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Jornal do Conto

 

 

Rodrigo Petronio


 


O inimigo oculto


 

– São cacos de um vaso pré-colombiano. Precisamos limpar a área e trabalhar nela até desenterrarmos o resto.

E prossegue fazendo uma dissertação sobre as condições específicas daquele sítio e seu valor. O lavrador e sua mulher olham intrigados o movimento dos lábios do rapaz e seu rosto robusto sem compreender bem as suas palavras, que se fundem em sons agrupados e repercutem em blocos de imagens, uma hora ou outra compondo um quadro legível de sensações para logo em seguida submergirem de novo em uma massa de sílabas que se sobrepõem umas às outras.

– Mas, e a nossa casa?

O jovem pesquisador se lamenta com algumas palavras brandas e some dentro da escuridão insinuante que vinha de trás dos montes como um véu.

– Mais pra cima!

Os tratores levantam suas bocas cheias de terra e a despejam nos arredores do casebre, compondo uma vala que já vai a meio caminho de inscrevê-lo em seu centro. O homem anda vagaroso entre os operários que circulam insistentemente de um lado para outro; agacha-se de cócoras perto de uma árvore e fica observando os aventais brancos se movendo sob a ação do vento enquanto aperta nas mãos fechadas um naco de terra vermelha que lhe escorre entre os dedos feito areia fina. Ao longe cavalos trinam as patas de vagar no chão lamacento, puxando os arados, e somem atrás de algumas ruínas de casas amarelas e azuis. Agora são esses, os ditos que vem me enfeitiçar e carregar minha vida. Sempre tem alguém brincando com a gente, e por trás de tudo talvez Deus deva brincar com todo mundo. Sua mulher vem com o vento à distância, com seus vestidos esvoaçados, os olhos apertados quase fechando com a areia vermelha que se levanta. Diz três palavras brandas e carrega o esposo atrás de si. Alguns latidos rangem como serras brandas enquanto o sol mingua à força querendo durar um pouco mais no horizonte.

– Precisa fazer um reparo nisso – bate com as mãos grossas nos batentes do umbral e pisa no pórtico da cozinha, os degraus rancorosos deixando escapar alguns grunhidos.

– Não precisa de mais nada. Agora não precisa de nada – ela responde dobrando a quina da parede em direção ao quarto.

Pelo postigo de vidro quebrado, fita em silêncio os homens tomando nota e recolhendo os cacos em pequenos odres de cores diferentes à beira da vala. É isso que eles querem? Mas não sabem direito para que querem? Ninguém consegue me explicar o porquê das coisas? O porquê de seu mistério ou de sua razão? Vai à pia e envolve carinhosamente a gamela de barro, as mãos espalmadas com toda sua superfície entornando a água até a boca de uma caneca. Ninguém sabe de nós, aqui. O homem do governo vem e faz suas coisas. Não acho que essas coisas estejam corretas; a correção deve ter justiça. Quem nos ouvirá se a gente chamar? O advogado da cidade virá atrás da nossa voz se souber que ela chama porque é necessário e porque está do lado da verdade? A escuridão já cobre tudo, e só o lusco-fusco de insetos desponta na mata que forra toda a dimensão que se perde de vista. Aqui é o esquecimento. O que ninguém conhece e que ninguém sabe que existe. Não, é mais que esquecimento. É um tipo de morte, isso. Têm muitos mortos debaixo dos meus pés agora, debaixo desse assoalho. Sim, estar assim, quieto com as mãos trançadas no joelho, sentado nessa cadeira de fórmica com os ombros retesados vendo pelo vidro acima do forno de lenha esses fantasmas estúpidos se movendo debaixo de luzes de mercúrio. Esse tempo vai passando, a gente vai sentindo ele passar, como uma lesma ele se estica e se volta sobre si mesma, deixa seu rastro de gosma nojenta. Assim as coisas vão sendo feitas e vão passando, vagarosas, mas sempre passando.

Os dias e as noites se esticaram na memória e se retraíram dentro da casa de onde os três não saíam mais, olhando as rachaduras que cresciam como trepadeiras por todas as paredes. Enquanto isso parece que foi ontem que esses sujeitos chegaram aqui com suas maletas. Quanto tempo faz? Todas as noites os vultos brancos circulam a casa e se misturam com as roupas que se mexem no varal e seus reflexos luminosos na vidraça quebrada. Por todo lado que a gente anda está cercado. Por todas as portas tem gente. E um idoso de óculos enfia a cara pela fresta da janela pedindo um copo d’água, segurando o arreio do cavalo que relincha enorme, a cabeça refletida e deformada nas contas de vidro que ainda restam, olhando fixo os meus movimentos. Repito de novo o velho ritual, satisfaço o homem que parte limpando a boca com a manga branca da camisa sem dizer nenhuma palavra. Que horas são? Descerro as mãos dos joelhos e observo que me perdi, que todos já estão dormindo, que já é madrugada e que apenas o jovem observa cansado e sozinho um caco sob a luz trêmula, à beira da vala. Vou me aproximando assim bem de manso e quando ele me percebe já estou tão perto que suspendo seu corpo enterrando a lâmina que brilha sua ponta do outro lado, as costas no respaldo do meu braço e a garganta presa dentro da minha mão esquerda. Sinto o calor que escorre nos meus dedos. Seguro ele assim, de manso, os pés sem tocar o chão por um momento que se encheu tanto pra mim que é como se todo aquele silêncio de mata verde e nós dois ali, é como se a gente fosse uma única vida, batendo com um só coração até a hora em que eu ouvi o som fofo do seu corpo dentro do poço, e a chuva começou forte como sempre, enlameando tudo e limando as paredes de terra que cobriam ele ali parado, iam cobrindo até que uma hora ele desapareceu debaixo de um tapete vermelho e líquido.

– Fique com o eterno, meu filho.

E tira sua mulher do sono levando o filho no braço, enquanto a barraca de lona vai diminuindo atrás de seus passos na estrada de batida até se transformar em um ponto de névoa misturada à mata e finalmente sumir na mais completa escuridão que forra tudo e se perde na noite que funde o chão ao firmamento.