Desde há muito existe uma espécie de
discriminação com o Regionalismo. E eu não tenho dúvidas: é mais
uma estratégia de parte da crítica preconceituosa do sudeste
para desqualificar um movimento que foi quem melhor respondeu
aos anseios de se responder ao Brasil a partir do Brasil.
Quem, depois de 1930, superou, em
termos de qualidade, a ficção brasileira de 1930? Guimarães
Rosa? Mas, o próprio Rosa se abeberou, e muito, do regionalismo.
No entanto, para muitos, o Regionalismo acabou. Acabou coisa
nenhuma! Nenhum assunto se esgota, a não ser que não se tenha
engenho e arte para se inovar, através do estilo, avesso a
clichês, jargões e chavões.. E chego ao que eu quero: Ronaldo
Monte. É regionalista? É. Mas de um regionalismo da alma que, ao
fim e ao cabo, termina em se transformar universal.Existe uma
história de Jung segundo a qual o homem tem medo do porão. E
realmente tem, pois, afinal de contas, o porão é subterrâneo, é
a ausência do sol, é um mundo impregnado de sombras, de objetos
imprestáveis, heteróclitos, desencontrados, faltos de tudo e de
todos.
Daí, ainda segundo Jung, o homem
preferir o sótão em função do seu medo, pois o sótão é o
consciente, o mundo claro, solar, onde tudo é bem visível,
previsível e definido. E tanto é assim que o próprio Jung
arremata: "A consciência se comporta então como um homem que,
ouvindo um barulho suspeito no porão, se precipita para o sótão
para constatar que aí não há ladrões e que, por conseqüência, o
barulho era pura imaginação. Na realidade esse homem prudente
não ousou aventurar-se ao porão".
Em outras palavras, no sótão - reduto
do consciente - o homem não só racionaliza os seus medos como
cria mecanismos de defesa para melhor combater os seus
fantasmas, fobias, neuroses e angústias, ao passo que no porão -
reduto do inconsciente - a "racionalização é menos rápida e
menos clara".
Ronaldo Monte montou a sua oficina de
escrever no porão. E, como bom e ousado psicanalista que é,
escreveu a partir daí o excelente "Memória do fogo" (Editora
Objetiva Ltda, Rio de Janeiro, 2006), cujos personagens,
"Precocemente fracassados, perdidos em algum ponto do Nordeste
Brasileiro - conforme bem o diz Rosa Amanda Strausz -,
perderam-se também do fio que conduz à vida. Em volta do fogo,
partilham apenas da cachaça, água que queima". Os estranhíssimos
viventes de Ronaldo são sombras que só ardem e "brilham" ao pé
das fogueiras acesas. E embora de carne e osso, parecem
fantasmas saídos de um livro-porão: este "Memória do fogo", um
dos grandes lançamentos do ano de 2006.