuosidade
catastrófica; mesmo assim, é a Hybris do eu lírico que fica exposta,
quando do fracasso da sua decolagem. Eis onde reside a tragicidade
de Vôo Noturno.
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